Janela Econômica - “Lavoura Arcaica”: uma obra-prima de inteligência e sensibilidade

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Prof. Hugo E. Meza Pinto

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Apr 11, 2013, 7:26:53 PM4/11/13
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“Lavoura Arcaica”: uma obra-prima de inteligência e sensibilidade

Fábio San Martins


Com regularidade visito o acervo de filmes em DVD da Livraria Cultura, que é o melhor que conheço na cidade. Foi lá que descobri os meus Bergmans memoráveis.

Dias atrás deparei-me com um DVD que há mais de dez anos procurava incansavelmente: a película chinesa "As coisas simples da vida" de Edward Yang. 

O filme foi exibido na velha cinemateca  em 2002, justamente nos últimos momentos áureos dos cines da Fundação Cultural de Curitiba (Ritz na Rua Quinze, Luz na praça Sousa Andrade). Nessa época os cines da prefeitura exerciam papel de vanguarda no circuito cinematográfico curitibano, exibindo produções das mais diversas nacionalidades e no geral a margem das grandes redes de distribuição de longas metragens. Assisti “As coisas simples da vida” na pequena sala da cinemateca e nas três vezes que lá estive para me emocionar e pensar sobre as questões humanas sugeridas por Yang a sala estava lotada, com várias pessoas sentadas no chão. Esse cenário (que nos dias de hoje pode parecer espantoso) refletia não apenas a densidade do tema de interesse geral conduzido com maestria por Yang mas também revelava existência de público sedento e exigente em gostos artísticos que ansiava por ter acesso a produções cinematográficas que fugiam das obviedades e idiotices dos “enlatados americanos”.  Consegui no mesmo ano de 2002 mediante generosa ajuda de uma amiga daqueles já velhos tempos copiar "As coisas simples da vida"em VHS mas por azar o produto se deteriorou com os anos a ponto de não ser mais possível ser utilizado e nem restaurado. Há muito tempo, então, procuro sem cessar a película em sites e tinha informações seguras de que o produto estava esgotado. Para minha feliz surpresa me deparei dias atrás com o DVD nas estantes suntuosas da "Cultura". Fiquei sinceramente emocionado como se descobrisse tesouro perdido, e de fato a narrativa de quase três horas contêm um mundo de sugestões de beleza e de reflexão sobre a condição humana que justificavam meu maravilhamento e alegria. Junto com a recuperação de uma obra tão bela e profunda estava também aberta a possibilidade de ao tomar contato novamente com o conteúdo do filme rememorar meu passado recente e ver depois de tantos anos a mudança do que eu era e do que sou hoje.

Essa trivial história é apenas um pequeno preâmbulo para justificar a reedição de um artigo que escrevi sobre “Lavoura Arcaica” em maio de 2006 nesta Janela. O romance “Lavoura Arcaica”, publicado originalmente em 1975, foi transformado em filme por Fernando de Carvalho em 2001. No ano seguinte a velha cinemateca exibiu o longa-metragem de quase 3 horas e que contava com atores aquilatados como o saudoso Raul Cortês, o jovem Selton Mello e a revelação na época Simone Spoladore (curitibana da gema). E que produção. Emprestei no ano passado o meu disco de DVD ao meu amigo e saudoso Manuel Crosckey, que amava cinema. Ele confessou-me depois, na sua admirável locução espanholada, que havia se enganado quando avaliava “O pagador de promessas” (anos 60) como a mais bela produção brasileira que já havia assistido, uma afirmação, para mim, de alto valor, na medida em que velho sábio conhecia como poucos o conteúdo intrínseco da arte cinematográfica. “Lavoura Arcaica” é junto com "As coisas simples da vida" os dois inesquecíveis filmes que assisti em Curitiba. Por sorte adquiri "Lavoura Arcaica" anos atrás antes que se esgotasse (hoje apenas alguns apaixonados pela sétima arte podem desfrutar privadamente dessa grande obra do cinema brasileiro). Foi por intermédio de “Lavoura Arcaica” o filme que entrei em contato com o romance “Lavoura Arcaica” e graças a sua leitura pude usufruir de uma das mais impressionantes experiências literárias  minha vida. Segue abaixo reprodução do artigo editado em maio de 2006 pela “Janela Econômica”.

