- Hoje está-te a dar para a metafísica! - exclamou a Susana. - Isso dá-te
muitas vezes ou é só quando estás com a pedra?
- É o meu modo de ser. De vez em quando gosto de reflectir sobre a vida,
tentar perceber um pouco os absurdos do quotidiano, coisas em que a maioria
das pessoas nem sequer repara, tão ávidas andam em gozar a vida... Às vezes
é bom parar, recolhermo-nos à sombra duma árvore e pensar um pouco...
- Foi assim que o Newton descobriu a lei da atracção universal - disse a
Ruth.
- Mas foi preciso cair-lhe uma maçã em cima da pinha...
- Ah, ah, ah, ah, ah...
- Se em vez duma maçã, tivesse sido uma abóbora, hoje não conheceríamos a
mais importante lei que rege o universo.
- Porquê?
- Porque o homenzinho teria rachado o caco, e talvez até nem sobrevivesse
ao choque...
- Ora aí está um pequeno pormenor em que nunca tinha pensado - confessou
a Inês.
- Como este, muitos outros há, que por serem pequeninos, ninguém repara
neles. Por exemplo, já repararam na grande hipocrisia em que assenta a
cultura judaico-cristã?
- Não estou a ver... - observou a Inês.
- Terem a lata de chamar Pai a Deus...
- Onde é que está a hipocrisia? Não me vais dizer que não há crentes
sinceros e bem intencionados...
- Contam-se pelos dedos duma mão, filha. A maioria dos crentes diz que
ama Deus, por pura conveniência, porque pressente que Deus sempre lhes pode
dar uma ajudazinha nos seus egoísmos pessoais. Já pensaram porque é que
Fátima atrai multidões? Para lá convergem todas as desgraças e misérias
deste país: o coxo e o marreco, o doentinho e o comerciante arruínado, a
majestade e o sodomita; tudo ali vai desaguar como num imenso esgoto, mas
para pedir favores ao Céu...
- Acho que estás a ser hipercrítico demais. Acaso existe algum mal em pedir
ajuda a Deus ou seja a quem for, quando estamos à rasca? - atalhou a
Rosária.
- Não, se o nosso pedido for coerente e não assentar numa hipocrisia...
- Lá vens tu outra vez com a hipocrisia. Mas que hipocrisia?
- A hipocrisia dum gajo dizer que Deus é Pai e Amor, que o ama sobre
todas as coisas e outras tretas, quando na prática, tenta evitá-lo a todo o
custo.
- Evitá-lo? Como? Não estou a perceber...
- Não dizem os cristãos que a morte é o encontro com o Pai? Se é, então
porque temem tanto o encontro com o Pai? Porque têm tanto medo de ir desta
para melhor? Acaso deverá o filho ter receio de encontrar o Pai que tanto
diz amar?
- Porque a morte é um grande mistério e ninguém sabe ao certo o que está
do lado de lá, (se é que existe o lado de lá...) - comentou a Susana.
- Não, filhas, não é nada disso. A verdade é que as pessoas, no fundo ,
no fundo, não estão seguras nas suas crenças, não acreditam verdadeiramente
no que dizem os padres, porque se acreditassem, a morte deixaria de ser
encarada como uma tragédia, passaria a ser uma coisa natural...
- Natural? Chamas natural a um gajo esticar ignobilmente o pernil, para
depois ir fazer tijolo per omnia saecula saeculorum? Até se transformar em
pó? Tem juízo, meu.
- Bem, natural, natural, confesso que não será... mas o que queres que eu
te faça? Fui eu que fiz a morte tão feia e tão repulsiva?
- Talvez esteja aí o dedo do Criador - disse a Inês. - Se a morte fosse
perfumada, bela e rodeada de prazer, como é por exemplo a sexualidade, quem
é que suportava esta puta de vida e não se tinha já suicidado? Toda a gente
quereria dar o peido mestre para gozar no Além as bem-aventuranças, na
companhia do Pai...
- Ah, ah, ah, ah, ah...
- Bem observado, Inês, bem observado! - exclamou a Ruth. - Há muito que não
cagavas uma sentença tão judiciosa.
