Releitura de textos de Tomás de Aquino visando a construção de um pensamento psicológico

19 views
Skip to first unread message

Eliana Guimarães (Psicóloga)

unread,
Nov 13, 2008, 3:29:35 PM11/13/08
to Midiateca: Eliana Guimarães (Psicóloga)
Releitura de textos de Tomás de Aquino visando a construção de um
pensamento psicológico
Resumo

Estudo teórico que começa no campo da história das idéias
psicológicas. Investiga como Tomás de Aquino constrói seu pensamento
no que diz respeito ao que hoje chamaríamos de psicologia. A leitura
que foi feita de seus textos buscou o sentido de suas afirmações, e de
suas construções, mais do que suas fórmulas. Foram encontradas três
raízes para essa construção do pensamento psicológico: uma abertura
para outras fontes de significado além da razão instrumental, o
envolvimento com o movimento da inquietação humana, e a confiança na
linguagem comum, expressiva do experimento semântico coletivo da
humanidade. Esse pensamento psicológico deve clarear nosso modo de
falar sobre a alma, examinar como as operações da alma se apresentam
na trama da ação humana, e mostrar o sentido dos símbolos históricos
do caminhar humano.

Palavras-chave: Tomás de Aquino; alma; matéria.

Abstract

This theoretical study begins in the field of the history of the
psychological ideas. It investigates how Thomas Aquinas builds his
thought in that field that today we call Psychology. The reading that
was done of his texts looked for the sense of his statements, and
constructions, more than his words. Three roots were found for that
construction of the psychological thought: an opening for other
sources of meaning besides the instrumental reason, the involvement
with the movement of human disquietude, and the trust in a common
language as humanity's semantic research. This psychological thought
should clarify our way of talking about the soul, it should examine
how the operations of the soul direct the human action, and it should
show the sense of the historical symbols found along the path of human
life.

Keywords: Thomas of Aquinas; soul, matter.



Esta pesquisa começa no campo da história das idéias psicológicas (que
é onde nos perguntamos como se formaram os conceitos através dos quais
foram sendo pensadas a alma humana, o psiquismo e suas manifestações).
Contudo não visa reconstituir fórmulas, e sim encontrar o sentido. É
assim que procuramos estabelecer a ponte com o hoje da psicologia.
Nosso objetivo é resgatar, por esse caminho, a psicologia contida em
pensamentos antigos, anteriores às cisões epistemológicas da
modernidade.

Gostaríamos de explorar, por exemplo, a origem do pensamento
psicológico do africano Agostinho de Hipona (1997, 1994). Ele
constrói, na virada do séc. IV para o V, uma compreensão de Deus a
partir da consideração da psicologia humana, baseando-se no
pressuposto de que o homem, tendo sido feito à imagem e semelhança de
Deus, pode ser para nós um caminho nessa compreensão. Também
poderíamos explorar Boaventura de Bagnoregio (1999), o mestre
franciscano do séc. XIII, ou o místico alemão do séc. XIV, mestre
Eckhart (1983), profundos conhecedores dos itinerários psicológicos.
Faríamos com eles um trabalho semelhante ao que Leloup (2000) fez com
Fílon de Alexandria (filósofo judeu do séc. I). Escolhemos, porém,
para iniciar nossa viagem, Tomás de Aquino, o grande pensador do séc.
XIII. Mas por que ele?

Além de ele se movimentar numa atmosfera pré-cartesiana (o que por si
só já seria interessante, pois nos faria entrever possibilidades
diferentes da abordagem dicotomizada de se pensar o humano), Tomás
está na origem de uma das fontes plasmadoras da mentalidade latino-
americana, por mais incrível que isso possa parecer. Quem nos abriu
essa percepção foi Marina Massimi, historiadora da psicologia no
Brasil. Os primeiros missionários que por aqui estiveram ainda no séc.
XVI, e muitos dos que vieram depois, e que trabalharam na formação da
alma popular, foram, por sua vez, formados em escolas ibéricas onde o
pensamento básico era o de Tomás de Aquino (Massimi, 2001, 2001a).

Pelo pensamento de Tomás de Aquino passa praticamente todo saber da
época, buscando um lugar coerente numa doutrina polarizada pela fé
religiosa. Assim é que podemos encontrar em seus escritos um extenso e
minucioso pensamento psicológico, baseado nos autores de referência na
época, e em suas próprias observações, reflexões e sistematizações.
Sua obra principal, na qual nos basearemos primeiramente aqui, foi a
chamada Suma Teológica (escrita entre 1268 e 1273), uma imensa e
complexa reflexão, talvez comparável somente com as belíssimas
catedrais medievais. Trata-se de uma obra escrita em latim medieval,
composta de 5 volumes de aproximadamente 800 páginas cada um, mas para
a qual já existem boas edições bilíngües (Tomás de Aquino, 1951, 1980,
2001). O sistema de referências utilizado para as citações, aqui, é o
adotado pela edição Loyola (o primeiro dígito, em algarismos romanos,
indica a “parte” da Suma Teológica, o segundo, em arábicos, a
“questão”, o terceiro, também em arábicos, o “artigo”; e
“prólogo” [pról.], “objeção” [obj.], “em sentido contrário” [s.c.] e
“solução a uma objeção” [sol.] estão abreviados conforme indicado
entre colchetes). Boas introduções à vida de Tomás de Aquino e sua
obra podem ser encontradas em Nascimento (1992b), Lauand (1999) e
Torrell (1999). – Sobre o contexto de seu pensamento, ver, por
exemplo, Jeauneau (1986) e Nascimento (1992a).

A leitura que faremos do mestre medieval pode ser chamada de
fenomenológica, pois estaremos buscando muito mais o sentido que suas
afirmações podem ter para o psicólogo de hoje, do que as próprias
palavras com as quais ele encerra alguma questão. Assim sendo podemos
dizer que nosso objetivo primeiro é procurar saber como Tomás de
Aquino constrói o que chamaríamos nós de um pensamento psicológico,
investigando as bases desse pensamento em sua obra principal, a Suma
Teológica, visando tirar daí sugestões para uma construção atual que
supere certos impasses epistemológicos. Nossa pretensão é, na verdade,
um contato direto com o texto mesmo do mestre, a partir das
preocupações atuais de uma psicologia humanista de feitio
fenomenológico (deixando para outra ocasião um estudo bibliográfico a
respeito de como a psicologia “tomista” pôde ser entendida). Nesse
sentido, obras como a do médico-filósofo Laín Entralgo (1995)
aproximam-se mais da intenção deste artigo, pois elas procuram
construir também uma compreensão do ser humano a partir de uma
história das idéias e em contato com pesquisas da área.

