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SILVEIRA FILHO, José da. As inesquecíveis jornadas de junho. Janela Econômica, Curitiba, ano: 8, nº 8, junho, 2013.
As Jornadas Inesquecíveis de Junho
José da Silveira Filho
O mês era junho. Prometia ser igual aos outros, exceto pelo outono, de folhas a cair. No noticiário midiático, nenhum acontecimento extraordinário que trouxesse algo diferente. Somente o reportar cotidiano de dificuldades no existir dos trabalhadores mais pobres. Em adendo, violência e corrupção compõem o cenário do que é comum. Assim o cotidiano, o encontradiço. Um belo dia, um grupo de jovens da cidade de São Paulo, articulados em torno de um solitário e isolado agrupamento, sem soldagem nacional, intitulado Movimento Passe Livre realiza uma reivindicação para redução de 20 centavos no preço da tarifa de ônibus. A tarifa passaria de R$3,20 para R$3,00 no curto prazo. Não satisfeitos com isso, o movimento pugna por uma bandeira mais ampla de tarifa zero para toda a população trabalhadora como estratégia a longo prazo. Em si, uma reivindicação de cunho econômico. Diminuir a carestia do viver. E ali estavam eles com suas bandeiras e palavras de chamamento marchando firmes pelas ruas para conversar com o prefeito. A receptividade foi péssima. Lá estava a polícia militar convocada pelo Governo do Estado do PSDB e com respaldo da Prefeitura do PT para ser enérgica contra aqueles jovens insolentes. Aconteceu o que sói acontecer com os movimentos reivindicatórios. Brandiram cassetetes, zuniram balas de borracha e a repressão se desencadeou com truculência e arbitrariedade para intimidar e chamar aqueles meninos subversivos à ordem. Até aí, sem novidade. O culpado pelo ato seria a polícia e não quem do alto emitiu o comando. Reproduzia-se o antigo videotape da forma usual como representantes no Estado do capital, mesmo pelo voto popular e vestes de paladinos de um pretenso bem comum para todos servir, lidam com representantes que reivindicam questões ligadas ao sobreviver do trabalho assalariado. Entretanto, esse surrado script insolitamente saiu fora do esquema por estupidez dos próprios mandatários, habituados a tratar pelo porrete aquilo que lhes ameaça a comodidade de ordenar e ser obedecido com prontidão. O governador de São Paulo elogia a atuação bestial da polícia. A Folha de São Paulo compactua em seu editorial. A repressão selvagem repercutiu inversamente. O Movimento Passe Livre convoca novas passeatas pelas redes sociais na semana em curso da manifestação seminal. As informações se capilarizam por todos os poros, agora com uma difusão digital, cibernética, a nova conquista humana da tecnologia a romper o ilhamento dos agrupamentos humanos, a ausência de troca de ideias. Despertam um sentimento de indignação coletiva. E diante de desmandos, malversações, abusos, desaforos e acintes, faz decênios perpetrados pela política tradicional contra a população, o que era acanhado, com início por uma tênue manifestação, assumiu desenhos de avalanche. O Movimento Passe Livre se vê engolfado por um turbilhão de insatisfação com os mais diversos matizes e nuances. Não mais somente tarifa de ônibus, subsídios, transferência de recursos da União para amparar o transporte nos municípios são questionados. Abrem precedente para uma arca de Noé de inconformismos e indignações. Como se fosse um gigantesco desabafo, um espinho, entalado na garganta pelo inconsciente coletivo, que precisava ser arrancado fora. Nesse instante de desengasgo, ou de catarse coletiva, para tornear uma expressão de psicanálise, de extravasar uma angústia de décadas, sucedeu uma ruptura sem igual. A manifestação perde sua organicidade ideológica, convocada por um movimento à esquerda, transitando para um movimento espontâneo, de insatisfação popular, sem controle, de múltiplas facetas, de improvisações, agora transbordante de paixão, e vazante de reflexão e ponderação de interpretação analítica sobre os fatos. Foi nesse ponto em que o script foi rasgado. Soltou uma represa. Passou a amedrontar a camada política, acostumada ao arrastar de boi de canga da população brasileira. Essa pintura de forte tom impressionista, da maneira como cada um sente o panorama das circunstâncias, coloriu o Brasil de norte a sul, leste a oeste. Cidades grandes e pequenas pareciam ter despertado de um soporífero adormecer coletivo. Curitiba seguiu a mesma espontaneidade. Inclusive Quatro Barras, pacata aldeia no pé da Serra, nos arrabaldes da capital do Paraná ergueu sua tímida voz. Mais ou menos 60 pessoas com seus cartazes de denúncia ou reclamos para uma cidade de 20 mil habitantes, num reunir de pessoas nunca sucedido antes em plena