Projeto Cybersyn

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rdazvd

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Feb 12, 2016, 9:25:16 AM2/12/16
to Projeto Comum
Me deparo tanto nas redes com esse texto da Jacobin que resolvi tirar ele do mofo da minha lista “pra ler depois” e ver do que se trata: https://www.jacobinmag.com/2015/04/allende-chile-beer-medina-cybersyn/ (descobri que existe até um verbete de Wikipédia sobre o assunto: https://en.wikipedia.org/wiki/Project_Cybersyn). Alguém conhecia algo sobre esse projeto? Acho um estudo de caso extremamente interessante sobre algumas questões que acabam suscitando por aqui, sobretudo no que diz respeito ao valor de uso do design, e algumas propostas e limites de uma acepção de projeto que possa ser de algum modo participativa.

Felipe Kaizer

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Feb 17, 2016, 1:10:35 PM2/17/16
to Projeto Comum
​Oi Rafael,

eu conhecia o Cybersyn pelos livros do Gui Bonsiepe, que trabalhava para o governo chileno na ocasião. Ano passado o assunto veio de novo à baila durante as discussões com a curadoria da 32ª Bienal: um dos curadores tem um interesse especial pelo projeto. É capaz de aparecer na exposição.

O Bonsiepe trabalhou especificamente no projeto da sala de controle (ou melhor, na "interface [da] sala de gestão cibernética"), que eles chamaram de Opsroom. Ele dedica um capítulo do livro Design: como prática de projeto a isso.

Para além das questões de interface que ele levanta, acho que o caso importa mais justamente por isso que você indicou: possibilidades e limites de uma concepção participativa de projeto. À primeira vista, uma sala com sete cadeiras não inspira um processo democrático de tomada de decisão, mas, como o Jacobin alerta, essa pode ser uma impressão equivocada (que serviu de munição aos críticos liberais). De todo modo, se for para evitar um certo anacronismo, é preciso lembrar que a economia planejada era de fato, em contraposição à economia de mercado, a solução socialista por excelência para os problemas de política econômica, e isso sempre envolveu um dose de centralização. Acredito que isso norteava os bem- e mal-intencionados: era preciso tomar as rédeas do país num período de transição, do capitalismo para o socialismo, através de uma espécie de capitalismo de estado.

Acho bom quando o texto explicita o caráter gerencial do projeto: é um lembrete para o modo como essa "filosofia" se estende aos extremos do espectro político, quase sem rival. Como todo planejamento gerencial, o governo chileno, em concorrência com os demais países, iria provavelmente ser obrigado a estabelecer metas de performance crescentes, o que, por fim, não é muito diferente da gestão de empresas e das políticas de estado atuais. Resta a dúvida de quanto a voz do chão-de-fábrica seria ouvida. (Você percebeu pelo artigo uma possibilidade de participação democrática?)

Sobre as questões tecnológicas, silencio. Não tenho muito a acrescentar.

Antes de terminar, um trechinho do livro, que informa um pouco melhor sobre os conceitos envolvidos no projeto, oriundos da cibernética e da teoria da informação:

Stafford Beer e seus colaboradores pretendiam desenvolver […] um instrumento para a gestão econômica flexível, descentralizada, dinâmica e, sobretudo, interconectada, que diferia das até então conhecidas técnicas socialistas do planejamento centralizado. Também deveria superar a contradição entre autonomia e controle (control no sentido inglês). Para isso Stafford Beer recorreu a uma tese de Norbert Wiener e Claude E. Shannon, segundo a qual, fenômenos complexos podem ser compreendidos como sistemas, cujo comportamento pode ser extrapolado mediante a análise de linhas de tempo, podendo-se aplicar em previsões, independentemente de serem previsões do tempo, cotações na bolsa ou estatísticas de produção. Simplificando ao extremo, era necessário responder a duas perguntas: primeiro, quais são as informações que uma equipe de planejamento e gestão precisa para tomar decisões apropriadas [ênfase minha] para a política econômica; e, segundo, como comunicar essa informações? Na literatura sobre os sistemas de controle anteriores à cibernética pode-se ler:

Estimulados por Norbert Wiener após a Segunda Guerra Mundial, não só engenheiros como também economistas, antropólogos e cientistas sociais retomaram as teorias sobre retroalimentação, estabilidade e sistemas interconectados aplicando esses conhecimentos a qualquer outra área, da ecologia global ao tráfego urbano. O que eles compartilhavam era não tanto uma determinada metodologia ou teoria, mas sim a ideia de que diferentes aspectos do mundo podem ser compreendidos como sistemas e podem ser modelados como processos de fluxo, de retroalimentação e de interações homem-máquina. A terminologia da retroalimentação, do controle, da comunicação e da informação revelou-se muito flexível e adaptável. [Mindell, David A. Between Human and Machine – Feedback, Control, and Computing before Cybernetics. Baltimore, London: The John Hopkins University Press, 2002, p. 316] – pp. 194-915

