REICH E FREUD: COMPATIBILIDADES E INCOMPATIBILIDADES *
Ricardo Amaral Rego **
RESUMO
São examinadas as convergências e divergências entre as concepções de
Freud e Reich. Apesar da ruptura de Reich com a psicanálise, defende-
se como útil e importante que a psicoterapia reichiana retome
elementos da teoria psicanalítica, como forma de desenvolvimento e
aprofundamento. Listam-se temas que terão de ser discutidos e
esclarecidos para que isto seja possível, e indicam-se alguns caminhos
que possam viabilizar este intento.
Palavras-chave: psicoterapia corporal, psicanálise, orgonomia., pulsão
de morte, auto-regulação, Wilhelm Reich, Sigmund Freud
ABSTRACT
This is a discussion about the similarities and dissimilarities of the
Freudian and Reichian theories. Despite the differences, we argue that
it would be useful to the Reichian psychotherapy to recover elements
of the psychoanalytic theory. We present some issues that should be
discussed in order to reach this goal, and we point to some ways of
doing it.
Key words: body psychotherapy, psychoanalysis, orgonomy, self-
regulation, death instinct, Wilhelm Reich, Sigmund Freud
* Publicado na Revista da Sociedade Wilhelm Reich v. 5 – n. 5.
Porto Alegre, 2002, p. 59-74.
** fone (011) 283 3055 - fax (011) 289 8394
R. Alm. Marques Leão 785, São Paulo, SP CEP 01330 – 010
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1. INTRODUÇÃO
Quando tive contato pela primeira vez contato com o pensamento
reichiano e a psicoterapia corporal, em 1973, através de José Gaiarsa,
uma das suas características marcantes era a contestação da
psicanálise, então tida como reacionária , pouco ousada , limitada e
limitante . A psicoterapia reichiana, era então vista como algo
nitidamente superior. O tempo mostrou que muitas destas críticas à
psicanálise eram infundadas, e que a psicoterapia de inspiração
reichiana era boa, mas também apresentava limitações e insuficiências.
Ocorreu então o que talvez tenha sido uma inversão do processo: da
crítica pouco embasada passou-se a uma assimilação pouco crítica da
psicanálise, que inclusive desconsidera questionamentos importantes
feitos a ela por Reich (ver adiante). Hoje em dia é comum que escolas
reichianas (como por exemplo a Psicologia Biodinâmica, a Análise
Bioenergética, a Vegetoterapia Caractero-analítica e outras) estudem
psicanálise em suas formações, porém a meu ver ainda falta muito para
que se chegue a uma síntese teórica e técnica adequada entre os dois
campos. No limite, parece que se formos levar a teoria e a técnica
psicanalíticas a sério, a coerência nos obrigaria a descartar o
pensamento reichiano, como os psicanalistas já o fazem. Do mesmo modo,
a coerência estrita em relação ao que Reich afirmou em seus escritos a
partir de meados da década de 1940 nos levaria a abandonar a
psicanálise.
Este artigo se propõe a fazer um levantamento dos pontos de
convergência e de divergência entre as duas concepções, para que assim
possamos discutir melhor o quanto seria possível uma síntese.
2. REICH E A PSICANÁLISE
Wilhelm Reich foi inicialmente um psicanalista que pesquisou e inovou
a teoria e a técnica psicanalíticas (Reich 1975, 1995a), notadamente
quanto à importância dada aos aspectos somáticos em seu trabalho, e
que depois rompeu com a fundamentação psicanalítica e seguiu um
caminho próprio.
Ao longo da década de 1930, ele se distancia progressivamente do
pensamento freudiano, e sua fundamentação teórica é estruturada cada
vez mais no âmbito da biologia, sendo especialmente importante a
apropriação do conceito de auto-regulação, elemento-chave de suas
novas idéias (Bellini 1993; Albertini 1994, p. 67-71; Dadoun 1991, p.
34-42). Ganha importância também sua própria teoria sobre o papel da
bioenergia, o campo de estudos por ele denominado de Orgonomia (Reich
1994, 1984). Segundo Ola Raknes (1988, p. 41-42), “a partir da
descoberta da energia orgone cósmica (1939-1940), o principal
interesse de Reich concentrou-se nesse novo campo de pesquisa”.
No Congresso de Psicanálise de 1934 (ano em que se dá a sua exclusão
da Associação Psicanalítica Internacional), Reich apresentou pela
primeira vez suas idéias inovadoras sobre a couraça muscular. O
capítulo XIII do “Análise do Caráter” é uma elaboração formal da
palestra realizada nesse Congresso. É aí apresentada a tese de que
“todo aumento de tônus muscular e enrijecimento é uma indicação de que
uma excitação vegetativa, angústia ou sensação sexual foi bloqueada e
ligada”, havendo “uma identidade funcional entre couraça do caráter e
hipertonia ou rigidez muscular” (Reich 1995, p. 315). Vemos aqui
expostas as bases de uma clínica que também ficará cada vez mais
distanciada da ortodoxia psicanalítica.
Em dezembro de 1934, Reich faz um balanço da relação entre suas
concepções (às quais denominava na época de “psicanálise materialista
dialética”) e as de Freud: “me considero o mais sólido representante
da psicanálise científica natural e do seu desenvolvimento
lógico” (Reich 1979, p. 181).
Em artigo de 1938 (Reich 1979, p. 235-8) já se percebe uma postura
bastante diferente daquela de 1934, com Reich vendo-se como estando
além da psicanálise. Ele afirma o valor dos processos biológicos e a
superioridade das suas formulações em relação às idéias de Freud.
Porém ainda reconhece um certo valor na psicanálise no terreno dos
processos psíquicos.
Em 1942, quando ele escreve seu livro “A Função do Orgasmo”, dá-se um
novo balanço da relação entre suas idéias e as de Freud: “O objetivo
do meu trabalho é o mesmo hoje e há vinte anos atrás: o despertar das
experiências da primeira infância. Entretanto, o método para consegui-
lo mudou consideravelmente; tanto, na verdade, que nem se pode mais
chamar de psicanálise” (Reich 1984, p. 58-9).