Além da ciência
A primeira questão que aparece na Suma Teológica diz respeito à
suficiência ou não das doutrinas filosóficas (e da ciência) para dar
ao homem uma orientação completa de vida. O pensamento de Tomás de
Aquino aponta claramente para a insuficiência (não a inutilidade) de
qualquer saber construído somente com os recursos racionais, e indica
a necessidade de uma doutrina de outra ordem.

É preciso, diz ele, haver uma doutrina de vida que trate de assuntos
que vão além daqueles que a razão humana, sozinha, é capaz de
investigar. E isso porque o ser humano, de fato, aspira coisas que
estão além daquilo que pode ser investigado pela razão. Mas, além
disso, porque, mesmo naquelas coisas que podem ser investigadas
somente com a razão, quando se trata de assuntos como a vida e a
felicidade, há dificuldade grande no seu questionamento sistemático e
metódico. Estamos sempre sujeitos a erros, diz ele, e, na prática, os
resultados de uma tal investigação, pela sua sofisticação e
complexidade, são pouco acessíveis à maioria das pessoas. Deve, pois,
também por esse motivo, haver um outro caminho de acesso às verdades
de vida.

A afirmação básica, pois, é: como doutrina de vida, a ciência não
basta. Deve haver uma outra forma de ligação com os objetivos humanos,
que envolva um outro tipo de saber, um outro tipo de discurso, um
outro tipo de prática. Tomás aqui se preocupa com a condição concreta
do ser humano, respeita a experiência do caráter ilimitado de suas
aspirações, por um lado, e, por outro, o caráter limitado de seus
esforços.

Mas que outro caminho é esse? Por enquanto ele só vai dizer que é uma
participação a um saber maior, divino; o que significa, na sua
linguagem, um saber recebido “por revelação”. Por esse caminho o ser
humano não mais constrói e possui a sabedoria, mas se deixa possuir
por ela. O acesso a essa outra sabedoria é uma entrega pessoal, numa
consciência de seu lugar no universo, e ao mesmo tempo uma entrega que
se apóia na consideração de fatos concretos da história vivida pelos
homens.

“É necessário existir para a salvação do homem, [para] além das
disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma
doutrina fundada na revelação divina” (I, q.1, a.1). Para que a vida
do homem tenha um sentido, é preciso recorrer a um conhecimento de
outra ordem. “Revelação” aqui significa uma intuição, vivida como
recebida de um poder maior, num determinado tempo, sobre o sentido do
que acontece, e que também se transmite historicamente depois,
enriquecendo-se de sentidos.

A doutrina sagrada [em que consiste esse conhecimento de outra ordem]
(...) procede de princípios conhecidos à luz de uma ciência superior
(...). Como a música aceita os princípios que lhe são passados pelo
aritmético, assim também a doutrina sagrada aceita os princípios
revelados por Deus. (I, q.1, a.2).

E o ser humano pode dançar conforme essa música, sem ter que ficar
pensando em alta matemática.

“Fatos singulares são relatados na doutrina sagrada (...) como
exemplos de vida (...) ou visam estabelecer a autoridade dos homens
pelos quais nos chega a revelação” (I, q.1, a.2, sol.2). O “fato
singular” é, nesta linguagem, o coneito representante do que hoje
chamaríamos, talvez, de fato histórico. A doutrina sagrada tem um
aspecto de narrativa, de olhar para a história concreta dos humanos. É
uma visão da história que revela uma dimensão nova, um sentido
inaudito.

O acesso a esse sentido, coerentemente com a forma como ele se
manifesta, é uma entrega pessoal, uma fé (e não um raciocínio
abstrato). No entanto desdobra-se em um pensamento exigente no qual o
ser humano procura compreender a harmonia do que aí se coloca, tirar
conclusões práticas e apreciar sua fundamentação.

A doutrina sagrada [enquanto um pensamento construído pelo homem a
partir da “revelação”] não se vale da argumentação para provar seus
próprios princípios, as verdades da fé; mas parte deles para
manifestar alguma outra verdade (...). Não tendo outra [doutrina] que
lhe seja superior [na ordem das doutrinas de vida, diríamos nós], terá
que disputar com quem nega seus princípios. Ela o fará valendo-se da
argumentação, se o adversário concede algo (...). Mas se o adversário
não acredita em nada [das verdades a que se poderia ter acesso por
aquele outro caminho], não resta nenhum modo de provar com argumentos
os artigos da fé; pode-se apenas refutar os argumentos que oporia à
fé. (I, q.1, a.8).

O que ele está dizendo aqui? Como o podemos ler? Ao mesmo tempo que o
acesso a esse outro saber, diferente do meramente racional, implica em
uma entrega pessoal, uma fé, implica também em uma intensa atividade
crítica de pensamento, que no entanto não pode pretender provar o
conteúdo do que é sabido nessa outra ordem de saber.

Pois bem, é no contexto dessa “doutrina sagrada”, dessa “teologia”,
que iremos encontrar toda uma psicologia implícita. O sentido mais
profundo dessa psicologia vai depender de um contato com a
problemática existencial concreta do ser humano, de um contato com os
dilemas básicos que se colocam para o homem. Vejamos isso um pouco
mais de perto.

Enraizado nas buscas existenciais

Uma de primeiras afirmações dessa teologia é que, por natureza, nós só
temos um conhecimento vago e confuso de Deus (isto é, daquilo em que
consiste o sentido último de nossa existência), embutido em nosso
desejo de felicidade.

Está impresso naturalmente em nós algum conhecimento geral e confuso
(...) de Deus, isto é, Deus como a felicidade do homem, pois o homem
deseja naturalmente a felicidade, e o que por sua própria natureza ele
deseja, naturalmente também conhece. Mas nisso não consiste em
absoluto o conhecimento (...) de Deus (...). Muitos [de fato] pensam
que a felicidade, este bem perfeito do homem, consiste nas riquezas,
outros a colocam nos prazeres ou em qualquer outra coisa. (I, q.2, a.
1, sol.1).

