A Destruição De Um Homem Epub

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Imke

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Aug 5, 2024, 7:23:21 AM8/5/24
to suitanbtema
5Devemos acrescentar ainda um outro ponto de vista. A Primeira Carta aos Corntios (1,18-31) mostra-nos que uma grande parte dos primeiros cristos pertencia s classes baixas da sociedade e, por isso mesmo, se sentia livre para a experincia da nova esperana, como constatmos no exemplo de Bakhita. Porm, j desde os comeos, havia tambm converses nas classes aristocrticas e cultas, visto que tambm estas viviam sem esperana e sem Deus no mundo . O mito tinha perdido a sua credibilidade; a religio romana de Estado tinha-se esclerosado em mero cerimonial, que se realizava escrupulosamente, mas reduzido j simplesmente a uma religio poltica . O racionalismo filosfico tinha relegado os deuses para o campo do irreal. O Divino era visto de variados modos nas foras csmicas, mas um Deus a Quem se podia rezar no existia. Paulo ilustra, de forma absolutamente apropriada, a problemtica essencial da religio de ento, quando contrape vida segundo Cristo uma vida sob o domnio dos elementos do mundo (Col 2,8). Nesta perspectiva, pode ser esclarecedor um texto de So Gregrio Nazianzeno. Diz ele que, no momento em que os magos guiados pela estrela adoraram Cristo, o novo rei, deu-se por encerrada a astrologia, pois agora as estrelas giram segundo a rbita determinada por Cristo [2] De facto, nesta cena fica invertida a concepo do mundo de ento, que hoje, de um modo distinto, aparece de novo florescente. No so os elementos do cosmo, as leis da matria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o universo; as leis da matria e da evoluo no so a ltima instncia, mas razo, vontade, amor: uma Pessoa. E se conhecemos esta Pessoa e Ela nos conhece, ento verdadeiramente o poder inexorvel dos elementos materiais deixa de ser a ltima instncia; deixmos de ser escravos do universo e das suas leis, ento somos livres. Tal conscincia impeliu na antiguidade os nimos sinceros a indagar. O cu no est vazio. A vida no um simples produto das leis e da casualidade da matria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo h uma vontade pessoal, h um Esprito que em Jesus Se revelou como Amor.[3]

6. Os sarcfagos dos primrdios do cristianismo ilustram visivelmente esta concepo (com a morte diante dos olhos a questo do significado da vida torna-se inevitvel). A figura de Cristo interpretada, nos antigos sarcfagos, sobretudo atravs de duas imagens: a do filsofo e a do pastor. Em geral, por filosofia no se entendia ento uma difcil disciplina acadmica, tal como ela se apresenta hoje. O filsofo era antes aquele que sabia ensinar a arte essencial: a arte de ser rectamente homem, a arte de viver e de morrer. Certamente, j h muito tempo que os homens se tinham apercebido de que boa parte dos que circulavam como filsofos, como mestres de vida, no passavam de charlates que com suas palavras granjeavam dinheiro, enquanto sobre a verdadeira vida nada tinham a dizer. Isto era mais uma razo para se procurar o verdadeiro filsofo que soubesse realmente indicar o itinerrio da vida. Quase ao fim do sculo terceiro, encontramos pela primeira vez em Roma, no sarcfago de um menino e no contexto da ressurreio de Lzaro, a figura de Cristo como o verdadeiro filsofo que, numa mo, segura o Evangelho e, na outra, o basto do viandante, prprio do filsofo. Com este basto, Ele vence a morte; o Evangelho traz a verdade que os filsofos peregrinos tinham buscado em vo. Nesta imagem, que sucessivamente por um longo perodo havia de perdurar na arte dos sarcfagos, torna-se evidente aquilo que tanto as pessoas cultas como as simples encontravam em Cristo: Ele diz-nos quem na realidade o homem e o que ele deve fazer para ser verdadeiramente homem. Ele indica-nos o caminho, e este caminho a verdade. Ele mesmo simultaneamente um e outra, sendo por isso tambm a vida de que todos ns andamos procura. Ele indica ainda o caminho para alm da morte; s quem tem a possibilidade de fazer isto um verdadeiro mestre de vida. O mesmo se torna visvel na imagem do pastor. Tal como sucedia com a representao do filsofo, assim tambm na figura do pastor a Igreja primitiva podia apelar-se a modelos existentes da arte romana. Nesta, o pastor era, em geral, expresso do sonho de uma vida serena e simples de que as pessoas, na confuso da grande cidade, sentiam saudade. Agora a imagem era lida no mbito de um novo cenrio que lhe conferia um contedo mais profundo: O Senhor meu pastor, nada me falta [...] Mesmo que atravesse vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo (Sal 23[22], 1.4). O verdadeiro pastor Aquele que conhece tambm o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que, mesmo na estrada da derradeira solido, onde ningum me pode acompanhar, caminha comigo servindo-me de guia ao atravess-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte, venceu-a e voltou para nos acompanhar a ns agora e nos dar a certeza de que, juntamente com Ele, acha-se uma passagem. A certeza de que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanha e com o seu basto e o seu cajado me conforta , de modo que no devo temer nenhum mal (cf. Sal 23[22],4): esta era a nova esperana que surgia na vida dos crentes.