Em anotação de 1946 (Reich 1999, p. 345), afirma que “Freud confundiu
a doença mental que encontrou no vivo com a essência intacta que está
por trás dela – isto é, com a vida real. Esse foi seu grande erro. A
biologia de Freud é completamente sem esperança”.
No relato clínico que consta como o capítulo XV (A Cisão
Esquizofrênica) da terceira edição do "Análise do Caráter", que foi
escrito no inverno de 1948-49 (Ilse Reich, 1978, p. 124), percebe-se
que o referencial clínico da psicanálise praticamente não está mais
presente, exceto quanto a alguma elaboração das vivências
transferenciais. A questão das chamadas correntes orgonóticas assume
papel central, o uso de técnicas corporais e do acumulador de orgone
constituem-se como elementos decisivos do tratamento. Conclui-se que
“... a esquizofrenia é uma doença de fato biofísica, e não ‘apenas’
mental (...) as emoções são funções bioenergéticas, e não mentais,
químicas ou mecânicas’ (Reich, 1995, p. 406).
Percebemos que Reich vai se deslocando progressivamente para fora do
âmbito da psicanálise, tendência que se mostra ainda mais radicalizada
em 1952, quando ele é entrevistado por um representante dos Arquivos
Sigmund Freud (Reich 1979). Podemos observar aí a consolidação desse
processo de mudança, onde percebe-se uma declaração de ruptura e de
distanciamento, de ver a relação com Freud e a psicanálise quase como
um acidente histórico em sua evolução intelectual:
“Eu já nem sequer me considero um discípulo de Freud. Não tenho nada
a ver com ele há muito tempo” (p. 117-8). “Como lhe disse, não estou
absolutamente nada interessado em psicanálise” (p. 119).
A psicanálise “para mim é um período completamente morto (...) Os
psicanalistas pensam ainda que eu sou um psicanalista. Não! Não!” (p.
97).
“Portanto não se trata de psicanálise. Não tem nada a ver com
psicanálise.” (118). “Não sou psicanalista. Não estou interessado em
psicanálise. Não tenho qualquer má vontade contra ela – de modo
nenhum. Está tudo morto e enterrado” (p. 115).
“Eu coloquei numa base científica natural o que estava correto na
psicanálise, mas o meu trabalho metodológico, científico, não tinha em
si mesmo nada a ver com a psicanálise, no sentido de fazer parte dela
ou de se ter desenvolvido a partir dela. O que eu fiz foi por o meu
ovo de águia no ninho de ovos de galinha. Depois tirei-o e dei-lhe o
ninho apropriado” (idem, p. 50).
Será que a psicanálise foi apenas um casulo dentro do qual Reich se
nutriu e desenvolveu, e com o qual rompeu irreversivelmente para
libertar sua bela e grandiosa teoria? Se formos ouvir a opinião dele,
parece que sim. Veremos que não é à toa que tais afirmações são
feitas: um diálogo entre as concepções de Reich e Freud exigirá
realmente um esforço considerável.
3. CONCORDÂNCIAS E DIVERGÊNCIAS
3.1 QUE PARTE DA PSICANÁLISE É COMPATÍVEL COM A TEORIA E A TÉCNICA
REICHIANAS?
Podemos começar pela opinião do próprio Reich, que, como já vimos,
varia bastante ao longo do tempo. Observemos o período inicial (anos
20 e 30), quando ele ainda considerava-se psicanalista, ou pelo menos
alguém com fortes laços com a psicanálise.
Reich desde cedo mostrou-se um defensor de certas idéias de Freud, e
manteve-se fiel a elas (ou, pelo menos, acreditava manter-se). Por
outro lado, desde cedo também criticou determinados aspectos das
formulações de Freud, especialmente muitas das idéias contidas em
“Além do Princípio do Prazer”, “O Ego e o Id” e “Inibições, Sintomas e
Ansiedade”. Um exemplo é a crítica à teoria da pulsão de morte, em
artigo sobre o caráter masoquista publicado sob grande polêmica no
Internationalen Zeitschrift für Psychoanalyse em 1932, e depois
incluído no “Análise do Caráter” como o capítulo XI.
Isso traz uma implicação importante: pode ser que haja em Reich uma
continuidade com a obra de Freud. Mas talvez isso se dê com uma parte
da obra de Freud que este próprio, e praticamente toda a psicanálise
posterior, considera como uma teoria inicial, em grande parte depois
ultrapassada e superada por uma formulação mais exata, mais abrangente
e mais adequada . Falamos aqui da segunda tópica, da teoria da pulsão
de morte, das últimas concepções sobre a ansiedade e a cultura.
Alguns comentadores reichianos parecem compartilhar deste ponto de
vista, afirmando que Reich prosseguiu num caminho que Freud iniciara e
do qual desviou-se depois. Segundo Boadella (1985, p. 19), o ponto de
vista da teoria da libido “foi relegado a um abandono progressivo
tanto por Freud quanto por seus colegas. A Reich coube a tarefa de se
dedicar a essa teoria inicial, de confirmá-la e de desenvolvê-la”.
Este autor comenta que, “na psicanálise, um abismo profundo começava a
se abrir entre a teoria geral do instinto, centrada no conceito de
energia psíquica, e as novas teorias da psicologia do ego, centrada no
conceito de estrutura psíquica” (idem, p. 25).
No mesmo sentido, Chester Raphael assinala que Reich chegou à
psicanálise entusiasmado com a idéia freudiana de uma energia sexual,
mas que a essa altura era já “claro que sua [de Freud] teoria da
neurose tornara-se uma teoria psicológica, e que a libido, privada de
sua definição sexual original, tornara-se nada mais do que uma
metáfora inócua agora à beira da extinção” (Raphael 1975, p. viii).
