Desejo e Prazer
Gilles Deleuze
DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325,
oct, 1994, pp. 57-65.
A - Uma das teses essenciais de Vigiar e Punir* dizia respeito aos
dispositivos de poder. Ela me parecia
essencial sob três aspectos:
1) Em si mesma e em relação a certo esquerdismo, notei a
profunda novidade política dessa concepção
de poder, por oposição a toda teoria do estado.
2) Em relação a Michel, ela era essencial, pois lhe
permitia ultrapassar a dualidade das formações
discursivas e das formações não-discursivas, que subsistia em A
Arqueologia do Saber, e explicar como os
dois tipos de formações se distribuíam ou se articulavam segmento por
segmento (sem que um fosse reduzido
ao outro, sem que fossem levados a se assemelharem etc.). Não se
tratava de suprimir a distinção, mas de
encontrar uma razão de suas relações.
3) Ela era também essencial graças a uma conseqüência
precisa: os dispositivos de poder não procediam
por repressão e nem por ideologia. Havia, portanto, ruptura com uma
alternativa que era mais ou menos aceita
por todo mundo. Em vez de repressão ou ideologia, VP formava um
conceito de normalização e de disciplinas.
B. Parecia-me que essa tese sobre os dispositivos de poder
tinha duas direções, de maneira alguma
contraditórias, mas distintas. De qualquer modo, esses dispositivos
eram irredutíveis a um aparelho de Estado.
Porém, de acordo com uma direção, eles consistiam numa multiplicidade
difusa, heterogênea, a dos
microdispositivos. De acordo com a outra direção, eles remetiam a um
diagrama, a uma espécie de máquina
abstrata imanente a todo o campo social (o panoptismo, por exemplo,
definido pela função geral de ver sem ser
visto, aplicável a uma multiplicidade qualquer). Eram como duas
direções de microanálise, igualmente
importantes, pois a Segunda mostrava que Michel não se contentava com
uma "disseminação".
C- O livro A vontade de saber dá um novo passo em ralação a VP. O
ponto de vista permanece exatamente
este: nem repressão, nem ideologia. Porém, e para dizê-lo em poucas
palavras, os dispositivos de poder não se
contentam em ser normalizantes, mas tendem a ser constituintes (da
sexualidade). Eles não se contentam em
formar saberes, mas são constitutivos da verdade (verdade do poder).
Já não mais se referem a "categorias",
apesar de tudo negativas (loucura, delinqüência como objeto de
confinamento), mas a uma categoria dita positiva
(sexualidade). Este último ponto é confirmado pela entrevista dada a
La Quinzaine Littéraire (FOUCAULT,
Michel. Les rapports de pouvoir passent à l'interieur des corps. La
Quinzaine Littéraire, nº 247, p. 4-6,
1-15/jan. 1977. Entrevista com Luccete Finas). A esse respeito,
portanto, creio ter havido na VS um novo avanço
na análise. Eis o perigo: será que Michel retorna a um análogo a um
"sujeito constituinte", e por que experimenta
ele a necessidade de ressuscitar a verdade, mesmo fazendo dela um novo
conceito? Penso que essas falsas
questões, que não são minhas, serão levantadas enquanto Michel não
tiver explicado mais.
D- Para mim, uma primeira questão era a natureza da
microanálise que Michel estabelecia desde VP. Entre
"micro" e "macro", a diferença não era evidentemente de tamanho, no
sentido em que microdispositivos seriam
concernentes a pequenos grupos, pois a família, por exemplo, não tem
menos extensão que qualquer outra
formação. Trata-se menos ainda de um dualismo extrínseco, pois há
microdispositivos imanentes ao aparelho de
Estado, assim como há segmentos de aparelho de Estado que penetram
também os microdispositivos. Não há
dualismo extrínseco, mas imanência completa das duas dimensões. Seria
então preciso compreender que a
diferença é de escala? Uma página de VS (p. 132) recusa explicitamente
essa interpretação. Mas essa página
parece remeter o macro ao modelo estratégico e o micro ao modelo
tático. Isso incomoda, pois me parece que
os microdispositivos, para Michel, têm toda uma dimensão estratégica,
sobretudo se leva-se em conta que esse
diagrama do qual são eles inseparáveis. Uma outra direção seria a das
"relações de força", vistas como aquilo que
determina o micro (cf., notadamente, a entrevista publicada em La
Quinzaine). Mas Michel, creio eu, não
desenvolveu ainda esse ponto; sua concepção original das relações de
força, o que ele denomina relação de
força, deve ser um conceito tão novo quanto todo o resto.