Ao ouvirem esta tudo desatou a rir, incluindo a Rita, a mais circunspecta
do grupo. O Führer também riu à farta, claro está. Quando se recompôs
continuou no mesmo tom shopenhaueriano:
- O homem é tão egoísta e tão fodido que Deus não confiou nele para
assegurar a continuidade da espécie. Ele sabia que se o acto procriador
exigisse um pouco de sacrifício, a criação estava condenada a desaparecer
mais cedo ou mais tarde. Para evitar isso, rodeou o acto sexual do mais
intenso e incomparável dos prazeres...
- Nesse ponto estamos todos de acordo. - disse a Ruth. - Não há neste
mundo prazer mais baril do que aquele que advém duma boa foda... Falo por
mim...
- Ah, ah, ah, ah, ah, ah...
- Mas até no sexo o homem achou maneira de contrariar os desígnios de
Deus, (ou da Natureza, se quiserem...) - continuou o Führer. - Veja-se o
caso dos chamados tarados sexuais: dos paneleiros, das fufas, dos que
praticam a bestialidade e por aí fora... Tirando o prazer, não se descortina
um fim útil que justifiquem tais actos em si mesmos. Talvez seja por isso
que são considerados pela religião como actos "contra-natura" e, como tal,
abomináveis aos olhos de Deus, porquanto não se enquadram no seu Plano, que
é, em última análise, o de assegurar a continuidade da vida...
- Vai-te Afonso! - disse o Virgílio. - Não posso com a moral fradesca que
estás p'raí a debitar, dessa de insinuares que a foda só faz sentido quando
é para fazer meninos...
- Essa é a doutrina oficial da igreja, meu, e não aquilo que eu penso,
topas? Quanto ao vai-te Afonso, não quererás ir tu para a ponte que partiu?
- Ah,ah,ah,ah,ah.
Após este pequeno arrufo a conversa prosseguiu, oscilando entre o sério e
a brejeirice.
- O que mais me dana - diz a Inês, - é a atitude fundamentalista da igreja
no que toca à homossexualidade e a outros comportamentos desviantes. Eu, por
exemplo, tenho um amigo que é paneleiro e se eu gosto dele!
- Não nos vais dizer que gostavas dele para marido... - comentou a Ruth,
cheia de malícia.
- Ó pá, para marido também não, mas a vida não é só sexo e paixão,
percebes? Há também a amizade que é um sentimento muito bonito.
- Lá isso é verdade - disseram várias vozes em uníssono.
- Sobre a amizade, o amor, a paixão e outras tretas já eu estou farta de
ler em romances de cordel - disse a Ruth. - O que eu gostava de saber é o
que diz a Bíblia sobre a questão do adultério, da homossexualidade e outras
coisas do género. Talvez ali o Miguel...
Ao ouvir o seu nome, o Führer não se fez rogado, começando por dizer:
- O conceito judaico-cristão de adultério não foi sempre o mesmo ao longo
dos tempos. Para os judeus do Antigo Testamento a mulher virgem era
considerada propriedade do pai; sendo casada pertencia ao marido. Se não
tivesse pai nem marido era considerada livre, o que significava que não
tinha dono. Qualquer homem, solteiro ou casado, podia fornicar com ela à
vontade que não seria punido por isso, a menos que usasse da violência,
claro. Portanto só quem desflorasse uma virgem sob a alçada paterna, ou
mantivesse relações sexuais com mulher casada é que estava feito ao bife,
porque cometia um crime contra a lei e contra o direito de propriedade.
No caso da mulher ser virgem e, portanto, não desposada, a lei era até
um bocado condescendente. O homem só tinha que pagar-lhe o dote e tomá-la
como esposa.
- Mesmo sendo casado? - perguntou a Rita.
- Sim, filha, mesmo sendo casado, porque a lei permitia que um homem
pudesse ter várias mulheres. Quer isto dizer que se um homem casado
fornicasse uma virgem não cometia adultério, mas tão somente um crime contra
o direito de propriedade.
- E se o pai não quisesse conceder a filha ao violador?
- Nesse caso tinha que se contentar com cinquenta siclos de prata que era a
indemnização fixada para o dote das virgens.
- E se a rapariga estivesse noiva?
- Aí a coisa fiava mais fino. Numa situação dessas tanto o homem como a
mulher eram considerados adúlteros e a pena que lhes estava reservada era a
morte por lapidação.