Conforme Paulo Albertini (1994, p. 55), “observando de forma geral a
atuação de Reich no movimento psicanalítico, é possível dizer que ele
tentou criar uma outra ‘psicanálise’ dentro da própria psicanálise.
Para ele, as suas formulações teóricas, e não as de Freud dos anos 20,
é que representavam o desenvolvimento necessário das primeiras
elaborações freudianas”; dado que “na visão reichiana, a psicanálise
dos anos 20 afastou-se do conceito de libido e passou a tomar rumos
equivocados” (idem, p. 38).
Cláudio Wagner (1996, p. 56-57) propõe a tese da existência de um
“jovem Freud”, do qual Reich teria feito um resgate e uma
reatualização. “Jovem Freud” seria aquele que, de 1898 a 1938,
continuou sustentando a importância da sexualidade, do inconsciente,
do papel do ambiente externo nas neuroses. Segundo este autor, “a
psicanálise que sobreviveu foi a psicanálise que, ou bem privilegiou o
velho Freud, da pulsão de morte (escola inglesa, M. Klein), ou bem se
esqueceu do jovem Freud das pulsões sexuais (escola americana,
psicologia do ego)” (idem, p. 60).
Ou seja, mesmo onde Reich é compatível com as idéias de Freud, há uma
ruptura no sentido de que a psicanálise de Reich não é a mesma dos
psicanalistas atuais.
Uma retomada das raízes freudianas na psicoterapia reichiana
necessariamente terá de passar por alguns questionamentos:
a) Continua válida a crítica de Reich aos textos de Freud mencionados?
b) Se não, o que deve ser corrigido e/ou acrescentado em Reich?
c) Se sim, quais partes da teoria psicanalítica seriam assimiláveis
pela psicoterapia corporal? Quais não o seriam?
Esta é uma discussão em aberto. Pessoalmente, acredito que existem
muitos elementos valiosos na produção freudiana dos anos 20 e 30, e
nos autores que desenvolveram posteriormente estes pontos de vista.
Por exemplo, Melanie Klein (1997, 1996, 1991) e Donald Winnicott
(1990, 1978, 1975) trouxeram contribuições originais à teoria e à
técnica, e o diálogo com a produção destes e de outros autores pode
contribuir grandemente para a ampliação dos horizontes da psicoterapia
reichiana, como podemos ver por exemplo em Cornell (1998).
3.2 COMO REICH LIDOU COM A HERANÇA FREUDIANA?
Desde o início Reich revelou-se um pensador original. A primeira
teoria de Reich (o papel do orgasmo, formulada por volta de 1923 – ver
Reich 1975d) foi um prolongamento da teoria da libido de Freud e, ao
mesmo tempo, a primeira separação em relação ao mestre (Bellini 1993,
p. 58). Reich relata sua desilusão em 1926 com o fato de Freud
rejeitar suas idéias sobre a relação entre angústia e o sistema
nervoso autônomo (Reich 1984, p. 147-148). A técnica de análise do
caráter propunha um papel mais ativo e intervencionista do analista,
que era muito diferente do habitual. O questionamento da separação
entre neurose atual e psiconeurose pode ser visto já como um primeiro
movimento de Reich para integrar corpo e mente numa unidade conceitual
(Reich 1995, p. 26-27). Portanto, percebe-se que há elementos de
ruptura desde o princípio, e que nunca houve um Reich totalmente
alinhado com as concepções psicanalíticas dominantes e que assimilasse
docilmente as formulações de Freud.
Parece haver um padrão: as teorias e técnicas de Reich começam
formuladas coerentemente dentro da psicanálise. Porém, aos poucos vão
se desenvolvendo, ampliando, tomando forma própria, até tornarem-se
algo decididamente fora do âmbito do que é reconhecido socialmente
como psicanálise. Isso ocorre com as intervenções corporais (primeiro
a criação da análise do caráter, depois esta levando à concepção de
uma couraça muscular do caráter, e isto tendo como conseqüência a
invenção de métodos para uma abordagem somática do tratamento), com o
conceito de bioenergia orgone (descendente da teoria da libido de
Freud), com as formulações sobre o orgasmo (oriundas da teoria
freudiana da sexualidade).
Segundo este padrão, Reich não seria exatamente um continuador da
psicanálise, e sim alguém que usou–a como um dos ingredientes na
formulação de algo mais complexo, como uma maçã utilizada para fazer
tortas de maçã, ou a tinta utilizada para pintar um quadro.
Há entretanto uma certa continuidade que vai permitir a Reich dizer-se
continuador de Freud mesmo em 1952, quando suas formulações são já
bastante diferentes daquelas do antigo mestre: “Sabe quem tem mantido
a teoria da libido viva e em funcionamento, atualmente? E quem a
desenvolveu? Considero-me o único que fez isso. Mais ninguém” (Reich
1979, p. 115). Este é um aspecto curioso da relação de Reich com
Freud: parece às vezes que Reich julga-se mais freudiano do que o
próprio Freud, apesar de ser visto pelos demais continuadores da obra
freudiana como alguém que não tem mais nada a ver com a psicanálise em
suas idéias e práticas.
3.3 REICH: UM PSICANALISTA QUE DIVERGE DE FREUD
Segundo Bleichmar e Bleichmar (1992, p. 17), “a teoria psicanalítica
cresceu, a partir de Freud, por aposição de uma grande quantidade de
escolas, correntes de pensamento, grupos, autores, cada um com seu
enfoque particular sobre quase todos os problemas. Poderíamos dizer
que, neste momento, não há uma psicanálise, mas muitas”. Seguindo esta
linha de pensamento, algumas das diferenças entre as formulações de
Reich e Freud podem ser entendidas como divergências entre escolas
psicanalíticas. Ou seja, há uma parte da teoria reichiana que, apesar
de divergir de Freud, poderia ser vista como ainda ligada ao
referencial psicanalítico, como ainda podendo posicionar-se enquanto
interlocutora dentro deste campo do conhecimento.