Talvez mais em função dessa matriz teórica do que em função da visão-de-mundo da época, o projeto é totalmente circunscrito à lógica da resolução de problemas, típica da ciência da computação (vide "homem-máquina"): a produção do país é vista, consequentemente, não como um local para o surgimento de relações e produtos sociais inéditos, mas como uma tarefa a ser vencida diariamente com vistas a mera sobrevivência da população. Posso estar sendo dramático, mas a minha pergunta é: que modelo de desenvolvimento está em jogo nesse tipo de gerenciamento? É o modelo do progresso econômico, do crescimento do PIB?

Acho que a contraparte desse caso – para ficar no mesmo país – é dada pelas discussões em torno de uma ideia de desenvolvimento social distinta do progresso econômico na Cepal, da qual participou o Celso Furtado sob a direção do Raúl Prebisch.

Abs,

Felipe Kaizer

Em 12 de fevereiro de 2016 12:25, rdazvd <rda...@gmail.com> escreveu:
Me deparo tanto nas redes com esse texto da Jacobin que resolvi tirar ele do mofo da minha lista “pra ler depois” e ver do que se trata: https://www.jacobinmag.com/2015/04/allende-chile-beer-medina-cybersyn/ (descobri que existe até um verbete de Wikipédia sobre o assunto: https://en.wikipedia.org/wiki/Project_Cybersyn). Alguém conhecia algo sobre esse projeto? Acho um estudo de caso extremamente interessante sobre algumas questões que acabam suscitando por aqui, sobretudo no que diz respeito ao valor de uso do design, e algumas propostas e limites de uma acepção de projeto que possa ser de algum modo participativa.

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Rafael de Azevedo

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Feb 21, 2016, 7:54:58 PM2/21/16
to Felipe Kaizer, Projeto Comum
Oi Kaizer,

Sobre o artigo especificamente, acho que ele dá argumentos sólidos sobre a possibilidade de processos coletivos potencializados por uma infra estrutura tecnológica e uma interface que possibilite a execução desses processos. Entendo que o centro da questão, nesse projeto, não é proporcionar a “participação democrática” de todos os atores envolvidos. Como você colocou, modelos de produção fatalmente têm esse aspecto gerencial, racionalizado, tecnocrático (isso não deixaria de ser o caso nem na hipótese de uma utopia tecnológica em que a automação extirpou completamente a necessidade do trabalho). No limite, o que um sistema de suporte à decisão dedicado aos problemas da produção pode contribuir é implementar uma dinâmica em que a autonomia de todas as instâncias envolvidas no processo seja respeitada, e que hajam condições claramente definidas para que uma instância interfira no âmbito de outra. O Cybersyn é um precedente nesse sentido. Olhando com a devida distância, não dá pra deixar de pensar que temos hoje um aparato muito mais sofisticado para operar com basicamente a mesma ideia porém de maneira mais barata, de implementação mais fácil e ágil, menos centralizada, em escalas diversas.

Um ponto que me interessou particularmente no Cybersyn foi o papel que o design desempenhou no projeto, que vejo como ponto de partida para a colocação de algumas questões. Sobretudo, da necessidade de reafirmar o design como ação de fundo social e político, fato tão apagado no contexto atual, em que discursos sobre a relevância do profissional de design em processos de “geração de valor” dominam a pouca discussão que há. Partindo desses âmbitos — social e político — podemos avaliar a ação projetual com base na medida em que ela potencializa o valor de uso daquilo que é projetado. Longe de serem questões novas, a partir das quais nada foi escrito, debatido ou produzido, acho que são desdobramentos possíveis dos temas que têm aparecido nesse espaço.

Abs
--
Rafael de Azevedo

Felipe Kaizer

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Feb 23, 2016, 1:13:29 PM2/23/16
to Rafael de Azevedo, Projeto Comum
Oi Rafael,

compartilho das suas preocupações. E entendo que damos ênfases diferentes ao mesmo caso: a você, me parece, a questão do progresso tecnológico – que, em tese, poderia "[extirpar] completamente a necessidade do trabalho" – é mais determinante que as contradições inerentes à própria dinâmica social do trabalho.

Explico-me.