O conhecimento daquilo em que consiste a felicidade, faz parte de um
dinamismo de busca. Todos desejam a felicidade, e é esse o dinamismo
que anima o viver. Mas existe a necessidade de todo um “trabalho” de
discernimento e tomadas de posição para que encontremos o caminho.
Nesse trabalho vamos elaborando significados, os quais nos orientam em
nossa vida, gerando assim novas experiências e significados (ver
também I-II, q.2 e 3).

Existe, então, um conhecimento apenas geral e mais ou menos vago da
natureza do desejo que nos habita. É uma experiência interior da qual
podemos nos dar conta. Mas não um conhecimento claro de algo que
polarize esse desejo. Quem vivencia aquele outro caminho para o
encontro de uma orientação de vida (acolhendo na fé o que se manifesta
historicamente), poderá entender que a felicidade, em última
instância, está numa reaproximação do Ser, realidade central, origem e
sentido de todas as coisas, por alguns chamado de “Deus”. Mas ainda
assim não sabe com total clareza o que significa isso. Tem uma direção
para seu caminhar, e nele vai construindo progressivamente
significados que o ajudam nessa aproximação. As realidades
experimentadas, porém, não são da mesma ordem que as conclusões de um
saber racional.

Que modelo de funcionamento humano é subjacente a essa forma de ver?
Temos uma experiência do movimento que nos anima, de nosso desejo, de
nossas aspirações. A partir daí, com a vida e as escolhas que fazemos,
vamos significando essa experiência e o mundo em torno. Esses
significados, por sua vez, iluminam nosso próprio caminhar, e geram
novas experiências e novos significados. Nossa segunda afirmação
poderia, então, ser essa: é no dinamismo de nossas buscas existenciais
que vamos construindo nossos significados.

Apoiando-se na linguagem comum como num laboratório

E uma terceira afirmação seria: essa construção de significados não é
obra de um ser humano isolado, mas a própria linguagem, socialmente
construída, contém pistas capazes de nos orientar, colocando-nos em
contato com a experiência da humanidade. Tomás se apóia nos modos de
dizer para desvelar a realidade humana interior, tão complexa e de
difícil abordagem direta.

Na pesquisa do que consiste a vida, por exemplo, ele propõe um
princípio metodológico geral: para caracterizarmos um fenômeno devemos
partir da consideração daqueles seres onde esse fenômeno se apresenta
de forma clara. Então, para sabermos o que é a vida, diz ele, devemos
considerar os seres que manifestamente para nós são vivos, ou seja, a
respeito dos quais não temos dúvida em declarar que são vivos. Ora, os
seres, a respeito dos quais não temos dúvida em dizer que são vivos,
são os animais. Neles o momento da morte é claro: aí eles deixam de
ser entidades viventes, e a matéria de que eram compostos se dispersa.
E, por outro lado, o surgimento do ser vivo, como unidade
independente, também é claro: a vida começa a existir quando aquele
ser se torna autônomo, passa a se mexer por si mesmo.

Por aqueles em quem a vida é manifesta, podemos entender quem vive e
quem não vive. Ora, a vida cabe claramente aos animais (...). Assim
deve-se distinguir os vivos dos não-vivos, por aquilo pelo qual os
animais se dizem vivos, a saber, por aquilo em que por primeiro a vida
se manifesta e em que por último permanece. Com efeito, dizemos que,
por primeiro, um animal vive, quando começa a mover-se por si próprio,
e julgamos que vive tanto tempo quanto o movimento nele aparece.
Quando, pelo contrário, já não tem por si mesmo movimento algum, mas é
apenas movido por outro, dizemos que está morto (...). Assim, é
chamado vivo tudo o que se move ou age por si mesmo. Os que, por
natureza, não se movem nem agem por si mesmos só serão chamados vivos
por semelhança. (I, q.18, a.1).

A linguagem é construída para dar conta da experiência. Podemos nos
basear nela, então, para clarear os conceitos através dos quais
designamos os objetos e suas características. Repare o leitor, no
texto acima, como Tomás explora não tanto os objetos em si, mas a
relação que nós humanos temos com eles, a forma como espontaneamente
os significamos. A língua foi se moldando para dar conta da
complexidade da vida: a vida se manifesta ... os animais se dizem
vivos ... dizemos que ... julgamos que ... dizemos que. Assim, é
chamado ... É tão válido dizermos que ele está esclarecendo o fenômeno
em si, como dizermos que está esclarecendo nossa linguagem. Essas duas
abordagens se confundem, e como que, se interpenetram. Lauand,
seguindo de perto Pieper, nos lembra a esse propósito uma bela frase
de Tomás de Aquino no começo de uma outra obra, a Suma Contra os
Gentios: “a linguagem corrente das pessoas (ou, como traduz Lauand, o
uso comum do povo - multitudinis usus), que, segundo crê Aristóteles,
deve ser seguido na denominação das coisas, quis que comumente se
chamem sábios aqueles que...” (I, CG, cap.1; cf. Tomás de Aquino,
1952, p.95). E Lauand (1999) comenta: “A linguagem comum é por ele
considerada depositária de sabedoria, quando devidamente trabalhada,
garimpada”. (p. 49). E, mais adiante: “O filosofar é, em boa medida,
uma tentativa de lembrar, de resgatar os grandes insights de sabedoria
que se encontram encerrados na linguagem comum” (p.50). E o fato de
que as diversas línguas tenham modos diferentes de significar (I, q.
39, art.3, sol.2) não impede isso, pois, o trabalho do pensador não
termina na língua em si, mas na realidade significada.

O pensamento é construído para dar conta da experiência, pela mediação
da linguagem. Esta, na verdade, por expressar nossa experiência com a
lida das coisas do mundo, constitui-se como um sinal do que são as
coisas. Quando Tomás de Aquino fala de “vida” e de “alma”, por
exemplo, ele está se referindo a modos de significar o real. Com ele,
movimentamo-nos constantemente na relação homem-mundo. Eu ousaria
dizer que, se nos ativermos às intuições e ao movimento básico de seu
pensamento, não existe alma em si, e nem vida em si, assim como,
aliás, também não existe a matéria em si. Esses termos são criações do
homem para dar conta da realidade com a qual ele precisa lidar. Antes
da elaboração explícita do pensamento, a linguagem já tinha feito seu
trabalho. Nosso esforço de pensar a realidade pode se apoiar na
linguagem para ir mais longe.