...



Indivíduo e coletividade em "Lavoura Arcaica (LA) "

Fábio Luiz San Martins 

Maio de 2006


"Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu sopro..."

 (André, em Lavoura Arcaica, p.109)


Lavoura Arcaica (LA) de Raduan Nassar, publicado pela primeira vez em 1975, é considerado pela crítica literária especializada uma obra clássica da literatura de ficção brasileira do século XX.

 Com estilo vigoroso e poético, Nassar reconta a parábola do filho pródigo, tendo como núcleo uma família camponesa: André, o protagonista do enredo, carrega os segredos inconfessáveis da família: ama Ana, sua irmã, e é correspondido nesse amor, mas impossibilitado de viver essa paixão incestuosa, duplamente dolorosa pela rejeição culpada de Ana e pelos austeros códigos de conduta do Pai, André resolve aventurar-se nas decepções, nas misérias e na solidão de uma vida fora da fazenda e dos laços familiares. 

Pedro, o filho primogênito, é encarregado pela Mãe de descobrir o paradeiro do filho pródigo e trazê-lo novamente para o seio da família, que desde a partida de André mergulhara em sombria desolação e tristeza. Pedro cumpre sua missão e tem-se  a partir do retorno de André o desenvolvimento trágico da trama.

No mais longo e tenso capítulo da obra,  André e o Pai dialogam sobre os motivos que o levaram abandonar a família.  

O Pai constata marcas no rosto de André, que desfiguram suas adolescentes expressões e afirma ao filho que elas são conseqüências de ele ter "abandonado a casa por uma vida pródiga" (LA, p. 158). 

André não nega que levou fora da família uma vida pródiga, mas diz ao Pai que "a prodigalidade também existia em nossa casa" (LA, p. 158). 

O Pai se espanta com esta afirmação de André, na medida em que a fazenda, embora modesta de recursos e baseada no trabalho solidário de todos os integrantes da família, jamais deixou de prover as necessidades básicas dos filhos: "Nossa mesa é comedida, é austera, não existe", diz o Pai, "desperdício nela, salvo nos dias de festa" (LA, p. 159). André confunde as noções do rigoroso e sisudo Pai afirmando que essa mesa, tão generosa dos bens necessários, não continha os "alimentos" que ele ansiava para "apaziguar sua fome"(LA, p. 159). 

Que espécie de "fome" era aquela, indaga o velho Pai cada vez mais convencido da "loucura do filho", que não era satisfeita com a colheita dos produtos da terra lavrada pela própria família, com o pão amassado pelas mãos diligentes da Mãe e das irmãs? O Pai pede a André mais "clareza" nas suas palavras, que ordene o seu pensamento e responda "por que abandonou a família".

André lhe diz que jamais "abandonou" a família :  a fuga da casa era uma forma que ele encontrou para poupar a família de vê-lo "sobrevivendo à custa das (...) próprias víceras"(LA, p. 160), de evitar expor suas carências que não lhe "apaziguavam a fome"; como "queria o (...) lugar na mesa da família" e não o tinha partiu para encontrá-lo em outras "mesas" pelo mundo afora. 

O Pai vê nessas palavras de André sintoma de alguma "enfermidade" ("Você está enfermo, meu filho..." (LA, p. 161), pois não condizem com a realidade: jamais faltou pão e outros bens necessários à vida da família, e os pais e irmãos nunca proibiram que André se ausentasse da mesa quando fosse "repartido o pão"(LA, p. 161); ao contrário, continua o Pai, foi quando abandonou a família que a presença dele mais foi sentida por todos eles: como, pergunta o cada vez mais surpreso Pai, foge de casa para encontrar em outros lares, em mesa de estranhos, o lugar que era dele no seio da família?