3.3.1 A PULSÃO DE MORTE
O conflito teórico mais conhecido, e que é comumente tido como o fator
que levou à ruptura entre ambos, está relacionado com a polêmica
sobre a idéia da pulsão de morte. Entretanto, diversos elementos nos
levam a pensar que a exclusão de Reich do movimento psicanalítico deu-
se muito mais por motivos políticos do que por divergências teóricas
(Wagner 1996). Basta lembrar que Donald Winnicott, que também repelia
a idéia de pulsão de morte, nunca se afastou do movimento
psicanalítico, chegando inclusive a presidir a Associação
Psicanalítica Internacional. E ele deixava claro seu ponto de vista:
“Nunca fui capaz de seguir quem quer que fosse, nem mesmo Freud ...
Por exemplo, simplesmente não acho válida sua idéia de instinto de
morte” (Winnicott, 1990, p. 161).
Ernest Jones, respeitado biógrafo de Freud, diz que “algumas das
formulações mais abstratas de Melanie Klein serão sem dúvida
modificadas na estrutura teórica futura da psicanálise. O que me
parece um exemplo provável disso é a aplicação direta que faz às
descobertas clínicas do conceito filosófico de Freud de uma ‘pulsão de
morte’, sobre o qual tenho sérias dúvidas. Cito-o não por esta razão,
mas porque acho um pouco estranho que eu devesse criticá-la por uma
adesão demasiadamente fiel aos pontos de vida de Freud” (Jones, 1991,
p. 368. Em outro texto, Jones (1989, p. 278) reafirma sua opinião,
dizendo que “nenhuma observação biológica apóia a idéia de uma pulsão
de morte, que contradiz todos os princípios biológicos”.
Otto Fenichel, em sua exposição da teoria psicanalítica, dedica duas
páginas a uma “Crítica do Conceito de um Instinto de Morte” (Fenichel,
1981, p. 53-55), onde enumera argumentos contra tal idéia. Apesar de
reconhecer a existência de conflitos entre os interesses do ego e os
impulsos sexuais, e entre a agressividade e as tendências sexuais,
afirma que “não é necessário presumir que nenhum desses dois pares de
opostos representem dicotomia genuína e incondicionada que haja
operado desde o início. Para melhor classificar os instintos, teremos
de esperar que a fisiologia desenvolva teses mais valiosas a respeito
das fontes instintivas” (idem, p. 55).
Ora, se psicanalistas prestigiados como Fenichel, Jones e Winnicott
discordaram abertamente da teoria da pulsão de morte sem deixarem de
ser aceitos pela comunidade psicanalítica, pode-se supor que, se
fosse apenas por este aspecto de suas idéias, talvez pudéssemos
reivindicar para Reich um lugar como o de Ferenczi no panteão
psicanalítico, algo como um psicanalista “diferente”. Isso não
minimiza a questão teórica, pois Freud manteve até o fim sua crença na
idéia de uma pulsão de morte como algo essencial para a compreensão da
mente humana. Uma integração entre as concepções de Freud e Reich
nunca estará completa sem um esclarecimento desta divergência.
2.3.2 A TEORIA DO ORGASMO
Quanto à teoria do orgasmo de Reich, mesmo sendo ela originada e
referenciada na psicanálise, nunca foi aceita por Freud e seus
seguidores. Segundo Albertini (1994, p. 40), “parece não haver dúvidas
de que, em termos de construção teórica, Freud de maneira alguma
chegou a aceitar a teoria reichiana do orgasmo”. No mesmo sentido,
Briganti (1987, p. 115) comenta que “os psicanalistas não viriam a
aceitar o vínculo feito por Reich entre as neuroses e a perturbação da
genitalidade”. O próprio Reich reconhece este fato quando diz que
“desde o começo a inclusão da função do orgasmo na teoria
[psicanalítica] da neurose foi considerada um incômodo e tratada como
tal.” (Reich, 1935/1995, p. 274). Permanece o debate quanto à validade
desta concepção reichiana, mas este é um elemento que, se provado
correto, seria também assimilável dentro da estrutura teórica da
psicanálise. Note-se que muitos neo-reichianos não são defensores tão
ferrenhos desta idéia quanto Reich (Boyesen 1986; Lowen 1982). Navarro
(1996, p. 11), por exemplo, critica explicitamente a Bioenergética de
Lowen por este motivo, dizendo que esta abordagem “não destaca a
importância da função do orgasmo”.
2.3.3 O CARÁTER E A IMPORTÂNCIA DA FORMA
Algo semelhante ocorre com a teoria reichiana do caráter. Partindo das
formulações de Freud, Jones e Abraham sobre o origem dos traços de
caráter, Reich (1995, p. 150-155) expõe sua teoria de que o conjunto
dos traços de caráter de uma pessoa constituiria uma formação integral
com função de defesa psíquica, uma verdadeira couraça ou blindagem do
ego. Segundo Wagner (2000, p. 46), Reich vê o caráter como uma
estrutura complexa e unificada que é “... resultante e expressão de
todo o desenvolvimento psicossexual (...) o caráter é visto como a
forma típica e estruturada de ser do ego [e com isso] Reich patologiza
o ego freudiano.” Com raras exceções , este conceito não foi
incorporado pela psicanálise. Isso pode ter ocorrido pelas implicações
políticas e sociais da teoria do caráter (idem, p. 50-51); pela
proposta clínica dela decorrente (a análise do caráter), que
questionava a ortodoxia ao propor a valorização da forma de agir como
material analítico; ou ainda por uma simples discordância quanto à
validade desta teoria.
Um aspecto específico dessa abordagem clínica ainda hoje é ponto de
debate na psicanálise. Conforme Martinez (1993), vemos nos relatos
clínicos de Freud e outros autores a valorização de aspectos
observados do comportamento dos analisandos. Por outro lado, mantém-se
a posição analítica atrás do divã como fundamental, dado que “... a
disposição que exclui o olhar tem assim uma função técnica precisa, a
de criar condições favoráveis para que se instale a situação analítica
propriamente dita” (Mezan, cf. cit. em Martinez, 1993, p. 18). Deste
modo, a visibilidade do analisando ora ajuda (para a obtenção de
material analítico), ora atrapalha (por contrariar o exercício da
atenção flutuante). Martinez mostra então como é variável a
valorização clínica do universo visual, com Freud dando pouca ênfase a
este tipo de material, Ferenczi dando grande valor ao mesmo, e Reich
fazendo disto o centro de sua abordagem.