Em todo caso, há diferença de natureza, heterogeneidade
entre micro e macro, o que de modo algum
exclui a imanência dos dois. Mas, no limite, minha questão seria a
seguinte: essa diferença de natureza permite
que se fale ainda em dispositivos de poder? A noção de Estado não é
aplicável no nível de uma microanálise,
pois, como diz Michel, não se trata de miniaturizar o Estado. Mas
seria mais aplicável a noção de poder? Não é
também ela a miniaturização de um conceito global?
Chego, assim, a minha primeira diferença com Michel,
atualmente. Se com Félix Guattari, falo em
agenciamento de desejo, é por não estar seguro de que os
microdispositivos possam ser descritos em termos de
poder. Para mim, agenciamento de desejo marca que o desejo jamais é
uma determinação "natural", nem
"expontânea". Por exemplo, a feudalidade é um agenciamento que põe em
jogo novas relações com o animal (o
cavalo), com a terra, com a desterritorialização (a corrida do
cavaleiro, a Cruzada), com as mulheres (o amor
cavalheiresco)... etc. Agenciamentos totalmente loucos, mas sempre
historicamente assinaláveis. De minha
parte, diria que o desejo circula nesse agenciamento de heterogêneos,
nessa espécie de "simbiose": o desejo
une-se a um agenciamento determinado; há um co-funcionamento.
Seguramente, um agenciamento de desejo
comportará dispositivos de poder (poderes feudais, por exemplo), mas
será preciso situá-los entre os diferentes
componentes do agenciamento. Conforme um primeiro eixo, pode-se
descobrir nos agenciamentos de desejo os
estados de coisas e as enunciações (o que estaria em conformidade com
a distinção feita por Michel dos dois
tipos de formações ou de multiplicidades). Conforme um outro eixo,
seriam distinguidas as territorialidades ou
reterritorializações e os movimentos de desterritorialização que
desencadeiam um agenciamento (por exemplo,
todos os movimentos de desterritorialização que arrebatam a Igreja, a
cavalaria, os camponeses). Os dispositivos
de poder surgiriam em toda parte em que se operam
reterritorializações, mesmo abstratas. Logo, os dispositivos
de poder seriam um componente dos agenciamentos. Mas os agenciamentos
também comportariam pontas de
desterritorialização. Em suma, não seriam os dispositivos de poder que
agenciariam ou que seriam constituintes,
mas os agenciamentos de desejo é que disseminariam formações de poder
segundo uma de suas dimensões. Isso
me permitiriam responder a seguinte questão, necessária para mim, mas
não para Michel: como o poder pode
ser desejado? Portanto, a primeira diferença seria esta: para mim o
poder é uma afecção do desejo
(reafirmando-se que jamais o desejo é uma "realidade natural"). Tudo
isso é muito aproximativo: há relações
mais complicadas, que não aponto, entre os dois movimentos, de
desterritorialização e de reterritorialização.
Mas é nesse sentido que o desejo me pareceria ser primeiro,
apresentando-se, assim, como elemento de uma
microanálise.
E- Não deixo de seguir Michel num ponto que me parece
fundamental: nem ideologia, nem repressão; por
exemplo, os enunciados, ou, sobretudo as enunciações, nada têm a ver
com ideologia. Os agenciamentos de
desejo nada têm a ver com repressão. Mas, evidentemente, em relação
aos nossos dispositivos de poder, não
tenho a mesma firmeza de Michel; fico indeciso, visto o estatuto
ambíguo que eles apresentam para mim. Em
VP, Michel diz que eles normalizam e disciplinam, eu diria que eles
codificam e reterritorializam (e suponho
que haja ai algo mais que uma distinção de palavras). Mas, visto que
afirmo o primado do desejo sobre o poder,
ou o caráter secundário que tomam para mim os dispositivos de poder,
as operações destes guardam um efeito
repressivo, pois esmagam não o desejo como dado natural, mas as pontas
dos agenciamentos do desejo. Tomo
uma das teses mais belas da VS: o dispositivo da sexualidade assenta a
sexualidade sobre o sexo (sobre a
diferença de sexos... etc.; e a psicanálise está inteiramente à
vontade na tentativa desse rebatimento). Vejo ai um
efeito de repressão, precisamente na fronteira do micro e do macro: a
sexualidade – como agenciamento de
desejo historicamente variável e determinável, com suas pontas de
desterritorialização, de fluxo e de
combinações – será assentada sobre uma instancia molar, "o sexo".
