A imanência: um vida - Gilles Deleuze

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Eliana Guimarães (Psicóloga)

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Nov 10, 2008, 6:56:21 PM11/10/08
to Midiateca: Eliana Guimarães (Psicóloga)

A imanência: um vida...
Gilles Deleuze

O que é um campo transcendental? Ele se distingue da
experiência, na
medida em que não remete a um objeto nem pertence a um
sujeito
(representação empírica). Ele se apresenta, pois, como
pura corrente de
consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva
impessoal, duração
qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer
curioso que o
transcendental se defina por tais dados imediatos:
falaremos de empirismo
transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do
sujeito e do objeto.
Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal
empirismo
transcendental. Não se trata, obviamente, do elemento da
sensação
(empirismo simples), pois a sensação não é mais que um
corte na corrente
da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais
próximas que sejam duas
sensações, da passagem de uma à outra como devir, como
aumento ou
diminuição de potência (quantidade virtual). Será
necessário, como
conseqüência, definir o campo transcendental pela pura
consciência
imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto movimento que
não começa
nem termina? (Até mesmo a concepção espinosista dessa
passagem ou da
quantidade de potência faz apelo à consciência).

Mas a relação do campo transcendental com a consciência
é uma relação
tão-somente de direito. A consciência só se torna um
fato se um sujeito é
produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora do
campo e
aparecendo como “transcendentes”. Ao contrário, na
medida em que a
consciência atravessa o campo transcendental a uma
velocidade infinita, em
toda parte difusa, não há nada que possa revelá-la. Ela
não se exprime, na
verdade, a não ser ao se refletir sobre um sujeito que a
remete a objetos. É
por isso que o campo transcendental não pode ser
definido por sua
consciência, a qual lhe é, no entanto, co-extensiva –
mas ela subtrai-se a
qualquer revelação.

O transcendente não é o transcendental. Na ausência de
consciência, o
campo transcendental se definiria como um puro plano de
imanência, já que
ele escapa à toda transcendência, tanto do sujeito
quanto do objeto. A
imanência absoluta é em si-mesma: ela não existe em
alguma coisa, para
alguma coisa, ela não depende de um objeto e não
pertence a um sujeito.
Em Espinosa, a imanência não existe para a substância,
mas a substância e
os modos existem na imanência. Quando o sujeito e o
objeto, que caem fora
do campo de imanência, são tomados como sujeito
universal ou objeto
qualquer aos quais a imanência é, ela própria,
atribuída, trata-se de toda uma
desnaturação do transcendental que não faz mais do que
reduplicar o
empírico (como em Kant), e de uma deformação da
imanência que se
ncontra, então, contida no transcendente. A imanência
não está relacionada a
Alguma Coisa como unidade superior a toda coisa, nem a
um Sujeito como
ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência
não é mais
imanência para um outro que não seja ela mesma que se
pode falar de um
plano de imanência. Assim como o campo transcendental
não se define pela
consciência, o plano de imanência não se define por um
Sujeito ou um Objeto
capazes de o conter.

Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada
diferente disso.
Ela não é imanência para a vida, mas o imanente que não
existe em nada é,
ele próprio, uma vida. Uma vida é a imanência da
imanência, a imanência
absoluta: ela é potência completa, beatitude completa. É
na medida em que
ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que
Fichte, em sua última
filosofia, apresenta o campo transcendental como uma
vida, que não
depende de um Ser e não está submetido a um Ato:
consciência imediata
absoluta, cuja atividade mesma não remete mais a um ser,
mas não cessa
de se situar em uma vida. O campo transcendental torna-
se então um
verdadeiro plano de imanência que re-introduz o
espinosismo no mais
profundo da operação filosófica. Não é uma aventura
semelhante que
sobrevém a Maine de Biran, em sua “última
filosofia” (aquela que ele estava
demasiadamente fatigado para levar a bom termo), quando
ele descobria,
sob a transcendência do esforço, uma vida imanente
absoluta? O campo
transcendental se define por um plano de imanência, e o
plano de imanência
por uma vida.

