Corantes Naturais e Culturas Indígenas


Angelo C. Pinto
Instituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Bloco A, CT, Cidade Universitária
21945-970, Rio de Janeiro, RJ

Tingir os cabelos e pintar o corpo são manifestações culturais muito Índio guerreiro por Max Justo Guedesantigas, comuns a mulheres e homens, que surgiram muito antes de qualquer forma de escrita. A pele do corpo foi a primeira "tela" usada pelo homens de Neanderthal, antes mesmo de pintarem as paredes das cavernas onde viviam. A pintura do corpo tanto podia ser feita nas celebrações de fertilidade como nas cerimônias fúnebres.

          Nas sociedades indígenas, até hoje, a pintura corporal tem grande importância e seu significado é muito amplo, podendo ir da simples expressão de beleza e erotismo à indicação de preparação para a guerra, ou, até mesmo, como uma das formas de aplacar a ira dos demônios. Além de protegerem o corpo dos raios solares e das picadas de insetos, a ornamentação corporal é como se fosse uma segunda "pele" do indivíduo: a social em substituição à biológica. O padrão da pintura e o local de sua localização no corpo revela o "status" de seu detentor na sociedade.

A pintura corporal dos índios brasileiros foi uma das primeiras coisas que chamou a atenção do colonizador português. Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta ao rei D. Manoel I, já falava de uns "pequenos ouriços que os índios traziam nas mãos e da nudeza colorida das índias. Traziam alguns deles ouriços verdes, de árvores, que na cor, quase queriam parecer de castanheiros; apenas que eram mais e mais pequenos. E os mesmos eram cheios de grãos vermelhos, pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, da que eles andavam tintos; e quando se mais molhavam mais vermelhos ficavam".

Pintura 'Maloca dos Apiacá' de Hércule Florence
"Uma daquelas moças estava toda tinta, de baixo acima, daquela tintura, a qual, na verdade, era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, faria vergonha, por não terem a sua como ela".




Trecho da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manoel I

Esses ouriços nada mais eram do que a bixácea - Bixa orellana – conhecida como urucu, palavra de origem tupi que significa vermelho. A tintura dos indígenas era feita com as sementes, cujo principal corante é o norcarotenóide bixina, o primeiro cis-polieno a ser reconhecido na natureza. O nome botânico do urucu homenageia a Francisco Orellana, lugar-tenente de Francisco Pizarro, que foi o primeiro homem branco a navegar no rio Amazonas.

bixina

Cultura indígena por Luís Donisete Benzi Grupione

As cerca de 200 sociedades indígenas brasileiras com suas mais de 170 línguas e dialetos têm na pintura corporal uma de suas formas mais características de expressão, individual e coletiva. Na tribo Xikrin, um subgrupo Kayapó, as mulheres pintam-se uma as outras e os filhos com mistura de jenipapo mascado, carvão e água. Às crianças de 10 e 12 anos já é permitido pintar as menores. As índias Xikrin gastam horas pintando os filhos com desenhos de animais e de formas geométricas. Para elas, o ato de pintar é uma demonstração de carinho e interesse. Entre as Nambiquaras, nas comemorações da Festa da Moça, quando as meninas atingem a puberdade, nos momentos que antecedem o fim do período de reclusão na casa de palha, as moças são pintadas com urucu e enfeitadas com adornos, indicação de que estão preparadas para o casamento. Os índios do Alto Xingú pintam a pele do corpo com desenhos de animais, pássaros e peixes. Estes desenhos, além de servirem para identificar o grupo social ao qual pertencem, são uma maneira de uní-los aos espíritos, aos quais creditam sua felicidade.

A tinta usada por esses índios é preparada com sementes de urucu, Frutos de Urucuque se colhe nos meses de maio e junho. As sementes são raladas em peneiras finas e fervidas em água para formar uma pasta. Com esta pasta são feitas bolas que são envolvidas em folhas, e guardadas durante todo o ano para as cerimônias de tatuagem. A tinta extraída do urucu também é usada para tingir os cabelos e na confecção de máscaras faciais. Pinturas com urucu são feitas desde tempos muito remotos pelos indígenas que habitavam do México até o Paraguai, incluindo América Central e Antilhas. O urucu é usado modernamente para colorir manteiga, margarina, queijos, doces e pescado defumado, e o seu corante principal – a bixina – em filtros solares.

O outro corante muito usado pelos indígenas era obtido da seiva do fruto do jenipapo. As tatuagens de cores pretas usadas pelos índios que tanto impressionaram os colonizadores, feitas com esta rubiácea, cujo nome botânico é Genipa americana deve-se ao iridóide conhecido como genipina. Do fruto maduro e fresco foi isolado a genipina em ~1% de rendimento. Incolor em si, este iridóide produz cor preta após reagir com as proteínas da pele. genipinaHans Staden, o alemão que quase foi comido pelos índios tupinambás do litoral de São Paulo, assim se refere à árvore do jenipapo: "Numa árvore que os selvagens chamam de jenipapo ivá, cresce uma fruta que tem certa semelhança com a maçã. Os selvagens mascam essa fruta e espremem o suco dentro de um vaso. Com ele é que se pintam. Quando esfregam o suco sobre a pele, no início parece água. Mas depois de algum tempo a pele fica tão preta como se fosse tinta. Isso perdura até o nono dia. Depois a cor desaparece, mas não antes desse prazo, mesmo quando eles se lavam muitas vezes".