2.3.4 OUTRAS DIVERGÊNCIAS PSICANALÍTICAS
Um outro tema é a teoria reichiana das pulsões. Enquanto Freud
fundamenta sua visão do aparelho psíquico a partir de uma dualidade,
de um antagonismo pulsional, Reich concebe a existência apenas de
pulsões do id, que seriam manifestações de necessidades biológicas, a
favor da vida, portanto. Sob a pressão do mundo externo e do superego,
o ego teria a capacidade de colocar uma pulsão contra outra, num
entrelaçamento complexo que seria a base da dinâmica psíquica.
Outras questões sobre as quais Reich tem um ponto de vista diverso
daquele de Freud são a teoria da angústia (Reich 1984, p. 120-124) e a
visão sobre a cultura e a civilização (idem, p. 166-213).
3.4 PARA ALÉM DOS PRINCÍPIOS DA PSICANÁLISE
É no desenvolvimento das idéias de Reich a partir de meados da década
de 1930 que iremos encontrar as diferenças realmente significativas.
Ele afastou-se bastante do referencial psicanalítico, trilhando
caminhos que o levaram para algo muito diverso. Aqui sim podemos
entender suas afirmações de 1952 (ver item 2), considerando-se como
alguém que não tinha mais nada a ver com a psicanálise.
3.4.1 A ORGONOMIA
Albertini (1994, p. 38) afirma que “a principal ligação do pensamento
reichiano com a psicanálise freudiana deve ser buscada no âmbito do
ponto de vista econômico” , e “tanto a preocupação quantitativa quanto
a busca da base orgânica da libido caminham na direção de uma
concepção de energia sexual como algo real e não apenas como um
constructo teórico”.
Desde o início Reich valorizou fortemente a idéia de uma energia
vital, como se pode ver em seus primeiros escritos, que incluíam um
estudo de 1922 sobre “O Conceito de Pulsão e Libido de Forel a
Jung” (Reich 1975b), e outro de 1923 “Sobre a Energia das
Pulsões” (Reich 1975c). Conforme Albertini (1994, p. 38), “desde o
início existe no pensamento reichiano a hipótese de um princípio
energético”.
Segundo Reich, em 1952, para Freud, “uma das suas maiores descobertas
era que uma idéia não é ativa em si mesma, mas porque tem uma certa
catexis de energia, isto é, tem uma certa quantidade de energia que
lhe está associada. Nisto, ele tinha unido o quantitativo e o
qualitativo. Fez o mesmo quando afirmou que a neurose tinha um núcleo
somático. Mas o quantitativo, o ângulo da energia, era apenas um
conceito. Não era realidade. Agora, enquanto a organização
psicanalítica desenvolveu o ângulo qualitativo, isto é, as idéias, a
sua interligação etc., eu retomei o ângulo da energia” (Reich 1979, p.
115-116).
A Orgonomia é apresentada por Reich como uma radicalização da teoria
da libido de Freud, mas existe aí uma ruptura importante, pois levou a
uma concepção vitalista (ver Rego 1990), antagônica ao que é aceito
pela ciência atual, e que é algo bem diferente das concepções
psicanalíticas.
Ao falar sobre a prevenção de neuroses, Reich nos dá um exemplo do
quanto suas concepções relacionadas ao corpo e à bioenergia se
distanciam dos conceitos psicanalíticos: “na prática, Eros ...
significa se o útero da mãe está vivo ou inerte, se a mãe atinge ou
não o orgasmo durante o coito, ... se o bico do peito da mãe está
carregado orgonoticamente, isto é, se a bioenergia está a funcionar
nessa zona, a fim de que ao procurar satisfazer seu desejo oral, a
criança se agarre a algo que seja gratificante e não um choque” (Reich
1979, p. 67).
A Orgonomia, que em seu início poderia ser descrita como uma
hipertrofia do aspecto econômico da metapsicologia freudiana, ganha
contornos muito diferentes em anos posteriores, chegando a definições,
formulações e propostas de intervenção estranhas à psicanálise, como
se pode ver em obras como “Éter, Deus e o Diabo” e “Superposição
Cósmica” (Reich 1973), e no capítulo XV do "Análise do
Caráter" (Reich, 1995).
Assoun, em seu estudo dobre a epistemologia das idéias freudianas,
aponta que o fundamento energético e quantitativo está presente desde
o início dos trabalhos de Breuer e Freud, mantendo-se ao longo de todo
o desenvolvimento da psicanálise em conceitos como investimento,
descarga, ab-reação, quantum de afeto, libido (Assoun 1983, p.
198-200). Apesar disso, conforme este autor, Freud manteve-se dentro
dos limites da corrente designada como mecanicismo energetizado ou
energetismo mitigado, juntamente com Helmholtz, Fechner e outros. Tal
corrente seria bastante distinta do energetismo radical de Mayer,
Ostwald e Reich: “Freud jamais é levado pela tentação, inerente ao
energetismo doutrinal, de exaltar a energia como princípio ativo
supramecânico e de hipostaziá-la como suporte de uma visão do mundo. A
energia ostwaldiana servia para fundar uma ontologia imaterial; a
energia freudiana serve para designar uma característica
processual” (idem, p. 207). Ou seja, haveria um corte epistemológico
na passagem entre as concepções energéticas de Freud e as de Reich,
uma diferença irredutível entre as formulações de ambos nesse campo.