O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que
Dickens narrou o que
é uma vida, ao tomar em consideração o artigo indefinido
como índice do
transcendental. Um canalha, um mau sujeito, desprezado
por todos, está para
morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma
espécie de
solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de
vida do moribundo.
Todo mundo se apresta a salvá-lo, a tal ponto que no
mais profundo de seu
coma o homem mau sente, ele próprio, alguma coisa de
doce penetrá-lo.
Mas à medida que ele volta à vida, seus salvadores se
tornam mais frios, e
ele recobra toda sua grosseria, toda sua maldade. Entre
sua vida e sua
morte, há um momento que não é mais do que aquele de uma
vida jogando
com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida
impessoal, e
entretanto singular, que despreende um puro
acontecimento, liberado dos
acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é,
da subjetividade e da
objetividade daquilo que acontece. “Homo tantum” do qual
todo mundo se
compadece e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-
se de uma
heceidade, que não é mais de individuação, mas de
singularização: vida de
pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma
vez que apenas o
sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa
ou má. A vida de tal
individualidade se apaga em favor da vida singular
imanente a um homem
que não tem mais nome, embora ele não se confunda com
nenhum outro.
Essência singular, uma vida...

Não deveria ser preciso conter uma vida no simples
momento em que a vida
individual confronta o morto universal. Uma vida está em
toda parte, em
todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa
e que tais objetos
vividos medem: vida imanente que transporta os
acontecimentos ou
singularidades que não fazem mais do que se atualizar
nos sujeitos e nos
objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria,
momentos, por mais
próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-
tempos,
entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas
apresenta a imensidão
do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por
vir e já ocorrido, no
absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca
de Lernet-Holenia
coloca o acontecimento em um entre-tempo que pode
devorar regimentos
inteiros. As singularidades ou os acontecimentos
constitutivos de uma vida
coexistem com os acidentes d’avida correspondente, mas
não se agrupam
nem se dividem da mesma maneira. Eles se comunicam entre
eles de uma
maneira completamente diferente da dos indivíduos.
Parece mesmo que uma
vida singular pode passar sem qualquer individualidade
ou sem qualquer
outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as
crianças bem
pequenas se parecem todas e não têm nenhuma
individualidade; mas elas
têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta,
acontecimentos que
não são características subjetivas. As crianças bem
pequenas, em meio a
todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessadas por
uma vida imanente
que é pura potência, e até mesmo beatitude. Os
indefinidos de uma vida
perdem toda indeterminação na medida em que eles
preenchem um plano
de imanência ou, o que vem a dar estritamente no mesmo,
constituem os
elementos de um campo transcendental (a vida individual,
ao contrário,
continua inseparável das determinações empíricas). O
indefinido como tal
não assinala uma indeterminação empírica, mas uma
determinação de
imanência ou de uma determinabilidade transcendental. O
artigo indefinido
não é a indeterminação da pessoa a não ser na medida em
que é a
determinação do singular. O Uno não é o transcendente
que pode conter
mesmo a imanência, mas o imanente contido em um campo
transcendental.
O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um
acontecimento, uma
singularidade, uma vida... Pode-se sempre invocar um
transcendente que
recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui
imanência a si
próprio: permanece o fato de que toda transcendência se
constitui
unicamente na corrente de consciência imanente própria a
seu plano. A
transcendência é sempre um produto de imanência.

Uma vida não contém nada mais que virtuais. Ela é feita
de virtualidades,
acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos de
virtual não é algo
ao qual falte realidade, mas que se envolve em um
processo de atualização
ao seguir o plano que lhe dá sua realidade própria. O
acontecimento
imanente se atualiza em um estado de coisas e em um
estado vivido que
fazem com que ele aconteça. O plano de imanência se
atualiza, ele próprio,
em um Objeto e um Sujeito aos quais ele se atribui. Mas,
por mais
separáveis que eles sejam de sua atualização, o plano de
imanência é, ele
próprio, virtual, na medida em que os acontecimentos que
o povoam são
virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão
ao plano toda sua
virtualidade, como o plano de imanência dá aos
acontecimentos virtuais uma
plena realidade. O acontecimento considerado como não-
atualizado
(indefinido) não carece de nada. É suficiente colocá-lo
em relação com seus
concomitantes: um campo transcendental, um campo de
imanência, uma
vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se
atualiza em um estado de
coisas e em um vivido; mas ela própria é um puro virtual
sobre o plano de
imanência que nos transporta em uma vida. Minha ferida
existia antes de
mim... Não uma transcendência da ferida como atualidade
superior, mas sua
imanência como virtualidade, sempre no seio de um milieu
(campo ou
plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que
definem a imanência
do campo transcendental, e as formas possíveis que os
atualizam e que os
transformam em alguma coisa de transcendental.




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