Os possíveis conteúdos de uma psicologia

Partindo desses pressupostos operacionais epistemológicos, Tomás de
Aquino propõe 3 grandes partes para o movimento de expor-acompanhar a
Doutrina Sagrada (sobre a arquitetura e o “movimento” da Suma
Teológica, ver a belíssima tese de Lafont, 1960, e também Torrell,
1999), e isso tem a ver com nosso intento de buscar sua psicologia. Na
Primeira Parte ele vai considerar “Deus”, fonte primeira de tudo que
existe, e ao mesmo tempo sentido último de todas as existências (I, q.
2, pról.). Podemos ler aí a consideração da realidade em seus
fundamentos primeiros e em seu sentido radical. No que diz respeito à
psicologia, vamos encontrar nessa primeira parte considerações sobre a
alma humana (o psiquismo humano) e a maneira adequada de falar sobre
ela. Na Segunda Parte ele vai tratar do “movimento da criatura
racional para Deus” (I, q.2, pról.), ou seja, as ações humanas.
Podemos ler nessa parte a consideração do sentido do agir, e a
orquestração do interior humano nesse movimento: como se apresenta a
alma na ação do homem que busca, delibera, decide. E na Terceira
Parte, vai considerar “o homem chamado Cristo que é para nós o caminho
que leva a Deus” (Idem). Podemos ler aí a consideração da história
concreta, dos eventos que a marcam como símbolos desse caminhar da
humanidade. Nossa leitura poderá encontrar aí como se apresentam os
símbolos no psiquismo humano, inseridos nesse contexto concreto.

Uma “psicologia tomasiana” deveria considerar então 1) como falar
consistentemente da alma humana; 2) como essa alma se manifesta no
dinamismo do agir; e 3) como ela se preenche de conteúdos através dos
símbolos historicamente produzidos. Um imenso programa que apenas
mencionamos aqui como para aquilatar o alcance dessa possível
psicologia.

A psicologia começa com a vida

Uma psicologia que levasse em conta as intuições do mestre medieval
deveria começar por um olhar para nosso mundo, situando aí a
originalidade da vida. É no contexto do universo material que surge a
vida, e com ela o psiquismo.

Ser vivente significa ter uma unidade que transcende a dos componentes
materiais elementares que se agrupam no organismo. O que caracteriza a
vida é justamente o fato de que o todo do ser é que se relaciona com o
meio. O ser vivo é um sistema fechado que se organiza e se preserva na
relação com o meio. O conceito de “alma” atende a essa percepção: num
corpo vivo existe uma estrutura integrativa dinâmica responsável pelo
seu ser, por seu funcionamento como unidade, e por seu
desenvolvimento. Se divido uma pedra ao meio, terei duas pedras: isso
é um tipo de unidade. Se divido um gato ao meio, terei um gato morto,
ou seja, não mais terei nenhum gato. É outro tipo de unidade. A
linguagem criou o conceito de alma porque era necessário para darmos
conta da originalidade do ser vivo. Dizer “tem alma”, é o mesmo que
dizer “é animado” ou “é vivente”, isto é, “tem uma unidade de outro
nível”, ou ainda “preserva-se como um todo”. A psicologia é o estudo
da alma (psique = alma, logos = razão). E então deve começar fazendo
contato com a originalidade do ser vivo, constituindo o psiquismo como
seu objeto.

Eis o que diz Tomás: “a ação da alma ultrapassa a ação da natureza
corporal. A natureza corporal, toda ela, está com efeito submetida à
alma, e se refere a ela como matéria e instrumento” (I, q.78, a.1). As
operações dos elementos materiais no corpo vivo são como instrumentos
a serviço da vida; mas a vida as ultrapassa, como uma estrutura
ultrapassa as sub-estruturas que utiliza.

A partir daí Tomás vai caracterizar a vida pela autonomia de
movimentos. Começa a ser vivente aquele que começa a se mover por si
mesmo, preservando sua unidade (e dando continuidade assim ao fluxo da
vida no planeta). E já não é mais vivente aquele que já não se move a
si mesmo, mas apenas é movido por outro (colocando sua matéria a
serviço de outros sistemas).

A vida não é como uma porção de matéria que contamina o restante de um
corpo. Ela é a própria matéria bruta enrolando-se sobre si própria,
organizando-se num sistema complexo, diferente dos níveis de
organização anteriores, ganhando uma autonomia nova e caminhando para
uma preservação do indivíduo, e ultrapassando o próprio indivíduo na
busca de se garantir como um fluxo novo no mundo material. O movimento
do universo material já trazia em seu bojo a potencialidade do que
viria a ser vida: para Tomás ele tem uma “semelhança de vida” (I, q.
18, a.1, sol.1). Bem poderíamos dizer, de nosso ponto de vista, que
essa semelhança de vida não deixa de ser uma semente.

A vida transfigura totalmente uma determinada porção de matéria.
Quando o corpo vivo morre, não podemos mais dizer que é o mesmo ser.
Tomás evoca aqui um dito de Aristóteles: para os seres vivos, viver é
ser (I, q.18, a.2, s.c.). Viver refere-se a esse modo de ser
consistente, no fluxo do universo, e não apenas ao operar. O operar
decorre do ser.

Em decorrência desse olhar para o ser podemos ver que a vida se
apresenta em graus diferentes, e com características diferentes. O
tipo de autonomia que têm as plantas não é o mesmo daquele que se
apresenta nos animais. E a autonomia que é possível ao ser humano, por
sua vez, ultrapassa aquela dos animais. Se a manifestação básica da
vida em nosso mundo for a vegetativa, a partir daí ela vai se
mostrando em formas cada vez mais complexas, até chegar no ser humano.
Este cresce como uma planta, percebe e sente como um animal, e, além
disso, pensa, é capaz de um entendimento e de um afeto de outra ordem
de complexidade. O ser humano transcende as determinações de uma
natureza fechada (própria da planta), de um instinto também totalmente
determinante (como no animal), e se abre para a reflexão, o que lhe
permite um grau de autonomia antes insuspeitado (I, q.18, art.3). É
importante dizermos que essa graduação nos processos da vida,
explícita em Tomás de Aquino, corresponde ao que nós, melhor do que
ele, vemos num fluxo evolutivo: na história do mundo foram emergindo
formas cada vez mais complexas de organização autônoma e unidade,
transcendendo sempre mais as possibilidades isoladas da matéria
elementar.