Nas sociedades modernas o comportamento de mulheres e homens não é muito diferente do dos indígenas. Poderia-se perguntar o que estaria por trás das máscaras de maquiagens das senhoritas ocidentais de cabelo acaju? Esta resposta como para muitas outras perguntas, deve ser procurada no passado. As egípcias, por exemplo, tingiam os cabelos e pintavam o rosto há pelo menos 3000 anos. Não são raros os filmes de época apresentando Cleópatra com penteados e cabelos de diferentes tonalidades. Preparados a base de hena tornaram famosas suas lindas tranças castanho-avermelhadas. Quando as queria em tom dourado, a princesa egípcia recorria a tintura de camomila, como hoje o fazem as mulheres escandinavas para conservar o louro da juventude e manter a beleza dos cabelos.

Lawsona

No Brasil, a hena é popularmente conhecida como henê. Este corante é extraído de Lawsonia inermis L., uma planta da família Litraceae. Usada desde o início dos tempos históricos, a hena é o corante natural mais usado na cosmética. A substância responsável pelo efeito é a lawsona. Esta quinona reage com a queratina dos cabelos, conferindo-lhes o tom avermelhado. Nos países do Mediterrâneo oriental a hena era usada para pintar as palmas das mãos, as plantas dos pés, as unhas e os lóbulos das orelhas. Sabe-se que até Maomé, o fundador do Islamismo, a usava para tingir a barba.

derivados de azuleno

Do mesmo modo que a hena, a camomila é muito usada na cosmética. Xampus de camomila podem ser encontrados em drogarias e supermercados. São duas as camomilas principais, a Anthemis nobilis e a Matricaria chamomilla. Ambas as plantas são da família Compositae, sendo esta última a usada na preparação de xampus. Entre os seus constituintes químicos principais encontram-se sesquiterpenos derivados do azuleno.

Nas sociedades modernas pintar o rosto e os cabelos é um ato que cada vez ganha mais adeptos, deixando de ser coisa de jovens exóticos. No mercado de cosméticos, um dos poucos que não conhece crises econômicas, são lançados todos os anos novos corantes de cabelo. Tanto há os que saem com simples lavagem como os que resistem a água. Na Copa do Mundo de futebol de 1998, as televisões transmitiram para todo o mundo as imagens de jogadores, e em alguns casos, até de toda a equipe, com os cabelos tingidos de variadas cores, e nas arquibancadas torcedores esfuziantes com rostos e cabelos pintados com as cores de seus clubes, num espetáculo de rara beleza.

A moda surgida espontaneamente é saudável, mas antes que seus filhos ou você pintem as caras assegure-se se os corantes que vão utilizar são permitidos pela legislação brasileira. Cada um trás obrigatoriamente um número que indica a classe química ao qual o corante pertence. A partir deste número pode-se, conhecendo a legislação, saber se o corante pode ser usado para pintar a pele, ou se for outro caso, por exemplo para colorir alimentos ou medicamentos.


Bibliografia

O Brasil dos Viajantes e dos Exploradores e a Química de Produtos Naturais Brasileira. Angelo C. Pinto, Química Nova 18, 608-615 (1995)
Viagem ao Mundo Indígena. Luís Donisete Benzi Grupione, Berlendis & Vertecchia Editores Ltda, 1997, Coleção Pawana, vol.1
Duas Viagens ao Brasil. Hans Staden, séc.16; tradução de Guiomar de Carvalho Franco; transcrito em alemão moderno por Carlos Fouquet, prefácio de Mario Guimarães Ferri, introdução e notas de Francisco de Assis Carvalho Franco, Belo Horizonte, Ed.Itatiaia, São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974 (Coleção Reconquista do Brasil, 17)
Terpenoids. XLVII. The Structure of Genipin. Carl Djerassi, T. Nakano, A.N. James, L.H. Zalkow, E.J. Eisenbraun and J.N. Shoolery. J.Org.Chem. 26, 1192-1206 (1961)
The Colour Index: The Past, Present and Future of Colorant Classification. B.C. Burdett. J.Soc.Dyers Colour 98, 114-120 (1982).
"Handbook of U.S. Colorants for Foods, Drugs, and Cosmetics ". Daniel M. Marmion , John Wiley & Sons, New York, 1979

O quadro "Maloca dos Apiacá" é de autoria de Hércule Florence.
A foto do índio guerreiro foi retirado do livro "O Descobrimento do Brasil" de Max Justo Guedes