Mesmo que os procedimentos desse
rebatimento não sejam repressivos, o efeito (não ideológico) é
repressivo, uma vez que os agenciamentos são
rompidos não só em suas potencialidades, mas em sua microrrealidade.
Desse modo, os agenciamentos só
podem existir como fantasmas, que os mudam ou os desviam
completamente, ou como coisas vergonhosas...
etc. Eis um pequeno problema que muito me interessa: por que certos
"perturbados", ao contrário do enuréxico e
do anoréxico, por exemplo, são mais passíveis e até mesmo dependentes
da vergonha? Tenho pois, necessidade
de certo conceito de repressão sobre uma espontaneidade, mas porque,
tendo os agenciamentos coletivos
muitas dimensões, os dispositivos de poder seriam somente uma delas.
F- Eis outro ponto fundamental: creio que a tese "nem
repressão – nem ideologia" tem um correlato, e
talvez ela própria dependa desse correlato. Um campo social não se
define por suas contradições. A noção de
contradição é global, inadequada, e que já implica cumplicidade dos
"contraditórios" nos dispositivos de poder
(por exemplo, as duas classes, a burguesia e o proletariado). Com
efeito, parece-me que uma grande novidade da
teoria do poder, em Michel, seria ainda a seguinte: uma sociedade não
se contradiz, ou se contradiz muito
pouco. Mais eis sua resposta: ela se estrategiza, ela estrategiza.
Acho isso muito bom; vejo bem a imensa
diferença (estratégia - contradição), e eu precisaria ler Clausewitz
sob esse aspecto. Não me sinto à vontade
nessa idéia.
De minha parte, diria o seguinte: uma sociedade, um campo
social não se contradiz, mas ele foge, e isto é
primeiro. Ele foge de antemão por todos os lados; as linhas de fuga é
que são primeiras (mesmo que primeiro
não seja cronológico). Longe de estar fora do campo social ou dele
sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma
ou cartografia. As linhas de fuga são quase a mesma coisa que os
movimentos de desterritorialização: elas não
implicam qualquer retorno à natureza; elas são as pontas de
desterritorialização nos agenciamentos de desejo. O
que é primeiro na feudalidade são as linhas de fuga que ela supõe; o
mesmo pode ser dito dos séc. X-XIII; da
formação do capitalismo. As linhas de fuga não são forçosamente
"revolucionárias", podendo ocorrer o
contrário disso, mas são elas que os dispositivos de poder vão
colmatar, vão atar. Por exemplo, todas as linhas
de desterritorialização que se precipitam em torno do século XI: as
últimas invasões, os bandos de pilhagem, a
desterritorialização da Igreja, as emigrações camponesas, a
transformação da cavalaria, a transformação das
cidades, que abandonam cada vez mais os modelos territoriais, a
transformação da moeda, que se injeta em
novos circuitos, a mudança da condição feminina com temas do amor
cortês, que desterritorializam até mesmo
o amor cavalheiresco... etc. A estratégia só poderá ser Segunda em
relação às linhas de fuga, às suas
conjugações, às suas orientações, suas convergências e divergências.
Encontro também aí o primado do desejo,
pois o desejo está precisamente nas linhas de fuga, na conjugação e
dissociação de fluxo. O desejo se confunde
com elas.
Parece-me, então, que Michel encontra um problema que não
tem o mesmo estatuto para mim. Com
efeito, se os dispositivos de poder são de alguma maneira
constituintes, só pode haver contra eles fenômenos de
"resistência", e a questão incide sobre o estatuto desses fenômenos.