O Pai não poderia compreender as aspirações do filho, pois André não exigia apenas a presença física na mesa da família, dividindo com os irmãos e os pais o "pão" e outros alimentos para simplesmente sobreviver: André almejava compartilhar com a família seus sentimentos e incertezas, dividir e consumir outro "pão": sua individualidade e liberdade: "... eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava"(LA, p. 165). 

Ele reclama, pois, "direito à vida" (LA, p. 166) e considera o ambiente familiar regido por normas e leis que lhe são "hostis"(LA, p. 166), porque incapazes de saciar e "apaziguar sua fome"; André aspirava à  liberdade e a uma vida que não se resumisse a uma cansativa jornada de trabalho na lavoura e outras tarefas domésticas ("Ninguém vive só de semear, pai" (LA, p. 163). O fato de não ter o seu "lugar na mesa da família" levava André a representar, "vivendo na pele de terceiros" (LA, p. 164): como achava isso uma "pantomima"(LA, p. 164), sufocando-o de um modo intolerável, resolveu abandonar a fazenda.

Esse magnífico diálogo não mostra, a meu ver, apenas choque entre "tradição e liberdade", entre as "solenes" leis do patriarca e as exigências de vida e liberdade do filho. Revela, sobretudo, que a histórica luta humana por liberdade e vida dignificante requerem bases materiais maduras para que essas nobres aspirações realizem-se. 

André era membro de uma família patriarcal, cujas condições de existência material se erguiam sobre bases precárias e pouco evoluídas: a produção era voltada para o auto-consumo da família e até onde se extrai da leitura do belo romance nem sequer havia excedente de produtos para intercâmbio com outras comunidades camponesas: 


"...e é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente que ainda brota lá do fundo; e recuo em nossas fadigas, e recuo em tanta luta exausta,e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigência,e, condenado como vício, a prédica constante contra o desperdício, apontado sempre como ofensa grave ao trabalho; e reencontro a mensagem morna de cenhos e sobrolhos, e as nossas vergonhas escondidas no rubor das faces,e a angústia ácida de um pito vindo a propósito, e uma disciplina às vezes descarnada,e também uma escola de meninos artesãos, defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas próprias mãos, e uma lei ainda mais rígida,dispondo que era lá mesmo na fazenda que devia ser amassado o nosso pão: nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pão-de-casa, e era na hora de reparti-lo que concluímos, três vezes ao dia, o nosso ritual de austeridade,sendo que era também na mesa,mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da justiça"(LA, p. 79)


Os meios de ganhar-se a vida e reproduzi-la em condições mínimas e estáveis eram bastante limitados na família de André, de modo que o coletivo devia, por isso,  vir à frente das necessidades individuais. Exigia-se que os membros individuais sacrificassem suas aspirações pessoais a favor das necessidades do coletivo e era o Pai, o patriarca da família (guardião das tradições e das leis familiares), o amálgama que por sua autoridade confere unidade ao todo, disciplina as peças individuais que bem ajustadas podem, assim,  garantir a sobrevivência continuada da família. 

As rigorosas normas de conduta, de vigilância permanente, a austeridade no trato dos bens da família e também no trabalho do campo não decorriam, como acusava André, de uma imposição brutal da vontade do Pai, mas nasciam das próprias condições da vida familiar: estas eram muito precárias e modestas para permitir que os indivíduos pudessem expressar suas aspirações ao mesmo tempo garantir a sobrevivência familiar. Se o individual se sobrepusesse ao coletivo corria-se o risco de a vida e a sobrevivência da família fragmentar e  degenerar-se; a inconteste autoridade do patriarca, as suas exigências de disciplina no trabalho e nos hábitos, eram necessárias portanto para manter viva a unidade familiar enquanto durasse a mesquinhez na reprodução da existência material da família. Nos sermões do patriarca, antes das refeições, eram sempre repetidas as seguintes palavras:


"...humilde, o homem abandona sua individualidade para  fazer parte de uma unidade maior,que é de onde retira sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas,é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais sublimes recompensas; nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir, onde estiver um há de estar o irmão também..." (LA, p. 148)


A aspereza do diálogo do Pai e de André demonstra mútua incompreensão: o Pai não entende as idéias do filho, reputa-as de "extravagantes", de "disparates", reflexos de "perturbações" e  até de "murmúrios do demônio" (LA, p. 166 p.168) porque as aspirações de André se realizadas alterariam todo o quadro tradicional da existência familiar, relegando o coletivo a um plano inferior ao do individual, sem que, entretanto, as condições materiais que propiciassem tão dramática mudança ainda estivessem prontas. 

