Em artigo, ex-presidente americano Jimmy Carter alerta para perigos da
desinformação conduzida por políticos
6.jan.2022 às 15h00
Jimmy Carter - 39º presidente dos Estados Unidos
Há um ano, uma turba violenta, conduzida por políticos inescrupulosos,
invadiu o Capitólio, em Washington, e quase conseguiu impedir a
transmissão democrática de poder.
Os quatro presidentes anteriores, incluindo eu, condenamos esses atos e
confirmamos a legitimidade da eleição de 2020. Seguiu-se uma breve
esperança de que a insurreição chocaria o país, levando-o a discutir a
tóxica polarização que ameaça nossa democracia.
O ex-presidente dos EUA Jimmy Carter e sua mulher, Rosalynn Carter,
durante debate na cidade de Plains, na Geórgia - John Bazemore -
10.jul.21/Reuters
No entanto, um ano depois, os promotores da mentira de que a eleição foi
roubada dominaram um partido político e instigaram a desconfiança em
nossos sistemas eleitorais. Essas forças exercem poder e influência por
meio da desinformação incansável, que continua jogando americanos contra
americanos.
Segundo o Centro de Pesquisa sobre a Vida Americana, 36% dos americanos
—quase 100 milhões de adultos em todo o espectro político— concordam que
"o modo de vida tradicional americano está desaparecendo tão depressa
que poderemos ter de usar a força para salvá-lo".
O jornal The Washington Post relatou recentemente que cerca de 40% dos
eleitores republicanos afirmam acreditar que a ação violenta contra o
governo às vezes se justifica.
Políticos do meu estado natal, a Geórgia, e também de outros, como Texas
e Flórida, usaram a desconfiança que eles mesmos geraram para aprovar
leis que dão poder a legislaturas partidárias para intervir em processos
eleitorais. Eles tentam vencer por quaisquer meios, e muitos americanos
estão sendo persuadidos a pensar e a agir desse modo, ameaçando ruir as
fundações de nossa segurança e democracia com uma velocidade assustadora.
Hoje eu temo que o que lutamos tanto para alcançar globalmente —o
direito a eleições livres e justas, sem a interferência de políticos
autoritários que apenas buscam aumentar seu próprio poder— se tornou
perigosamente frágil em nosso país.
Encontrei pessoalmente essa ameaça em meu próprio ambiente em 1962,
quando um líder municipal tentou roubar minha eleição para o Senado
estadual da Geórgia. Isso foi na primária, e contestei a fraude na
Justiça. Ao fim, um juiz invalidou os resultados, e eu ganhei a eleição
geral. Depois disso, a proteção e o avanço da democracia tornaram-se uma
prioridade para mim. Como presidente, um objetivo principal foi
instituir a regra da maioria no sul da África e em outros lugares.
Quem é investigado pelo Congresso dos EUA suspeito de estimular a
invasão ao Capitólio
Depois que deixei a Casa Branca e fundei o Centro Carter, trabalhamos
para promover eleições justas, livres e ordenadas em todo o mundo.
Liderei dezenas de missões de observação eleitoral na África, na América
Latina e na Ásia, começando pelo Panamá, em 1989, onde fiz uma simples
pergunta aos administradores: "Vocês são autoridades honestas ou ladrões?".
Em cada eleição, minha mulher, Rosalynn, e eu ficamos comovidos com a
coragem e a dedicação de milhares de cidadãos que caminhavam quilômetros
e esperavam na fila do anoitecer até a madrugada para dar seus primeiros
votos em eleições livres, renovando a esperança para si mesmos e seus
países e dando seus primeiros passos para a autogovernança.
Mas também vi como novos sistemas democráticos —e às vezes alguns já
estabelecidos— podem cair sob juntas militares ou déspotas famintos por
poder. Sudão e Mianmar são dois exemplos recentes.
Para que a democracia americana perdure, devemos exigir que nossos
líderes e candidatos mantenham os ideais de liberdade e respeitem
padrões de conduta elevados.
Primeiro, enquanto os cidadãos podem discordar sobre políticas públicas,
as pessoas de todas as cores políticas devem concordar sobre princípios
constitucionais fundamentais e normas de justiça, civilidade e respeito
ao estado de direito. Os cidadãos devem poder participar com
tranquilidade de processos eleitorais transparentes e seguros.
Denúncias de irregularidades eleitorais devem ser apresentadas em boa-fé
para a análise dos tribunais, com todos os participantes concordando em
aceitar suas conclusões. E o processo eleitoral deve ser conduzido
pacificamente, sem intimidação e violência.
Segundo, devemos pressionar por reformas que garantam a segurança e a
acessibilidade de nossas eleições e deem à população confiança na
exatidão dos resultados. Alegações falsas de votação ilegal e inúmeras
auditorias inúteis só nos afastam dos ideais democráticos.
Terceiro, devemos resistir à polarização que está remodelando nossas
identidades em torno da política. Devemos enfocar algumas verdades
centrais: que somos todos humanos, somos todos americanos e temos
esperanças comuns de que nossas comunidades e nosso país prosperem.
Devemos encontrar caminhos para nos reaproximarmos diante da divisão, de
maneira respeitosa e construtiva, mantendo discussões civilizadas com a
família, os amigos e os colegas de trabalho e resistindo coletivamente
às forças que nos dividem.
Quarto, a violência não tem lugar em nossa política, e devemos agir com
urgência para aprovar ou reforçar leis que possam reverter as tendências
de assassinato de personalidades, intimidação e presença de milícias
armadas em eventos.
Devemos proteger nossas autoridades eleitorais —que são amigos
confiáveis e vizinhos de muitos de nós— de ameaças à sua segurança. Os
órgãos policiais devem ter o poder de abordar essas questões e se
envolver num esforço nacional para chegar a termos com o passado e o
presente da injustiça racial.
Por fim, a disseminação de desinformação, especialmente nas redes
sociais, deve ser enfrentada. Devemos reformar essas plataformas e
adotar o hábito de buscar informação acurada. A América corporativa e as
comunidades religiosas devem incentivar o respeito às normas
democráticas, a participação em eleições e os esforços para conter a
desinformação.
Nossa grande nação hoje vacila à beira de um abismo que se aprofunda.
Sem uma ação imediata, corremos um verdadeiro risco de conflito civil e
de perder nossa preciosa democracia. Os americanos devem pôr de lado as
diferenças e trabalhar juntos, antes que seja tarde demais.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
Fonte:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/01/sem-acao-imediata-eua-correm-risco-de-conflito-civil-e-de-perder-democracia.shtml