Sem dúvida, eles serão menos ainda
ideológicos e anti-repressivos. Daí a importância das duas páginas de
VS, nas quais Michel afirma: que não me
façam dizer que esses fenômenos sejam um engodo... mas, qual estatuto
vai lhes dar ele? Há várias direções
aqui: 1) aquela da VS (p. 126-7), na qual fenômenos de resistência
seriam como uma imagem invertida dos
dispositivos; teriam eles as mesmas características, difusão,
heterogeneidade... etc.; eles estariam “frente a
frente”. Mas essa direção parece-me bloquear as saídas tanto quanto
encontrar uma. 2) A direção apontada na
entrevista relativa à função política do intelectual: se os
dispositivos de poder são constitutivos de verdade, se há
uma verdade do poder, deve haver aí, como contra estratégias, uma
espécie de poder da verdade contra os
poderes. Donde, em Michel, o problema do papel do intelectual, donde
sua maneira de reintroduzir a categoria
de verdade, oi que me leva a perguntar o seguinte: renovando
completamente essa categoria, ao faze-la depender
do poder, ele encontrará nessa renovação uma matéria retornável contra
o poder? Mas aqui não vejo como. É
preciso esperar que Michel, no nível da microanálise, diga essa nova
concepção de verdade. 3) A terceira
direção é a dos prazeres, do corpo e seus prazeres. Também aqui, mesma
a expectativa para mim: como os
prazeres animam contrapoderes, e como ele concebe essa noção de
prazer?
Certos problemas que se colocam para mim não se colocam
para Michel, porque eles são de antemão
resolvidos pelas pesquisas que são próprias dele. Inversamente, para
encorajar-me, digo-me que outros
problemas não se colocam para mim e se colocam para ele pr necessidade
de suas teses e sentimentos. As linhas
de fuga, os movimentos de desterritorialização, como determinações
coletivas históricas, não me parecem ter
equivalente em Michel. Para mim, não há o problema de um estatuto dos
fenômenos de resistência: já que as
linhas de fuga são determinações primeiras, já que o desejo agencia o
campo social, são, sobretudo os
dispositivos de poder que se acham produzidos por esses agenciamentos,
ao mesmo tempo em que esmagam ou
os colmatam. Compartilho do horror de Michel por aqueles por aqueles
que se dizem marginais: acho cada vez
menos suportável o romantismo da loucura, da delinqüência, da
perversão, da droga. Mas para mim, não são
criadas pelos marginais as linhas de fuga, isto é, os agenciamentos de
desejo. Ao contrário, elas são linhas
objetivas que atravessam uma sociedade, na qual os marginais instalam-
se aqui ou ali para fazer um círculo, um
circuito, uma recodificação. Não tenho, pois, a necessidade de um
estatuto dos fenômenos de resistência, uma
vez que o primeiro dado de uma sociedade é que nela tudo foge, tudo se
desterritorializa. Daí porque o estatuto
do intelectual e o problema político não serem os mesmos para Michel e
para mim. Tentarei dizer ainda agora
como vejo essa diferença.
G- Na última vez que nos vimos, Michel, como muita gentileza e
afeição, disse-me mais ou menos o
seguinte: não posso suportar a palavra desejo, mesmo que você a
empregue de outro modo, não posso
impedir-me de pensar ou de viver que desejo = falta, ou que desejo se
diz reprimido. Michel acrescentou: então,
para mim o que chamo de “prazer” talvez seja o que você denomina
“desejo” de qualquer modo, tenho a
necessidade de outra palavra que não desejo.
Evidentemente, mais uma vez, trata-se de outra coisa e não
de uma questão de palavra, embora, de minha
parte, suporte muito pouco a palavra “prazer”. Mas por quê? Para mim,
desejo não comporta qualquer falta. Ele
não é um dado natural. Está constantemente unido a um agenciamento que
funciona. Em vez de ser estrutura ou
gênese, ele é, contrariamente, processo. Em vez de ser sentimento, ele
é, contrariamente, afeto. Em vez de ser
subjetividade, ele é, contrariamente “hecceidade” (individualidade de
uma jornada, de uma estação, de uma vida).