André, por sua vez, não compreende também as razões da  dureza e rigidez do Pai: considera-o seu "carcereiro" e "algoz" (LA, p. 164) e não se coloca a questão (porque tal como o Pai não está preparado para propô-la) se suas justas e nobres reivindicações são possíveis de ser atendidas por um modo de produção da vida tão modesto e primário; reconhecendo-se impotente diante do poder e da autoridade do Pai, André recorre ao irracional: "...aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente,aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo,ou alimentar a expectativa da destruição de tudo..." (LA, p. 166); resigna-se passivamente à realidade, na medida em que não podendo mudá-la e sentido-se incapaz de adaptar-se prefere então a destruição de tudo.

Esse é o sentido da conclusão trágica desse notável romance: durante a festa em que a família e amigos comemoravam o retorno de André, aparece Ana surpreendentemente vestida de "dançarina oriental", decorada de adereços e objetos de uma caixa furtada de André e que este ganhara das mulheres que conheceu pelo mundo. Ao mesmo tempo, o Pai toma conhecimento através de Pedro do incesto e parte furioso com um "alfanje" nas mãos rumo à erótica dançarina, golpeando-a mortalmente: o horror da trágica cena apavora a família e o romance se encerra com os gritos e suplícios da Mãe e filhos.

O destino trágico dos personagens centrais de "Lavoura Arcaica" não decorre somente de a relação incestuosa dos irmãos contradizer as piedosas normas ancestrais guardadas com zelo irredutível pelo patriarca. 

O conflito entre as aspirações de liberdade e vida dignificantes, representadas por André e Ana e a relação amorosa deles, colidem-se com as condições materiais da vida familiar, inadequadas porque imaturas para realizá-las; a solução desse choque e antagonismo deve, por isso,  concluir-se tragicamente. Não é, creio, o incesto (para escândalo de muitos) o núcleo do trágico, mas o conflito insolúvel, nas condições de vida familiar, entre as aspirações de André de "um lugar na mesa da família" e as possibilidades de realizá-las. (È o que ocorre também em outro momento do romance: Ana depois de entregar-se amorosamente a André mergulha num sentimento de pesarosa culpa e recolhe-se na capela da fazenda; André tenta convencê-la do seu amor, mas Ana mantém-se impassível, ajoelhada no altar, rezando indiferente aos apelos de André; este, então, é tomado por uma violenta cólera pela rejeição de Ana e poder-se-ia questionar o ato extremo de André e seu acesso de fúria e impaciência: por que ele não aguardou que os sentimentos culposos de Ana não fossem absorvidos com o tempo? Quem sabe dias depois ela não cederia a seus apelos apaixonados? Se Raduan Nassar tivesse desenvolvido a história conforme estas indagações não teria produzido boa literatura mas um piegas roteiro para novela mexicana: a grande literatura de ficção busca os extremos nas relações humanas, aonde os conflitos podem ser ao máximo explorados, e os personagens são apenas veículos dessas tensões e forças contraditórias que movem concretamente os homens desde sempre na História)

 

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A  JANELA ECONÔMICA é um espaço de divulgação das idéias e produção científica dos professores, alunos e ex-alunos do Curso de Economia das Faculdades Integradas Santa Cruz de Curitiba.
             - Cada artigo é de responsabilidade dos autores e as ideias nele inseridos, não necessariamente, refletem opensamento do curso.
              - O objetivo deste espaço é mostrar a importância da formação do economista na sociedade.


 






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