Nosso mundo não se compõe apenas de “matéria elementar”. Existem
“estruturas complexas” que organizam essa matéria elementar e lhe dão
um sentido novo. Como se apresenta isso?

Matéria e forma, corpo e alma

Para Tomás de Aquino nosso mundo está cheio de “coisas”, de corpos, de
seres. Nesses corpos ocorrem transformações. Mas quando falamos em
transformação estamos querendo dizer que algo muda, mas também que
algo permanece. Esse substrato que permanece sob a transformação das
“formas”, é que seria a “matéria”. Entre os primeiros filósofos essa
matéria foi identificada com os elementos: terra, água, fogo e ar.
Completos em si mesmos, os elementos entrariam em composição uns com
os outros, em proporções diversas, para constituir as diferentes
“coisas” de nosso mundo. Mas outros filósofos foram mais longe dizendo
que cada elemento é também composto de matéria e forma: forma de
terra, de água, de ar, de fogo, e a matéria primeira de que eles são
feitos (ver, por exemplo, I, q.44, a.3). Essa matéria primeira, em si
mesma, nada mais seria que pura potencialidade para diversas formas,
e, nesse sentido, indeterminada, pois, qualquer determinação já seria
uma forma, uma estrutura. Não apenas o formato externo, a cor, o
contorno, são forma. A própria estrutura íntima de cada coisa é forma.
A matéria primeira, então, nunca existe sozinha. Ela seria apenas o
substrato de todas as transformações de nosso mundo material. Algo
quase imaterial...

Matéria e forma, para Tomás de Aquino, não podem ser concebidas como
duas entidades completas em si mesmas, assim como, aliás, corpo e alma
também não. Se assim fosse, se os componentes permanecessem completos
no composto, este, como entidade, seria uma ilusão. Matéria e forma
não são duas “entidades”, mas dois “princípios”, isto é, algo que
devemos pressupor, para podermos pensar a realidade de modo
consistente (I, q.75, art.1).

Quando um corpo tem como característica o fato de ele poder mover-se a
si mesmo, então dizemos que é um ser vivo. Sua forma é de vivo. Neste
caso, ela, a forma, se chama “alma” (anima); pois dizemos que é um
corpo animado. A alma é, então, a forma própria dos corpos que são
vivos, sua estrutura unificadora e dinâmica. Dizer “tem alma” é o
mesmo que dizer “é animado”, “move-se por si mesmo”.

A complexidade de nosso mundo

Da forma vem o ser em tal natureza. Da matéria vem a comunidade de
pertença ao mesmo mundo. Matéria e forma fazem parte da linguagem
usada por Tomás de Aquino para dar conta do mundo em que vivemos.
Contudo, neste mundo surge uma realidade de outra ordem: o
conhecimento (I, q.75, art.1). Com ele entramos num âmbito de
considerações bastante original: o mundo intencional, mental,
espiritual. O que vem a ser isso?

Conhecer (ver, ouvir, sentir, saber, entender) é um modo de “ter” o
objeto dentro de si. No entanto esse “ter” não é físico. Se, ao ver
uma árvore, eu a tivesse fisicamente dentro de mim, eu me destruiria.
A árvore que “tenho dentro de mim” não é a mesma que “está lá fora”. A
que tenho em mim é uma “imagem” da que está lá fora, através da qual
me refiro a ela. Mas o que conheço não é a imagem, e sim a árvore lá
fora. Conhecer é uma relação pura, digamos assim, mesmo que mediada
pela imagem. Não consiste em “fazer alguma coisa” com o objeto, mas
apenas em tê-lo “espiritualmente”, não materialmente. A palavra
latina, muitas vezes usada para dizer isso, é “intentio”, intenção. O
conhecimento é um fenômeno “intencional” (eu “tendo” para a coisa,
“relaciono-me” com ela). O conhecimento em si não é material, ele põe
o sujeito “fora” de si mesmo, e inicia uma ordem de relações
totalmente original (que só é possível para os seres onde existe um
“dentro”, em função de sua forma-alma).

Há duas espécies de modificação: uma é natural, outra é espiritual. A
modificação é natural quando a forma do que causa a mudança é recebida
no que é mudado segundo seu ser natural [diríamos físico]. Por
exemplo, o calor no que é esquentado [ele passa fisicamente da fonte
de calor para o objeto aquecido]. Uma modificação é espiritual quando
a forma é recebida segundo seu ser espiritual. (...) Para a ação dos
sentidos, requer-se uma modificação espiritual pela qual a forma
intencional do objeto sensível é produzida no órgão do sentido. De
outra sorte, se a modificação natural bastasse por si só para produzir
a sensação, todos os corpos naturais, ao se alterarem, sentiriam. (I,
q.78, a.3).

A modificação material não é sempre portadora da modificação
espiritual. A imagem de cor no olho que vê, é um apoio físico para a
relação de conhecimento da cor. Mas o que vejo não é a imagem de meu
olho (ou meu cérebro), e sim o objeto colorido que está aí fora diante
de mim. Em suma, um fenômeno original no mundo material. Um fenômeno
espiritual.

Os modos da relação “conhecimento” variam conforme o nível de vida. O
conhecimento sensorial (ver, sentir com o tato, ouvir, sentir o gosto
ou o cheiro), típico da animalidade, corresponde a um nível diferente
daquele do conhecimento intelectual (entender, compreender, saber o
que é, raciocinar). No entanto esses níveis estão interligados no ser
humano (o entendimento pressupõe uma atividade sensorial, e, de certa
forma, a elabora e complexifica). - Além disso, devemos dizer que ao
conhecimento se segue normalmente uma outra forma de “intenção” (ou
relação). Essa outra forma de intenção é o afeto, o desejo, a busca
intencional, ou, como se diz no latim, resumindo tudo, o
“apetite” (que, na língua de Tomás de Aquino, é toda forma de
tendência intencional, e não só aquela relacionada com o alimentar-
se). Assim como existe a intenção cognitiva (relação de conhecimento),
existe também a intenção apetitiva (relação de afeto, de desejo, de
busca). Para Tomás de Aquino essa outra relação é derivada da primeira
(pressupõe sempre algum tipo de conhecimento), e é também uma relação
“espiritual”. E nela também podemos falar de níveis conforme o nível
de vida. Existe o “apetite sensorial” (que se segue à apreensão dos
sentidos ou conhecimento sensorial), e o apetite intelectual (que se
segue ao entendimento ou conhecimento intelectual) (ver I, q.81 e 82).