Em vez de ser coisa ou pessoa, ele é contrariamente, acontecimento. O
desejo implica, sobretudo a constituição
de um campo de imanência ou de um “corpo sem órgãos”, que se define
somente por zonas de intensidade, de
limiares, de gradientes, de fluxos. Esse corpo é tanto biológico
quanto coletivo e político; é sobre ele que os
agenciamentos e fazem e se desfazem; é ele o portador das pontas de
desterritorialização dos agenciamentos ou
linhas de fuga. O corpo sem órgãos varia (o da feudalidade não é o
mesmo do capitalismo). Se o denomino
corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os estratos de
organização, tanto aos da organização do
organismo quanto aos das organizações de poder. São precisamente as
organizações do corpo, em seu conjunto,
que quebrarão o plano da imanência e imporão ao desejo um outro tipo
de “plano”, estratificando a cada vez o
corpo sem órgãos.
Se digo tudo isso de maneira tão confusa, é porque vários
problemas colocam-se para mim em relação a
Michel: 1) Não posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o
prazer parece-me interromper o processo
imanente do desejo; o prazer parece-me estar do lado dos estratos e da
organização; é no mesmo movimento que
o desejo é apresentado como submetido de dentro à lei e escandido de
fora pelos prazeres; nos dois casos, há
negação de um campo de imanência próprio do desejo. Digo a mim mesmo
que não é por acaso que Michel
atribui certa importância a Sade, e eu, ao contrário, a Masoch. Não
seria suficiente dizer que sou masoquista e
que Michel é sádico. Poderia ser conveniente dizer isso, mas não
verdadeiro. O que me interessa em Masoch
não são as dores, mas a idéia de que o prazer vem interromper a
positividade do desejo e a constituição de seu
campo de imanência; assim também, mas de outro modo, há no amor cortês
a constituição de um plano de
imanência ou de um corpo sem órgãos, no qual o desejo, que de nada
carece, resguarda-se tanto quanto possível
de prazeres que viriam interromper seu processo. Parece-me que o
prazer é o único meio para uma pessoa ou
sujeito "reencontrar-se" num processo que o transborda. É uma
reterritorialização. Do meu ponto de vista, é da
mesma maneira que o desejo é relacionado à lei da falta e à norma do
prazer.
2) Em compensação, é essencial a idéia de Michel segundo a qual
os dispositivos de poder têm com o
corpo uma relação imediata e direta. Mas, para mim, ela é essencial se
se considera que esses dispositivos
impõem uma organização aos corpos. O corpo sem órgãos está ligado ao
agente de desterritorialização (e, por
ai, ao plano de imanência do desejo), ao passo que todas as
organizações, todo o sistema daquilo que Michel
chama de "biopoder", opera reterritorializações do corpo.
3) Poderia eu pensar em equivalências do tipo: o que para mim é o
"corpo sem órgãos - desejos"
corresponde ao que, para Michel, é "corpo - prazeres"? Posso
relacionar a distinção "corpo-carne", da qual
falava Michel, com a distinção "corpo sem órgãos - organismo"? Há uma
página muito importante em VS
(p.190) sobre a vida apresentada como o dá um estatuto possível às
forças de resistência. Essa vida, para mim,
aquela mesma de que fala Lawrence, de modo alguém é a Natureza; ela é
justamente o plano de imanência do
desejo, plano variável através de todos os agenciamentos determinados.
Relaciono a concepção de desejo em
Lawrence com as linhas de forças positivas. (Pequeno detalhe: a
maneira pela qual, no final de VS, Michel se
serve de Lawrence é oposta à maneira pela qual, eu me sirvo deste).
H- Será que Michel avançou no problema que nos ocupava, qual seja,
o de manter os direitos de uma
microanálise (difusão, heterogeneidade, caráter parcelar) e, todavia,
encontrar uma espécie de princípio de
unificação que não seja do tipo “Estado”, “partido”, totalização,
representação?
Primeiramente, do lado do próprio poder, retorno às duas direções
de VP: de um lado, caráter difuso e
parcelar dos microdispositivos, mas, de outro lado, também diagrama ou
máquina abstrata cobrindo o conjunto
do campo social. Parece-me que a relação entre essas duas instâncias
da microanálise permanecia como um
problema em VP. Creio que a questão muda um pouco em VS: aqui, as duas
direções da microanálise serão,
sobretudo as microdisciplinas, de um lado e, de outro, os processos
biopolíticos (pp 183 e ss.). Foi o que eu
quis dizer no item C destas notas. Ora, o ponto de vista de VP sugeria
que o diagrama, irredutível à instância
global do Estado, operava talvez uma microunificação dos pequenos
dispositivos. Será preciso compreender
agora que os processos biopolíticos é que terão essa função? Confesso
que a noção de diagrama me parecia
muito rica: será que Michel a reencontrará nesse novo terreno?