13. Ao longo da sua histria, os cristos procuraram traduzir este saber, que desconhece, em figuras ilustrativas, explanando imagens do cu que ficam sempre aqum daquilo que conhecemos precisamente s por negao, atravs de um no-conhecimento. Todas estas tentativas de representao da esperana deram a muitos, no decorrer dos sculos, a coragem de viverem segundo a f e, assim, abandonarem inclusivamente os seus hyparchonta , os bens materiais para a sua existncia. O autor da Carta aos Hebreus, no dcimo primeiro captulo, traou, por assim dizer, uma histria daqueles que vivem na esperana e da sua condio de caminhantes, uma histria que desde Abel chega at sua poca. Contra este tipo de esperana acendeu-se, na idade moderna, uma crtica sempre mais dura: tratar-se-ia de puro individualismo, que teria abandonado o mundo sua misria indo refugiar-se numa salvao eterna puramente privada. Henry de Lubac, na introduo sua obra fundamental Catholicisme. Aspects sociaux du dogme , recolheu algumas vozes caractersticas deste tipo, uma das quais merece ser citada: Ser que encontrei a alegria? No... Encontrei a minha alegria. O que algo terrivelmente diferente... A alegria de Jesus pode ser individual. Pode pertencer a uma s pessoa, e esta est salva. Est em paz... agora e para sempre, mas ela s. Esta solido na alegria no a perturba. Pelo contrrio: ela sente-se precisamente a eleita! Na sua bem-aventurana, atravessa as batalhas com uma rosa na mo .[10]


19. Temos de lanar brevemente um olhar sobre duas etapas essenciais da concretizao poltica desta esperana, porque so de grande importncia para o caminho da esperana crist, para a sua compreenso e persistncia. H, antes de mais nada, a Revoluo francesa como tentativa de instaurar o domnio da razo e da liberdade agora tambm de modo politicamente real. Inicialmente, a Europa do Iluminismo contemplou fascinada estes acontecimentos, mas depois, vista da sua evoluo, teve de reflectir de modo novo sobre razo e liberdade. Significativos destas duas fases de recepo do que acontecera em Frana so dois escritos de Emanuel Kant, nos quais ele reflecte sobre os acontecimentos. Em 1792, escreve a obra Der Sieg des guten Prinzips ber das bse und die Grndung eines Reichs Gottes auf Erden (A vitria do princpio bom sobre o princpio mau e a constituio de um reino de Deus sobre a terra). Nela afirma: A passagem gradual da f eclesistica ao domnio exclusivo da pura f religiosa constitui a aproximao do reino de Deus .[17] Diz tambm que as revolues podem apressar os tempos desta passagem da f eclesistica f racional. O reino de Deus , de que falara Jesus, recebeu aqui uma nova definio e assumiu tambm uma nova presena; existe, por assim dizer, uma nova expectativa imediata : o reino de Deus chega onde a f eclesistica superada e substituda pela f religiosa , ou seja, pela mera f racional. Em 1794, no livro Das Ende aller Dinge (O fim de todas as coisas), aparece uma imagem diferente. Agora, Kant toma em considerao a possibilidade de que, a par do fim natural de todas as coisas, se verifique tambm um fim contrrio natureza, perverso. Escreve a tal respeito: Se acontecesse um dia chegar o cristianismo a no ser mais digno de amor, ento o pensamento dominante dos homens deveria tomar a forma de rejeio e de oposio contra ele; e o anticristo [...] inauguraria o seu regime, mesmo que breve, (baseado presumivelmente sobre o medo e o egosmo). Em seguida, porm, visto que o cristianismo, embora destinado a ser a religio universal, de facto no teria sido ajudado pelo destino a s-lo, poderia verificar-se, sob o aspecto moral, o fim (perverso) de todas as coisas .[18]


21. Com a sua vitria, porm, tornou-se evidente tambm o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exactido o modo como realizar o derrubamento. Mas, no nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriao da classe dominante, a queda do poder poltico e a socializao dos meios de produo, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalm. Com efeito, ento ficariam anuladas todas as contradies; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si prprios. Ento tudo poderia proceder espontaneamente pelo recto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revoluo, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, no se achava qualquer indicao sobre o modo como proceder. verdade que ele tinha falado da fase intermdia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porm, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta fase intermdia conhecemo-la muito bem e sabemos tambm como depois evoluiu, no dando luz o mundo sadio, mas deixando atrs de si uma destruio desoladora. Marx no falhou s ao deixar de idealizar os ordenamentos necessrios para o mundo novo; com efeito, j no deveria haver mais necessidade deles. O facto de no dizer nada sobre isso lgica consequncia da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro o materialismo: de facto, o homem no s o produto de condies econmicas nem se pode cur-lo apenas do exterior criando condies econmicas favorveis.

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