3.4.2 O TRABALHO SOBRE O CORPO
A grande ruptura técnica vai se dar com a introdução da abordagem
corporal por Reich. A psicologia freudiana é intensamente referenciada
no corpo, porém a intervenção técnica passa primordialmente pela
palavra. Quando Reich introduz o olhar, o toque, os exercícios, a
respiração e a propriocepção, ele resgata aquilo que poderíamos chamar
de uma “vocação corporal” da psicanálise, porém rompe com um ponto
essencial da clínica analítica. Talvez se possa dizer que é uma
clínica psicanaliticamente orientada, mas certamente já não é mais uma
clínica psicanalítica.
Existem autores com opiniões diversas, como Wagner, que considera “o
trabalho de abordagem corporal iniciado por Reich como um dos
desdobramentos possíveis da clínica psicanalítica de Freud” (Wagner
1996, p. 71). Mas me parece mais de acordo com a realidade a
existência de uma ruptura irrecuperável, pois se o psicanalista passar
a olhar e tocar, não será mais um psicanalista (tal como eles se
reconhecem e nós os reconhecemos); se o reichiano deixar de olhar e
tocar, não será mais reichiano. Deste modo, a relação com o corpo na
clínica parece não admitir que se possa chamar de psicanálise a
prática do psicoterapeuta corporal. Refiro-me aqui principalmente à
psicanálise enquanto instituição, enquanto movimento organizado e
reconhecido socialmente. Enquanto teoria sobre o psiquismo ou um campo
do saber, é possível afirmar-se que somos psicanalistas se examinarmos
nossas crenças a partir daquilo que o próprio Freud definiu como
psicanálise (ver discussão em Wagner, 1996, p. 88-98).
3.4.3 A AUTO-REGULAÇÃO
Há uma outra ruptura importante no campo teórico quando Reich integra
às suas formulações o conceito de auto-regulação. Conforme Bellini
(1993, p. 47-55), desde o início de sua carreira, Reich teve um forte
interesse pela biologia e pela sexualidade, tendo inclusive sido isto
que o levou a entrar em contato com Freud. Manteve sempre o interesse
pela biologia, e encontram-se elementos iniciais dessa concepção em
seus escritos a partir de 1927 (Albertini 1994, p. 67). Mas foi após a
ruptura com a psicanálise, em 1934, que Reich retomou de maneira mais
intensa a fundamentação biológica, tendo isso levado-o cada vez mais à
utilização do conceito de auto-regulação como elemento central de suas
concepções.
Conforme Bellini (1993, p. 54), “auto-regulação é a ‘sabedoria do
corpo’, reações e ritmos coordenados que permitem o equilíbrio
dinâmico do corpo. Em Reich, auto-regulação não será um conceito
formalizado, será um axioma, um princípio que se tornará central em
seu pensamento”.
Albertini (1994, p. 68-9) partilha da mesma opinião, dizendo que “pode-
se observar um princípio subjacente, fundamental, básico, primário,
que organiza e dá sustentação teórica ao pensamento reichiano. Esse
princípio é o da auto-regulação, uma espécie de competência
espontânea, visceral, da própria vida. Tal concepção vai substituir as
teses psicanalíticas que também faziam parte do conjunto das idéias de
Reich até este momento [anos 30]. Nesse sentido, o conceito de auto-
regulação passa a ser hegemônico no arcabouço teórico reichiano”.
No mesmo sentido, Dadoun (1991, p. 35) comenta que “o princípio de
auto-regulação, proposto com uma constância excepcional por Reich – e
que ocupa um lugar central no pensamento dele – dispõe de uma base
biológica sólida e praticamente irrefutável”. Assim, “tudo acontece
como se o afrouxamento da couraça caracterial liberasse uma espécie de
competência espontânea, uma aptidão para autodeterminar-se,
aniquilada, atrofiada ou neutralizada pela influência das instituições
sociais e dos modelos culturais. Reich vem a formular nestes termos o
objetivo terapêutico: retirar a energia das inibições morais e
substituí-las pela auto-regulação libidinal” (idem).
Essa guinada de Reich é algo genial, pois alarga os horizontes do
trabalho psicoterápico, abrindo as portas para o terreno da biologia e
da fisiologia. O conceito de auto-regulação nos aproxima do orgânico,
facilitando-nos dialogar, compreender e assimilar os enormes avanços
conquistados nesse campo, como as neurociências, a biologia molecular,
a genética e a psicologia evolutiva. É impossível deixar de admirar a
capacidade de Reich de, já nos anos 30, elaborar formulações que
permanecem válidas e atuais, e que nos deixam mais capacitados a estar
em sintonia com o que se produz de mais avançado em termos de
pesquisas sobre a mente e a consciência a partir do referencial
biológico.
Porém, ao mesmo tempo que abriu algumas portas, Reich fechou com isso
outras em relação à psicanálise, para a qual o conceito de auto-
regulação é um corpo estranho. Constitui-se aqui, portanto, mais um
elemento de ruptura com o referencial freudiano.
4. CONCLUSÕES
Uma primeira conclusão é que a síntese entre psicoterapia reichiana e
psicanálise é um projeto difícil, exigindo um estudo e um debate
aprofundados. Questões complexas, como a discussão da teoria do
orgasmo de Reich, da teoria da pulsão de morte de Freud e das
formulações de ambos sobre a angústia, deverão ser examinadas a fundo
caso se queira uma integração entre estas abordagens. Porém ainda mais
difícil e complexa será a discussão para integrar concepções tão
estranhas entre si quanto a psicanálise, de um lado, e a Orgonomia
reichiana e a idéia de auto-regulação, de outro. Do mesmo modo, a
proposta clínica reichiana de intervenção corporal também irá requerer
muitos ajustes em relação à proposta psicanalítica tradicional,
frontalmente contrária a isto.