Mas do lado das linhas de resistência, ou daquilo que denomino
linhas de fuga, como conceber as
relações ou as conjugações, as conjunções, os processos de unificação?
Eu diria que o campo de imanência do
coletivo, onde em dado momento se fazem os agenciamentos e onde eles
traçam suas linhas de fuga, é também
um verdadeiro diagrama. É preciso, então, encontrar o agenciamento
complexo capaz de efetuar esse diagrama,
operando a conjunção das linhas e das pontas de desterritorialização.
É nesse sentido que eu falava de uma
máquina de guerra totalmente diferente do aparelho de Estado e das
instituições militares como também dos
dispositivos de poder. De um lado, portanto, teríamos Estado-diagrama
do poder, sendo o Estado o aparelho
molar que efetua os microdados do diagrama entendido como plano de
organização; de outra parte, teríamos
máquina de guerra-diagrama das linhas de fuga, sendo a máquina de
guerra o agenciamento que efetua os
microdados do diagrama entendido como plano de imanência. Paro neste
ponto porque isso colocaria em jogo
dois tipos de planos muito diferentes, uma espécie de plano
transcendental de organização contra o plano
imanente dos agenciamentos, e porque tornaríamos a cair nos problemas
precedentes. E aqui já não sei como
situar-me em relação às pesquisas atuais de Michel.
(Adição: o que me interessa nos dois estados opostos do plano ou
do diagrama é seu confronto histórico
sob formas muito diversas: num caso, tem-se um plano de organização e
de desenvolvimento que é oculto por
natureza, mas que dá a ver tudo o que é visível; no outro, tem-se um
plano de imanência, onde há tão-somente
velocidades e lentidões, não-desenvolvimento, e onde tudo é visto,
ouvido... etc. O primeiro plano não se
confunde com o Estado, mas está ligado a este; o segundo, ao
contrário, está ligado a uma máquina de guerra, a
um devaneio de máquina de guerra. No nível da natureza, por exemplo,
Cuvier e também Goethe concebem o
primeiro plano; Hölderlin, em Hypérion, e mais ainda, Kleist concebem
o segundo tipo. De pronto, dois tipos
de intelectuais, e convém comparar o que Michel diz a esse respeito
com o que ele próprio diz sobre a posição
do intelectual. Ou então, em música, onde se confrontam as duas
concepções do plano sonoro. Pergunto se o
liame poder-saber, tal como Michel o analisa, poderia ser assim
exemplificado: os poderes implicam um
plano-diagrama do primeiro tipo [por exemplo, a cidade grega e a
geometria euclidiana]; mas, inversamente, do
lado dos contrapoderes e mais ou menos em relação com máquinas de
guerra, há o outro tipo de plano, espécie
de saberes “menores” [a geometria arquimediana, ou a geometria das
catedrais, que será contrabatida pelo
Estado]. Todo um saber apropriado a linhas de resistência e que não
tem a mesa forma do outro saber?)
Referência Bibliográfica:
FOUCAULT, Michel (1969). L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard.
(AS)
_____ (1975). Surveiller et punir – naissance de la prison. Paris:
Gallimard (VP)
_____ (1976a). La volonté de savoir. Paris: Gallimard (VS)
_____ (1976b). La fonction politique de l’inctellectuel. Politique
Hebdo, 29 de novembro – 5 de dezembro.
_____ (1977). Les rapports de pouvoir passent à l’interieur des corps.
(entrevista com Lucette Finas). La
Quinzaine Littéraire, n. 247: 4-6, 1-15 jan.
* As referências bibliográficas das obras de Foucault e suas
respectivas abreviaturas utilizadas ao longo dessas notas (AS, VP e
VS) estão especificadas no final.
http://f1.grp.yahoofs.com/v1/8LwYSQfIw7HKdap5jfpJa-wr9pHWEQUdXghkvZ_zNJYvCAFg0tTf11rC9479eJ22QSZk2y7PfNmv9qBOZIMQNCE3JQ6MHJe6OP5zof331A/Gilles%20DELEUZE/Desejo%20e%20Prazer%20Gilles%20Deleuze.doc