Com a rápida transformação do Ártico e da Antártida, os níveis dos mares
irão subir, os padrões climáticos irão mudar e os ecossistemas serão
alterados, estimam cientistas
Sarah Kaplan, Washington Post
21 de dezembro de 2021 | 10h00
A plataforma de gelo estava se rompendo. Pesquisas mostraram que a água
quente do oceano a vem erodindo por baixo. Imagens de satélite revelaram
fissuras longas e paralelas na extensão congelada, como arranhões das
garras de algum monstro. Uma fratura cresceu tanto e tão rápido que os
cientistas começaram a chamá-la de “a adaga”.
“Foi extremamente surpreendente ver as coisas mudando tão rápido”, disse
Erin Pettit. O glaciologista do estado de Oregon escolhera este local
para sua pesquisa de campo na Antártida precisamente por causa de sua
estabilidade. Enquanto outras partes da geleira Thwaites desmoronavam,
esta cunha de gelo flutuante agia como uma barreira, retardando o
derretimento. Era para ser estável, durável e segura.
Mas agora as mudanças climáticas transformaram a plataforma de gelo numa
ameaça – para o trabalho de campo de Pettit e para o mundo.
A poluição que aquece o planeta por causa da queima de combustíveis
fósseis e outras atividades humanas já elevou as temperaturas globais em
mais de 1,1 grau Celsius. Mas os efeitos são particularmente profundos
nos polos, onde o aumento das temperaturas vem minando seriamente
regiões até então cobertas de gelo.
Numa pesquisa apresentada esta semana na maior conferência de ciências
da terra do mundo, Pettit mostrou que a plataforma de gelo Thwaites pode
entrar em colapso nos próximos três a cinco anos, liberando um rio de
gelo que pode elevar dramaticamente o nível do mar. Levantamentos aéreos
documentam como as condições mais quentes permitiram que os castores
invadissem a tundra ártica, inundando a paisagem com suas lagoas. Os
grandes navios comerciais estão se infiltrando cada vez mais em áreas
antes congeladas, perturbando a vida selvagem e gerando quantidades
desastrosas de lixo. Em muitas comunidades nativas do Alasca, os
impactos climáticos agravaram as dificuldades da pandemia de covid-19,
levando à escassez de alimentos entre as pessoas que viveram nesta terra
por milhares de anos.
“O próprio aspecto desses lugares está mudando”, disse Twila Moon,
glaciologista do National Snow and Ice Data Center e coeditora do Arctic
Report Card, um relatório anual do estado do topo do mundo. “Estamos
vendo condições diferentes das que víamos antes”.
A rápida transformação do Ártico e da Antártida cria efeitos em cascata
em todo o planeta. Os níveis dos mares irão subir, os padrões climáticos
irão mudar e os ecossistemas serão alterados. A menos que a humanidade
aja rapidamente para conter as emissões, dizem os cientistas, as mesmas
forças que desestabilizaram os polos causarão estragos no resto do globo.
“O Ártico é uma forma de olhar para o futuro”, disse Matthew
Druckenmiller, cientista do National Snow and Ice Data Center e outro
coeditor do Arctic Report Card. “Pequenas mudanças na temperatura podem
ter efeitos enormes numa região dominada pelo gelo”.
A edição deste ano do relatório, que foi apresentada na reunião anual da
American Geophysical Union na terça-feira, descreve uma paisagem que
está se transformando tão rápido que os cientistas mal conseguem
acompanhar. O período entre outubro e dezembro de 2020 foi o mais quente
já registrado. Este verão viu a segunda menor extensão de gelo marinho
espesso e antigo desde o início do rastreamento, em 1985.
Numa outra pesquisa, a Organização Meteorológica Mundial confirmou um
novo recorde de temperatura para o Ártico: 37,7 graus Celsius na cidade
siberiana de Verkhoyansk, no dia 20 de junho de 2020.
Este ano, três episódios históricos de derretimento atingiram a
Groenlândia, fazendo com que o enorme manto de gelo da ilha perdesse
cerca de 35 trilhões de quilos. Em 14 de agosto, pela primeira vez na
história, choveu no cume do manto de gelo.
“Acho que meu queixo teria caído no chão”, disse Moon, imaginando o que
teria sentido se houvesse testemunhado o evento inédito. “Isso muda
fundamentalmente o caráter da superfície do manto de gelo”.
Embora a camada de gelo da Groenlândia tenha mais de um quilômetro de
espessura em seu centro, a chuva pode escurecer a superfície, fazendo
com que o gelo absorva mais calor do sol, disse Moon. Isso muda a forma
como a neve se comporta e alisa o topo do gelo.
