Recursividade em Pirahã
Os Pirahã (família Mura) vivem hoje ao longo do rio Maci, entre os municípios de Humaitá e Manicoré no estado do Amazonas. Esse era um povo basicamente desconhecido até 2005, quando o pesquisador americano Daniel Everett publicou um artigo na revista Current Anthropology (University of Chicago Press) defendendo a existência das seguintes lacunas na língua e cultura Pirahã:
(1) Lacunas sintáticas e lexicais
a. Ausência de encaixamentos sintáticos (recursividade);
b. Ausência de termos para números e de conceito de numerosidade;
c. Ausência de quantificadores;
d. Ausência de tempo relativo;
e. Ausência de termos para cores;
f. Sistema pronominal extremamente simplificado.
(2) Lacunas culturais
a. Ausência de mitos de criação e ficção;
b. Ausência de memória individual ou coletiva sobre eventos que aconteceram
no passado;
c. Incapacidade de adquirir uma segunda língua;
d. Ausência de arte;
e. Sistema de parentesco extremamente simplificado;
f. Material cultural quase inexistente.
Everett argumenta que essas lacunas estão correlacionadas, sendo todas consequências do principio da experiência imediata:
(3) Principio da experiência imediata
A comunicação é restrita à experiência imediata dos interlocutores.
Esta publicação provocou forte reação de linguistas teóricos do mundo inteiro, os quais argumentaram que o princípio em (3) não explica: (a) as lacunas de linguagem em (1); (b) como essas lacunas se correlacionam às lacunas culturais em (2). Em 2009, os pesquisadores Andrew Nevins, David Pesetsky e Cilene Rodrigues publicaram na revista Language uma resposta ao artigo de Everett, colocando em dúvida a existências das lacunas em (1) e (2). Este trabalho foi realizado tomando como fonte de dados os trabalhos anteriores de Everett sobre a língua Pirahã e o trabalho do antropólogo Marco Antonio Gonçalves sobre a cosmologia Pirahã. Aqueles autores concluíram que as lacunas em (1) e (2) não são reais, mas resultado de falhas na interpretação dos dados. Observaram ainda que a língua Pirahã compartilha propriedades com várias outras línguas do mundo como, por exemplo, o Alemão. Assim como em Pirahã, o Alemão, em construções envolvendo caso genitivo, não aceita múltiplos encaixamentos de sintagmas nominais possessivos. Everett (2009) contra-argumenta, desqualificando as fontes de informação usadas por Nevins, Pesetsky & Rodrigues. Segundo Everett, seus escritos anteriores à publicação de (2005) contêm dados incorretos, não podendo, portanto, servir como fonte de dados sobre a língua Pirahã.
A controvérsia entre Daniel Everett e linguistas teóricos sobre a língua amazônica Pirahã ganhou ainda mais fôlego com a publicação em (2008) do livro Don’t sleep, there are snakes: life and language in the Amazonian Jungle, de autoria de Daniel Everett, e com o lançamento do filme The grammar of happiness, ganhador de prêmio da FIPA em 2012 na França. Isso incendiou a mídia e o povo Pirahã virou assunto em várias páginas da Internet e em jornais importantes do mundo, como New York Times e Folha de São Paulo. Apesar de tanta atenção, no entanto, a questão acadêmica e científica sobre a língua e cultura dos Pirahã ainda é obscura.
Recentemente (Julho/2012), Cilene Rodrigues & Filomena Sandalo realizaram pesquisa de campo com dois membros da comunidade Pirahã (Augusto Diarroi e Iapohen Pirahã) com ênfase na questão da recursividade em sintagmas preposicionais, sintagmas nominais e sentenças. O trabalho a ser apresentado é o resultado desta experiência.