A consideração das formas superiores de conhecimento e afeto nos leva
a pensar que nosso mundo é atravessado por algo como uma energia
propulsora. Essa energia é o que dá o dinamismo a toda matéria e a faz
evoluir para formas cada vez mais complexas. Essa energia, porém, não
se identifica com a matéria. É anterior a ela, digamos assim, e se
manifesta nela. É por ela que a própria matéria existe. Pois bem, essa
energia aproxima-se do que Tomás de Aquino (seguindo Aristóteles)
chamava de forma. Esta, na verdade, não se restringe à natureza
estática de alguma coisa. É a estrutura íntima que define cada coisa,
sim, mas enquanto tomando consistência num dinamismo que a ultrapassa.
A forma é a “estrutura” de alguma coisa, mas também é sua “vocação” no
conjunto do universo. A forma contém um sentido. As estruturas
complexas que surgem em nosso mundo material são portadoras de uma
direção de desenvolvimento que acaba ultrapassando o próprio momento
atual do indivíduo.

Falando da criação e da criatura, Tomás tem uma frase onde essa
intuição aparece de modo claro: Toda criatura [1°] subsiste em seu
ser, [2°] possui uma forma que determina sua espécie e [3°] está
ordenada a algo distinto (I, q.45, a.7). Essa “ordenação a algo
distinto”, sua “vocação”, ou sentido, lhe é, portanto, também
constitutivo.

Estaríamos nos distanciando muito do pensamento de Tomás de Aquino?
Acredito que não. Leiamos um trecho de Ip., q.76, art.1 (alguns
comentários estarão entremeados ao texto, entre colchetes, para
evidenciar nossa leitura.

“A natureza de cada coisa é revelada por sua operação [a natureza é
pois dinâmica]. A operação própria do homem, enquanto homem, é
conhecer [em latim intelligere, o conhecer de nível intelectual,
entender, efetuar a leitura do mundo, daí decorrendo um afeto, uma
tendência, um ‘apetite’, um dinamismo de ação que lhe é próprio]. É
por aí que ele é superior a todos os animais. [Pela capacidade de
reflexão, o ser humano pode por a cabeça para fora dos sistemas nos
quais estava submerso, e se relacionar com eles, tomar posição em
relação a eles. Diferencia-se, assim, dos outros animais.] Por isso
Aristóteles (...) estabeleceu nessa operação (...) própriamente
humana, a felicidade perfeita. [A realização plena do ser humano
consiste em realizar a operação que lhe é própria, seguida das outras
que normalmente decorrem dela; o homem deseja cumprir os anseios que o
habitam, e nisso está sua felicidade ou realização última.] A espécie
do homem deve ser pois determinada segundo o princípio desta operação.
[O que é o ser humano, nós o sabemos a partir dos apelos contidos nas
possibilidades de suas operações próprias.] E como a espécie de uma
coisa é determinada segundo sua própria forma, segue-se daí que o
princípio intelectivo é para o homem sua própria forma”. (I, q.76, art.
1).

O ser humano é o que é a partir de sua capacidade reflexiva, de
entender, de questionar o mundo e a vida, e de iniciar a partir daí um
dinamismo de ação. A operação que é própria ao ser humano é uma
operação de relação, de comunhão com tudo o mais. Em outras palavras:
a “forma” humana (a alma humana) tem, embutida em si mesma, uma
“vocação”. Não é uma forma fechada.

Na seqüência do mesmo texto, Tomás diz: “Deve-se considerar, ainda,
que quanto mais nobre for a forma, tanto mais domina a matéria
corporal e tanto menos nela está imersa; e mais a ultrapassa por sua
operação e poder. [O conceito de “nobreza” para Tomás de Aquino
corresponde mais ou menos ao que para nós seria a “complexidade”:
quanto mais complexa for uma estrutura, tanto mais ela ultrapassa a
matéria corporal, tanto menos estando nela imersa.] Assim vemos que a
forma de um corpo composto [de elementos] possui alguma operação que
não é causada pelas qualidades elementares. [O comportamento do corpo
não se reduz às propriedades desses elementos em separado.] E quanto
mais se eleva a nobreza das formas [quanto mais complexa for a
estrutura] tanto mais o poder da forma vai além da matéria elementar.
Por exemplo, a alma vegetativa é superior à forma do metal [isto é,
dos corpos inanimados], e a alma sensitiva [do animal], à da alma
vegetativa. Ora, a alma humana é entre as formas a mais elevada em
nobreza [ou complexidade]. Por sua potência transcende a matéria
corporal na medida em que tem uma operação e potência nas quais a
matéria corporal não participa de maneira alguma. Essa potência chama-
se intelecto [referido à forma mais desenvolvida de conhecimento]”.
(I, q.76, a.1).

Fica muito clara aqui a originalidade do ser humano. Tomás chega a
dizer que a potência de sua forma é tal que de algum modo transcende a
matéria corporal. Vemos no mundo material emergirem formas cada vez
mais “nobres”, estruturas cada vez mais complexas, capazes de
proporcionar uma relação com o mundo também cada vez mais elaborada.
Na ponta desse desenvolvimento, encontra-se a forma humana, a alma
humana. Nesse sentido o ser humano se diferencia de tudo que a
natureza produziu antes dele. Ele é o primeiro que consegue olhar o
mundo e “ler dentro” (intelligere), e por isso mesmo ser impulsionado
por um afeto totalmente novo. É o primeiro que se pergunta pelo
sentido de tudo isso, e sua essência está justamente nesse perguntar.
Sua felicidadE não será plena a não ser no trabalho dessa pergunta (e
na comunhão que daí resulta). Na verdade nosso mundo material não se
explica somente a partir da matéria (entendida como pura
potencialidade indeterminada). Vemos aí um dinamismo interior que
impulsiona todo o processo. A ciência moderna parece estar voltando a
isso, primeiro quando fala de evolução (a emergência de formas cada
vez complexas do âmago da matéria desorganizada), mas também quando
fala de uma energia, anterior à matéria, que se manifesta nela, e que
é portadora de todo um impulso para o desenvolvimento.