avenida principal em frente à Prefeitura. Aprazível pequeno rincão, de único semáforo, em que o Alcaide olha, enriquece do dia para a noite, e a Câmara dos Vereadores acata. Conivente, contente em receber salário tranquilo ao fim do mês. Preço do silêncio. Pois é. Surgiu nessa maçaroca um Acorda Brasil ainda indefinido, amalgamado depois pela ideia de nação, mais simples e óbvia, todavia sem imposição de nacionalismo doentio, nem de demarcada e proposital coloração conservadora. Apenas uma forma evidente de reunir gregos e troianos. Soou mais como reedição dos versos de Castro Alves no poema O Povo ao Poder: “A Praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/Cria águias em seu calor!” Mas, será que nessa maçaroca, não se conseguiria desenlear o fio que a amarrou? Quem sabe seja possível uma síntese. Três bandeiras se desfraldaram por pano de fundo: a ética; a inflação e o desperdício. A ética abrange o comportamento geral dos homens que fazem da política partidária e da feitura das leis um proveito pessoal, atolados até o pescoço com a corrupção ou com a conivência diante dela. A inflação focalizou os holofotes nas tarifas públicas de transporte coletivo. Com generalização dos aumentos, a gota d'água dos precários transportes públicos transbordou. E o desperdício com os cofres públicos fustigou certeiro as obras da Copa do Mundo em denúncia do que estava ausente em áreas prioritárias para a sociedade. E estes três ditames da discórdia foram os rastilhos de pólvora das manifestações. Desses três, um obteve destaque aos olhos de primeira impressão da multidão. A questão ética catalisou as atenções. Como puderam os políticos partidários, ocupantes do poder público, se desvirtuar tanto de uma função representativa republicana. O sufrágio universal foi uma sacrificada conquista da Revolução Francesa. Delegava o poder de escolha ao cidadão comum. Foi a forma de suprimir o poder absolutista dos reis de obrigar que camponeses pagassem pesados impostos e a aristocracia nenhum. Então o voto traz em si um sentido de igualdade e de avanço da humanidade. Esse primeiro sentido é de igualdade formal. Formalmente, diante da lei, todos são iguais. No entanto, de fato, a igualdade é intercalada no contexto de sistema econômico capitalista. Para se eleger é preciso dinheiro. E muito. Portanto, há uma igualdade de forma, diferente da igualdade diante da realidade. Os cidadãos são iguais. Mas, alguns possuem dinheiro para financiar uma campanha pessoal ou de seus indiretos representantes políticos e os outros muitos sem posses apenas de escolher opções em cartas assinaladas e conduzidas por esse mesmo dinheiro. A democracia do dinheiro. Portanto, a insistência nesse ponto: há uma igualdade de forma, mas não uma igualdade real, de conteúdo. Essas duas se divorciam em contradição. E pior ainda no capitalismo brasileiro, constituído sobre a oligarquia rural. Nasceu no poder de poucos sobre muitos em ligação com a propriedade da terra. Então nesse grande aprendizado histórico que agora se coloca para as massas, o primeiro degrau é de corrigir o que está mais patente aos sentidos como fonte principal dos males sociais, o que aparece bem na ponta do iceberg: a corrupção dos homens e do sistema eleitoral em seus desvirtuamentos. Os homens públicos desvirtuaram em proveito de si o sistema eleitoral. Legislaram em causa própria. Para se proteger e para ganhar. Mas, este homem burguês pertence ao capitalismo que já existia antes dele ter nascido. Então ele reproduz no âmbito do Congresso Nacional o mundo em que nasceu e cresceu. O mundo de passar rasteira, de levar vantagem, de explorar o próximo, de o que vale é o dinheiro graúdo, do desentendimento pela grana, do assassínio na disputa familiar pela herança, do escárnio da pobreza, do prazer na ostentação da riqueza. Esse é o degrau a vencer no momento. Apenas o primeiro de um longo aprendizado que vai explicitar que há uma estrutura capitalista muito, mas muito maior por debaixo, que guia nossas existências, que cria nossa mentalidade e que mesmo que alcance êxito em reduzir ao máximo a corrupção, é o mundo de grandes capitais financeiros, de natureza industrial e bancária, no exercício do governo de fato, embora sem aparecer. O aprendizado começou. Apenas. As transformações também. Impuseram uma outra agenda de prioridades aos governos e vai ser cobrada nas ruas e nas urnas. Há algo novo e diferente na atmosfera dos dias por suceder. A JANELA ECONÔMICA
é um espaço de divulgação das ideias e produção científica dos professores,
alunos e ex-alunos do Curso de Economia das Faculdades Integradas Santa Cruz de
Curitiba. |
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