- Eram mortos à pedrada? - perguntaram as raparigas um tanto ou
quanto incrédulas.
- Sim filhas, parece inacreditável que um livro tão sagrado como a Bíblia
defenda uma tal barbaridade, mas é o que lá vem escrito preto no branco:
"Se uma donzela, ainda virgem, estiver noiva e se um homem, encontrando-a na
cidade coabitar com ela, levareis os dois para a porta dessa cidade e
apedrejá-los-eis até que a morte sobrevenha."
- Parece que nem quero crer - suspirou a Ruth. - Em que parte da Bíblia é
que isso vem escrito?
- No Deuteronômio, capítulo 22, versículo 23 - respondeu o Führer sem
hesitar.
- Foda-se! - disse o Virgílio de olhos esbugalhados de espanto -, este gajo
até sabe os números dos capítulos e dos versículos!...
As raparigas ficaram tão abaladas com a citação bíblica que nem
repararam nas palavras do pobre Virgílio. Estavam meio cismáticas, pensando
talvez que tudo aquilo era demasiado cruel e desumano para ser verdade.
Tinham ouvido na missa e na catequese que a Bíblia era a palavra de Deus, a
revelação do Todo-Poderoso ao povo eleito, que Deus era Pai e Amor, que era
infinitamente bom e misericordioso e afinal...
- Ouve lá Miguel - perguntou de novo a Ruth, - e se a rapariga fosse
obrigada a mocar pela violência? Também seria condenada?
- Depende. Se a violação tivesse ocorrido na cidade teria de apresentar
testemunhas em como tinha gritado e pedido ajuda. Se o caso se tivesse
passado no campo bastaria ela dizer que tinha gritado para ficar
imediatamente absolvida, porque ninguém, em princípio, poderia provar o
contrário. Não sendo clara a culpabilidade da ré é certo que uma condenação
à pena capital iria levantar muitas dúvidas e assim sendo a sentença só
podia ser a absolvição.
Duma certa maneira podemos dizer que já nessa época vigorava o princípio
jurisprudencial in dubio pro reo ou, para utilizar uma linguagem mais
precisa: um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a
favor do arguido. O homem, pelo contrário, nada o poderia salvar.
Depois dum breve silêncio, o Führer, continuou:
- Em questões de natureza sexual a Bíblia chega a ser dum fundamentalismo
atroz. Não era só o adultério que era punido com a morte, bastava um homem
acusar a noiva de que não tinha os três na noite de núpcias, para o caso ser
levado à presença dos sacerdotes, no tribunal. O ónus da prova da
virgindade cabia aos pais da rapariga. Se estes não conseguissem prová-la,
exibindo os lençóis com os sinais requeridos, a donzela era conduzida à
porta da casa paterna e aí apedrejada até à morte.
- Foda-se! - voltou a dizer o Virgílio. - Esses judeus eram do caralho!
Imaginem só que a gaja tinha o hímen complacente...
- Tens razão, pá - disse a Ruth. - Embora raros, há casos em que o
desfloramento da mulher não é acompanhado de derramamento de sangue.
- É verdade - confirmou o Führer, - A literatura médica regista alguns
casos concretos embora não muitos, segundo tenho ouvido dizer.
Mais uma curta pausa e acrescentou:
Relativamente ao adultério queria dizer que o Novo Testamento encara a
questão com um espírito totalmente novo. No evangelho de João há aquele
célebre episódio em que os escribas e fariseus perguntam a Jesus o que fazer
a uma mulher apanhada em adultério. A resposta de Jesus é extraordinária:
"Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra!"
Vendo que todos se tinham afastado, Jesus voltou-se para a mulher e
disse-lhe:
" - Onde estão eles? Ninguém te condenou?"
" - Ninguém, Senhor".
" - Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar".
Ora, como todos sabem, Moisés, na Lei, mandava apedrejar tais mulheres. Ao
perdoar à adúltera Jesus provoca uma ruptura com o maior vulto do Antigo
Testamento. E com tal atitude não só demonstrou um grande coração como
também revelou uma enorme coragem. A coragem de contestar uma prescrição
bárbara e injusta do maior legislador dos hebreus, propondo outra baseada no
amor e no perdão.
( to be continued )
Agnus Dei