O que é então nosso mundo? É preciso que o entendamos incluindo a
originalidade da vida, e da vida em sua manifestação mais complexa que
é a humana. Se nós, humanos, fazemos parte do mundo, e se somos seres
capazes de movimento autônomo e conhecimento (isto é, seres que são
fonte de seus próprios movimentos, e seres capazes questionar o
sentido), então é porque há algo mais aqui que a pura matéria-
passividade. É esse algo mais que vem organizando a matéria em
estruturas que acabam por transcendê-la de algum modo. A dimensão
“sentido” está presente na forma, impulsionando-a a superar-se. É a
“vocação” que se faz presente no desenvolvimento dos processos de
nosso mundo. Uma leitura atual de Tomás de Aquino, atenta às suas
intuições, para além de suas fórmulas, nos leva a pensar isso. Nosso
mundo produziu a alma humana na ponta de sua evolução conhecida. Então
ele é habitado por um “espírito”.

Estudar a alma humana

Diz Tomás de Aquino: Ao teólogo compete considerar a natureza do homem
no que se refere à alma, e não no que se refere ao corpo, a não ser em
sua relação com a alma (I, q.75, pról.). Existem, portanto, duas
considerações complementares do ser humano: uma por parte da alma, e
isto, para Tomás, define o ponto de vista do teólogo (e de quem quer
que o considere como um todo, em sua natureza e em seu sentido), e
outra por parte do corpo, e isso define o ponto de vista do médico (ou
de todos os cientistas naturais que consideram as condições físicas da
existência). O médico se interessa (e cuida) primeiramente do corpo.
Ele só aborda a alma enquanto possa ter relações com as disposições
corporais. Paralelamente, o teólogo se interessa primeiramente pela
alma (isto é, o ser humano inteiro, em sua estrutura interior
unificadora e doadora de sentido). O corpo só lhe interessa enquanto
possa ter relações com as disposições anímicas.

Considerar o ser humano por parte da alma é estar cuidando do sentido
da vida, do significado de viver (e isso, com certeza, inclui a ética,
diríamos nós hoje). Considerá-lo por parte do corpo é estar mais
atento às condições físicas de saúde. O que vamos fazer uma vez tendo
saúde, isso é um desafio para a alma, e não cai mais sob a
consideração direta do médico. É a alma que nos dá o enfoque do todo.
O corpo, somente das partes. Quando o teólogo (ou quem quer que
considere o ser humano por inteiro) fala do corpo, ele está somente
preocupado em como as condições corporais se relacionam com uma vida
plena. São dois modos de se estudar o ser humano e, conseqüentemente,
de interagir com ele, determinando duas possíveis posturas
profissionais.

Minha hipótese sobre a questão corpo e alma: não são duas entidades,
mas dois aspectos do ser humano, que correspondem a dois discursos. A
abordagem do “médico” incide sobre algo que denominamos “corpo” (o
homem todo, visto por fora, e em suas partes); a do “teólogo” incide
sobre algo que denominamos “alma” (o homem todo, visto por dentro, em
sua estrutura unificadora e dinamizadora). A separação entre corpo e
alma não seria ontológica, mas epistemológica. Não se trata de duas
“coisas”, mas de uma só, o ser humano, visto de dois ângulos
diferentes. Como dizia Jung, precisamos desses dois ângulos, porque
não sabemos fazer de outro modo: são dois aspectos diferentes somente
para a nossa inteligência, e não na realidade. (Jung, 1972, p.93).

Estudar a alma humana é próprio do teólogo. O que faz então o
psicólogo? Essa figura não existia no tempo de Tomás de Aquino. Mas,
se tudo que dissemos aqui for verdade, uma psicologia que queira ser
verdadeiramente humana, não pode se furtar às questões mais
abrangentes que se colocam para nós, e nesse sentido fica mais para o
lado da teologia do que para o da medicina.

Recolhendo conclusões

Nossa questão inicial era: como Tomás de Aquino constrói aquilo que
nós hoje chamaríamos de um pensamento psicológico? Comparando certos
textos do mestre medieval com preocupações de uma psicologia atual
(principalmente humanista, existencial e fenomenológica), obtivemos 3
respostas básicas.

Pelo fato de se referir ao ser humano no que ele tem de próprio, e,
portanto, enquanto um ser desafiado pela busca do sentido, a
construção desse pensamento psicológico supõe uma atitude aberta a
todas as possibilidades de encontro com o sentido. Esta foi nossa
primeira resposta. Concretamente, isso significa a necessidade de se
ir além da razão instrumental. Sempre útil na organização da lida
cotidiana, ela é insuficiente no que diz respeito às questões de
significado que se colocam para o homem. Para essas questões é
necessário perscrutar os sentidos que se manifestam de diversos modos
nos fatos singulares, históricos. Mas a apreensão desses sentidos não
é obra da pura razão. Supõe um envolvimento maior do ser humano por
inteiro, pois está associada com a decisão da ação, ou seja, com os
rumos de vida. Muito mais do que construir uma sabedoria, essa
apreensão é um deixar-se possuir por uma sabedoria maior, que
transcende o indivíduo.

Em segundo lugar essa construção acompanha o próprio movimento da
indagação humana que, apoiada no desejo da felicidade e articulada com
tomadas de posição pessoais, vai produzindo e testando significados
capazes de orientar a vida. Mesmo quando produz modelos de
funcionamento mental, seu contexto de base, ou sua raiz, é a
inquietação humana. É em torno da compreensão dessa inquietação que o
pensamento de Tomás vai integrando o saber acumulado sobre a alma,
suas operações, e suas paixões.

Finalmente, no caminho dessa construção, Tomás de Aquino recorre
constantemente às formas da linguagem comum, como guia. Não para ficar
nelas, mas para, penetrando-as, clarear o entendimento da alma humana.
A linguagem expressa os momentos da experiência humana na lida e na
compreensão do mundo, e é como o resultado de um imenso experimento
coletivo, no qual confia Tomás.