Neste ponto, cabe a pergunta: não seria melhor deixar de lado a
psicanálise, como fez o próprio Reich, e buscar o aprimoramento da
psicoterapia reichiana de outras formas? Muitos autores do campo
reichiano parecem seguir nesta direção, pouco ou nada enfatizando a
teoria psicanalítica em sua apresentação das idéias reichianas
(Gaiarsa 1984, 1982; Mann 1989; Raknes 1988). Claro que é válida a
busca de outros caminhos de desenvolvimento, e uma das características
positivas do pensamento reichiano é a sua abertura e amplitude,
permitindo conexões teóricas e práticas das mais variadas. Entretanto,
acredito que o diálogo com a teoria psicanalítica continua sendo
essencial, apesar das dificuldades e dos desafios apontados, e
diversos autores têm dado importância a isto (Baker 1980; Boadella
1997; Boyesen 1986; Briganti 1995, 1994, 1987; Cerri 1994, 1993;
Cornell 1998; Lowen 1982; Rego 1996, 1994, 1992; Wagner 2000, 1996).
O ponto crítico, a meu ver, é que parece faltar um embasamento
psicológico bem fundamentado às diversas escolas de psicoterapia
corporal inspiradas na obra de Reich. Soa um pouco estranho dizer isso
de uma maneira tão radical, mas me parece que Reich e outros
pesquisaram o reino do somático e chegaram a descobertas fantásticas,
criando intervenções que funcionam para além da palavra e do
simbólico. Porém, nesse desenvolvimento, a questão da construção de
uma psicologia profunda que fundamentasse e organizasse essas
formulações acabou ficando um pouco para trás. Segundo o próprio Reich
afirmou em 1944 (p. 11), “a economia sexual não é uma psicologia e sim
uma teoria biofísica da sexualidade.” Um prenúncio disso pode ser
visto já em 1935 quando ele diz que “o orgasmo não é um fenômeno
psíquico (...) no entanto, é o problema central da economia
psíquica.” (Reich, 1995, p. 274). Houve uma ruptura com a psicanálise,
mas não se construiu uma outra teoria psicológica que pudesse
substituí-la. Restou algo como uma psicanálise um tanto rasa e
esquemática a emoldurar a visão de mundo da psicoterapia reichiana.
Muitos autores do campo reichiano buscaram, nos últimos anos, como já
foi citado, preencher esta lacuna mas, na minha opinião, existe ainda
um longo caminho a ser trilhado.
Reich diz que sua abordagem vai além do período verbal e “a
psicanálise não sabe nada sobre isto. Não pode saber. Não é uma
censura. Não quero dizer que seja nociva ou insuficiente. Quero dizer
que é uma psicologia. E a psicologia tem que se cingir à psicologia,
ao trabalho e às idéias psicológicas” (Reich 1979, p. 39). “A
psicanálise é uma psicologia de idéias, enquanto a orgonomia é uma
ciência da energia física”. (idem, p. 118).
Surgiram formas de intervenção que funcionam a nível psíquico e
emocional de maneira um tanto independente do processamento simbólico
e cognitivo , como inúmeras formas de massagem (Boyesen 1986),
exercícios de bioenergética (Lowen e Lowen 1985), grupos de movimento
(Gama e Rego 1994), actings (Navarro 1996), técnicas respiratórias
(Gama e Rego 1994; Lowen e Lowen 1985) etc. Acredito que, por muito
tempo, foi tão fascinante perceber-se sua eficácia, que aos poucos o
desenvolvimento do campo da psicoterapia corporal foi se concentrando
na descoberta e desenvolvimento de novas formas de intervenção
corporal. Paralelamente, parece ter havido um certo descuido do
pensar, do falar, da razão, do simbólico, enfim da psicologia.
Reich afirma em 1944 que “... o economista sexual e vegetoterapeuta é
essencialmente um bioterapeuta e não mais um psicoterapeuta.” (Reich,
1944/1995, p. 10). Comenta também que “a solução dos problemas da
psicologia está fora da esfera da psicologia. Por exemplo, um simples
bloqueio de pulsação orgonótica na garganta torna compreensível, de
forma simples, o mecanismo mais complicado de sadismo oral” (idem, p.
278). Em 1948 afirma que “... o orgonoterapeuta, que está treinado a
ver um paciente antes de mais nada como um organismo biológico (...) o
aspecto psicológico do sofrimento emocional continua a ser importante
e indispensável; já não é, contudo, o aspecto mais importante da
biopsiquiatria orgonômica (...) na orgonoterapia procedemos
bioenergeticamente, e não mais psicologicamente.” (Reich, 1995, p.
11-12). “Na orgonoterapia, nosso trabalho concentra-se nas profundezas
biológicas, no sistema plasmático, ou, como dizemos tecnicamente, no
núcleo biológico do organismo. Este, como fica logo evidente, é um
passo decisivo, porque significa que deixamos a esfera da psicologia,
e da psicologia ‘profunda’, e entramos na área das funções
protoplasmáticas, indo até mesmo além da fisiologia dos nervos e
músculos.” (idem, p. 331). “A orgonoterapia, ao contrário de todas as
outras formas de tratamento, tenta influenciar o organismo não por
meio da linguagem humana, e sim levando o paciente a se expressar
biologicamente (...) a biopatia se coloca fora da esfera da linguagem
e das idéias. Daí que o trabalho orgonoterapêutico sobre a biopatia
humana fica essencialmente fora da esfera da linguagem
humana.” (ibidem, p. 334).
Autores do campo reichiano que propuseram a retomada importância dos
aspectos psicológicos em seu trabalho parecem discordar dessa ênfase
unilateral nos aspectos somáticos. Por exemplo Lowen (1982, p. 36)
comenta que, “como analista, Reich enfatizou a importância da análise
do caráter. No meu tratamento com ele, esse aspecto da terapia foi de
alguma forma minimizado. Foi ainda mais reduzido quando a
vegetoterapia caractero-analítica foi transformada em terapia
orgônica. Apesar de que o trabalho de análise do caráter tome muito
tempo e paciência, este me parece indispensável para um sólido
resultado.”