As consequências para as pessoas que vivem no Ártico podem ser
terríveis. Na Groenlândia e em outros lugares, o derretimento de
geleiras encheu os rios e contribuiu para inundações. O gelo em recuo
expõe penhascos instáveis que podem facilmente desabar no oceano,
provocando tsunamis mortais. Estradas se interrompem, sistemas de
abastecimento de água se quebram e construções desmoronam à medida que o
gelo permanente abaixo delas derrete.
A perda global de gelo contribui para o perigoso aumento do nível dos
oceanos. A Groenlândia possui água congelada suficiente para aumentar o
nível do mar em 7 metros (embora deva levar milhares de anos para
derreter completamente).
A desintegração da plataforma de gelo Thwaites não aumentará
imediatamente o nível do mar – esse gelo já flutua sobre a água,
ocupando a mesma quantidade de espaço, esteja sólido ou líquido. Mas,
sem a plataforma de gelo atuando como suporte, as partes terrestres da
geleira começarão a fluir mais rapidamente. Thwaites pode ficar
vulnerável ao colapso de penhascos de gelo, um processo no qual paredes
de gelo em contato direto com o oceano começam a desmoronar.
Se toda a geleira Thwaites derretesse, o nível do mar aumentaria vários
metros. As nações insulares e as comunidades costeiras seriam inundadas.
“Não sabemos exatamente se ou quando terá início o desmoronamento do
penhasco de gelo”, disse Anna Crawford, glaciologista da Universidade de
St. Andrews que trabalha com modelos do processo. “Mas temos certeza de
que a Antártica vai mudar”.
“Existem amplas evidências para promover a redução das emissões”,
acrescentou ela, “porque o que vemos aqui já é o suficiente para nos
preocuparmos”.
Para alguns no Ártico, esse degelo rápido representa uma oportunidade. A
vegetação de tundra floresce no clima mais quente. Os castores migraram
para o norte, cavando lagoas no permafrost.
Imagens de satélite mostram que o número de lagoas de castores no oeste
do Alasca – formadas quando os roedores constroem represas ao longo dos
cursos d’água – pelo menos dobrou desde 2000. Mas não está claro como a
engenharia dos castores pode afetar o carbono armazenado no permafrost
ou nos ecossistemas a jusante.
As condições mais quentes também permitiram que pessoas se infiltrassem
em novos ambientes, e aqui os impactos prejudiciais são mais visíveis.
Novas rotas de navegação foram estabelecidas através de áreas antes
bloqueadas pelo gelo marinho, prejudicando a vida selvagem e poluindo o
oceano com ruídos não naturais.
Os navios que passam também deixam para trás grandes quantidades de
lixo; no verão de 2020, centenas de itens foram empurrados para a costa
de comunidades do Alasca ao longo do Estreito de Bering. Os moradores –
a maioria deles nativos do Alasca – encontraram roupas, equipamentos,
embalagens plásticas de alimentos e latas de óleos e inseticidas
perigosos nas águas onde pescam regularmente. Etiquetas em inglês,
russo, coreano e em vários outros idiomas ilustravam o caráter
internacional da ameaça.
Para muitos moradores do Ártico, as mudanças climáticas são um
multiplicador de ameaças – agravando os perigos de quaisquer outras
crises que venham a surgir.
Outro artigo no Arctic Report Card documenta as ameaças à segurança
alimentar dos nativos do Alasca causadas pela pandemia de covid. As
restrições de quarentena impediram as pessoas de viajar para seus locais
de colheita tradicionais. A turbulência econômica e os problemas da
cadeia de abastecimento deixaram muitos supermercados com prateleiras
vazias.
Mas o artigo, que foi coescrito por pesquisadores dos povos nativos
Inupiaq, Hadia, Ahtna e Supiaq, juntamente com especialistas de outras
comunidades indígenas, também destaca como as práticas culturais
indígenas ajudaram as comunidades a combater a fome. As redes de
compartilhamento de alimentos existentes redobraram seus esforços. As
práticas de colheita foram adaptadas tendo em mente a saúde pública.
“O fato de essas redes e programas funcionarem bem sob o estresse
adicional criado pela covid ressalta sua importância e a importância de
continuar a apoiá-los”, escrevem os autores.
Para Moon, este estudo sobre a resiliência traz lições para o resto do
mundo.
“Construímos uma sociedade que encara muitos limites rígidos, sejam
limites políticos, expectativas de que certos alimentos cresçam em
determinado lugar ou que construções possam existir no mesmo local por
centenas de anos”, disse ela. “Agora a mudança global está desafiando
esses pressupostos”.
Moon continuou: “Devemos olhar para essas comunidades que vêm resistindo
com sucesso por muitos milênios (...) e com elas aprender a nos
comunicar e cooperar melhor para nos adaptarmos rapidamente num ambiente
em rápida mudança”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Fonte:
https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,mudancas-clima-desestabilizaram-polos-terra-colocam-planeta-perigo,70003932398