Abertura para outras fontes de significado, acompanhamento do
movimento da inquietação humana, e confiança no experimento coletivo
que se expressa na linguagem, são, em resumo, alguns dos principais
fundamentos da construção desse pensamento psicológico.

No que diz respeito ao conteúdo, essa construção deve atender a três
âmbitos de indagação, que podem ser indicados por 3 perguntas gerais.
1) Como falar adequadamente da alma humana e de suas operações, dando
conta de nossa experiência? (isso corresponde ao enfoque da I parte da
Suma Teológica); 2) Como se manifestam as operações da alma, quando na
trama do agir humano em busca de um sentido? (enfoque da II parte da
Suma); e 3) Quais são os símbolos do caminhar humano, historicamente
produzidos, e como esses símbolos se integram significando esse mesmo
caminhar em seus momentos chave, e servindo de instrumento para ele?
(enfoque da III parte).

Não podemos deixar de mencionar, finalmente, uma dimensão dessa
construção. Ela só esclarecerá em definitivo todas aquelas questões
acima, se permitir situar o movimento humano (em seu aspecto
psicológico) no movimento maior do próprio mundo. Se, nessa
construção, não compreendermos qual a relação entre a psicologia
humana e o dinamismo do universo, não teremos tido êxito, e alguma
coisa estará faltando. O pensamento psicológico é solidário com o
pensamento cosmológico.

Uma pergunta fica no ar: não estaríamos falando muito mais de uma
psicologia filosófica (ou de uma reflexão prévia que nos situe face ao
objeto da psicologia), do que de uma psicologia científica? Penso que
poderíamos responder como Merleau-Ponty (1973): sem uma reflexão
prévia desse tipo, a ciência não saberia de que está falando, e então
poderia estar esmiuçando um fantasma.

Referências bibliográficas

Agostinho de Hipona (1994). A Trindade. (A. Belmonte, Trad.). São
Paulo: Paulus. (Original latino do séc. V).

Agostinho de Hipona (1997). Sobre a potencialidade da alma. (A. J.
Faria, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Original latino do séc. IV).

Boaventura de Bagnoregio (1999). Escritos filosófico-teológicos (L. A.
Boni & J. Jerkovic, Trad.). Porto Alegre: EDIPUCRS. (Original latino
do séc. XIII).

Boff, Leonardo (2002). Experimentar Deus. Campinas: Verus.

Eckhart, Mestre (1983). Tratados y sermones (I. M. De Brugger, Trad.).
Barcelona: Edhasa. (Original alemão do séc. XIV).

Jeauneau, Edouard (1986). A filosofia medieval. (J. A. Santos, Trad.).
Lisboa: Ed. 70. (Original francês de 1963).

Jung, Carl G. (1972). Fundamentos de psicologia analítica: as
conferências de Tavistok (A. Elman, Trad.). Petrópolis: Vozes.
(Original alemão de 1935).

Lafont, Ghislain (1960). Structures et méthode dans la Somme
Théologique de Saint Thomas d’Aquin. Bruges: Desclée de Brouwer.

Laín Entralgo, Pedro (1995). Cuerpo y alma: estructura dinámica del
cuerpo humano. 2ª ed. Madrid: Editorial Espassa Calpe.

Lauand, Luiz Jean (1999). Tomás de Aquino: vida e pensamento: estudo
introdutório geral. Em Tomás de Aquino. Verdade e conhecimento. (L. J.
Lauand & M. B. Sproviero, Trad., estudos introdutórios e notas). (pp.
1-80). São Paulo: Martins Fontes.

Leloup, Jean-Yves (2002). Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de
Alexandria. 5ªed. (R. Fittipaldi, E. F. Alves, L. E. Orth & J. A.
Clasen, Trad.). Petrópolis: Vozes.

Massimi, Marina (2001). A psicologia dos jesuítas: uma contribuição à
história das idéias psicológicas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14
(3), 625-633.

Massimi, Marina. (2001a) Identidade, Tempo, Profecia na visão de Padre
Antônio Vieira. Memorandum, 1, 13-31. Retirado em 10/05/2002, do World
Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos01/massimi01.htm.

Merleau-Ponty, Maurice (1973). Ciências do homem e fenomenologia.
(S.T. Muchail, Trad.). São Paulo: Saraiva. (Edição original de 1951).

Nascimento, Carlos Arthur (1992a). O que é filosofia medieval. São
Paulo: Ed. Brasiliense. (Coleção Primeiros Passos).

Nascimento, Carlos Arthur (1992b). Santo Tomás de Aquino: o boi muda
da Sicília. São Paulo: EDUC.

Tomás de Aquino (1951). Summa Theologiae. (ed. latina, com suplemento
e índices). Madrid: B.A.C. 5 vols. (Original latino do séc.XIII)

Tomás de Aquino (1952). Suma contra los gentiles (J.P. Castellano,
Trad.). 2 vols. Madrid, BAC. (Edição bilíngüe;Original latino do
séc.XIII).

Tomás de Aquino (1980). Suma Teológica (A. Corrêa, Trad.). Porto
Alegre: Sulina. (Edição bilíngüe). 11 vols. (Original latino do
séc.XIII)

Tomás de Aquino (2001). Suma teológica (C.-J. P. Oliveira e equipe,
Trad.). São Paulo: Loyola. (Edição bilíngüe). 8 vols. (Original latino
do séc.XIII)

Torrell, Jean-Pierre (1999). Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua
pessoa e sua obra (L.P. Rouanet, Trad.). São Paulo: Loyola. (Edição
original de 1993).



Nota sobre o autor

Mauro Martins Amatuzzi é psicólogo, doutor em Educação pela UNICAMP,
docente no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas. Interessa-se por metodologias
qualitativas de pesquisa, por processos de mudança e desenvolvimento
pessoal, por psicologia da religião, e pelo resgate de pensamentos
psicológicos antigos. Contato: R. Luverci Pereira de Souza, 1656
(Cidade Universitária) - 13084-031 – Campinas / SP, Brasil. E-mail:
mauroa...@sigmanet.com.br


http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/amatuzzi01.htm




Eliana Guimarães (Psicóloga)

unread,
Nov 13, 2008, 3:29:40 PM11/13/08
to Midiateca: Eliana Guimarães (Psicóloga)
Reply all
Reply to author
Forward
0 new messages