Note-se que este tipo de abordagem não foi específico das
psicoterapias reichianas. A psiquiatria ao longo do século XX
caracterizou-se em grande medida pela ênfase dada ao tratamento de
doenças mentais a partir de intervenções somáticas. A
psicofarmacologia, a aplicação de correntes elétricas, e mesmo a
secção de tratos nervosos, são em geral o tratamento de escolha, por
serem considerados mais efetivos do que as psicoterapias. Em outras
palavras, o biológico como meio essencial de cura do distúrbio
psicológico, relegando-se para um segundo plano a compreensão
psicológica e o tratamento psicológico dos distúrbios mentais. Ou
seja, o campo reichiano não foi o único a biologizar o psiquismo.
Levada ao extremo, essa tendência levaria a que deixássemos de ser
psicoterapeutas corporais, tornando-nos simplesmente terapeutas
corporais. Ressalte-se que há um grande valor neste segundo tipo de
profissional. São pessoas que podem exercer uma atividade útil e
eficaz, que podem ser de grande valia em inúmeros casos, seja como
atividade associada à psicoterapia ou como algo independente. Acredito
inclusive que uma das boas heranças do movimento reichiano seja ter
criado este tipo de profissional, ampliando o espectro de
possibilidades de combate ao sofrimento humano. Mas é algo diferente
de uma psicoterapia corporal. Ao falarmos em psicoterapia corporal,
estamos pretendendo dar conta de uma abordagem integrada e não-
dissociada da mente e do corpo, do funcionamento uno das dimensões
física e simbólica do ser humano. E para isso é preciso um refinamento
na compreensão do somático e do psíquico, um domínio das intervenções
técnicas em ambos os campos. É nesse ponto, na dimensão do simbólico,
do psíquico, que entra fundamentalmente, a meu ver, a contribuição que
a psicanálise pode dar à psicoterapia corporal.
5. UM POSSÍVEL CAMINHO
Talvez um dia os reichianos (ou pelo menos alguns deles) sejam
considerados como um tipo específico de psicanalista, tal como existem
os lacanianos, os kleinianos e outros. O ramo desmembrado voltaria a
se juntar à árvore principal, as convergências e similaridades sendo
muito mais fortes do que as diferenças.
Outra possibilidade é que a psicoterapia reichiana progrida
formidavelmente na sua especificidade, e os psicanalistas de algum
modo se convençam de que Reich é que estava certo na sua ruptura com
Freud, aderindo em massa às concepções teóricas e clínicas da
psicoterapia corporal.
Acredito que ambos os cenários descritos são bem pouco prováveis, e
gostaria de expor uma outra possibilidade que julgo mais promissora:
seria possível um intercâmbio entre a psicanálise e a teoria
reichiana, mas este ocorreria de maneira unidirecional, ou seja, pode-
se integrar elementos psicanalíticos no campo reichiano, mas o caminho
inverso é bastante difícil e tortuoso. Pode-se fazer tortas de maçã a
partir de maçãs, mas não se pode fazer maçãs a partir de tortas de
maçã.
Algumas analogias podem ajudar. Uma é a do milho e da pipoca. São a
mesma substância, mas uma transformação expansiva se deu, algo mudou.
Há uma ampliação de universo sensorial na psicoterapia reichiana: além
da audição, nós vemos (leitura corporal), nós tocamos (tato), nós
utilizamos a propriocepção de maneira importante. Se couber tudo isso
dentro da psicanálise, ela não será mais psicanálise, como já afirmado
acima. Haveria uma irreversibilidade no processo.
Outra analogia é a relativa aos judeus e cristãos. O cristão aceita os
10 mandamentos, o Genesis, os salmos, e todo o Velho Testamento, mas
ele não é mais judeu. O judeu não o reconhece judeu, ele não se
reconhece judeu. Os rituais e costumes são diferentes e, apesar de
tudo, há uma tradição judaico-cristã. A ninguém de bom senso ocorreria
forçar os cristãos a se converter ao judaísmo e nem vice-versa. É bom
que haja diálogo entre ambos? Sem dúvida, desde que haja respeito à
especificidade de cada um. Da mesma maneira, os reichianos podem
beneficiar-se da leitura do Velho Testamento da Psicanálise, podem
aceitá-lo, valorizá-lo, sem precisar converter-se a algo que não são.
Acredito que é bobagem ficar buscando reconhecimento de paternidade. O
exame do que poderíamos chamar de “DNA ideológico” confirmará a
origem, sem dúvida: veja-se, por exemplo, o já citado levantamento
feito por Wagner (1996, p. 88-98), a partir de textos de Freud que
definem o que é e o que não é psicanálise, concluindo que a teoria
reichiana concorda com todos os aspectos essenciais ali definidos.
Apesar disso, como afirma o próprio Wagner (idem, p. 44) não é o caso
de buscar reintegrar Reich ao IPA ou de resgatar a carteirinha de
psicanalista de Reich.. O que importa é a herança (intelectual), e
felizmente isso não é tão difícil: os livros estão aí, os mestres
estão disponíveis ...
Na minha visão, a atitude correta é a antropofagia, no sentido
simbólico indicado pelos modernistas brasileiros. Não vamos ser como
os psicanalistas, não vamos convertê-los e nem ignorá-los. Vamos
“devorá-los” no que têm de bom e que nos falta.
Proponho aqui uma hipótese sobre a relação entre as idéias de Freud e
Reich, à qual dou o nome de “teoria da pasta de dente”. A proposta
reichiana seria como a pasta de dente que saiu do tubo da psicanálise.
Não é possível, ou pelo menos é muito difícil e forçado, recolocar a
pasta de volta no tubo. Mas é possível, desejável e útil, espremer
mais um bom tanto o tubo da psicanálise para obter mais pasta
reichiana de boa qualidade. A “pasta” a que me refiro seria a
fundamentação psicológica cuja falta leva ao risco de superficialidade
na compreensão dos distúrbios psíquicos, e conseqüentemente também na
intervenção clínica. Uma psicoterapia profunda só é possível quando se
conta com uma compreensão psicodinâmica da estrutura psíquica e do
processo analítico.
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