Duvido realmente que seja possível respeitar "autonomia de todas as instâncias envolvidas no processo" ou "[definir claramente] as condições […] para que uma instância interfira no âmbito de outra". Isso não quer dizer que eu defenda o desrespeito ou qualquer tipo de interferência. Ao contrário, como você falou, o reconhecimento de autonomias é altamente desejável, mas pensável, talvez, só como "utopia". Novamente, com isso não quero dizer que devamos abandonar o pensamento utópico. No lugar, eu sugiro que nos perguntemos porquê parece cada vez mais distante a realização dessa espécie de panacéia das condições produtivas. Será que estamos nos afastando do horizonte estabelecido pela utopia?

Não quero me alongar muito antes de entender melhor o que você tem em mente quando diz "autonomia de todas as instâncias". Que instâncias são essas, e que autonomia elas tem, para fazer o quê? Confesso que tenho uma ideia muito vaga ainda do que isso significa. Você por acaso se refere às etapas da cadeia produtiva? Ou mais especificamente aos setores externos que auxiliam às organizações produtivas? Essa autonomia é individual? É possível falar em uma autonomia coletiva?

Antecipadamente, eu diria que os problemas encontramos na vida econômica de um país são mais variados do que aqueles prescritos por uma política administrativa. De fato, como você indicou, o efeito desse "fundo social e político" sobre a eficácia da mera gerência das condições de vida tem sido subestimado. A essa dificuldade nós deveríamos acrescentar a diversidade de matrizes teóricas e de interpretações histórias dos processos de formação de sociedades tão diferentes quanto aquelas do Primeiro e do Terceiro Mundo. Se o design (como atividade projetiva) pode contribuir para transformar o status quo, ele não pode mesmo ignorar a natureza da sua "ação de fundo", ou melhor, da sua ação sobre esse fundo. Meu palpite, porém, é de que esse ganho de consciência só pode acontecer no momento em que os projetistas abandonarem alguns mantras em favor de um engajamento crítico nos debates que já estão em andamento na teoria política, na economia política, na antropologia, etc. Entre esses mantras, para mim, está o do usuário, que os impede a décadas de entender como funcionam os negócios e os mercados (do qual fazem parte).

Continuo sobre o "valor de uso" e a "geração de valor" depois de você.

Grande abraço,

Felipe Kaizer

Adriano Campos

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Mar 2, 2016, 2:54:17 PM3/2/16
to Projeto Comum, Rafael de Azevedo
Queridos,
como vocês estão notando pela ausência minha e do Roman, aqui na bienal está (estava quando o rascunho começou a ser redigido) um pouco corrido.

Ai vi o assunto do Projeto Synco (prefiro o nome espanhol do projeto), ai decidi entrar, embora depois do assunto ter mudado o rumo. É um assunto que gosto e me debrucei sobre ele alguns meses do ano passado.

Primeiro, como alerta alguns textos, a participação do design foi cosmética. As telas não funcionavam, as cadeiras nunca seriam sentadas e o opsroom nunca foi utilizado como pretendido. Talvez, como dizia Starck sobre seu espremedor, não era pra espremer limões, era pra iniciar conversas. Do ponto de vista tecnológico ele era uma leitor (?) de telex. Aqueles rolos de informação eram gerados em todas as fábricas recém-socializadas do país e supostamente lidas pelos tomadores de decisões, leia-se Allende e mais cinco pessoas, julgando pelo número de cadeiras.

Mas o plano era muito maior que isso -- e quase risível -- se pensarmos o mundo de hoje. O plano era um big brother onde você (cidadão) colocaria se está ou não feliz numa máquina e isso ajudaria o Allende a resolver os problemas da nação. Além claro das informações recebidas pelas fábricas produtoras e do funcionalismo público.

Veio o golpe e jogou tudo pelo chão. Daria certo? Claro que não. Era uma utopia. A economia joga com regras muito mais complexas que barato, caro, gostei, não gostei. Mas o sulamericano precisava muito disso. Precisava ser senhor do seu destino. Mas não quiseram assim, novamente.

Quanto ao Bonsieppe, não sou capaz de opinar, talvez precisasse do dinheiro. Staford Beer era o gringo querendo vender sua ideia de internet (que ainda não existia). Allende era o presidente tendo que lidar com um golpe em seu governo.

Pra quem interessar, coloco no Dropbox algumas coisas que achei quando estava mais interessado no assunto. E destaco o texto da Eden Miller, do MIT, que debruçou-se sobre o assunto muito mais que alguns meses e deve ser a maior conhecedora desse assunto. Ela também é da opinião que aquilo nunca funcionaria, mas era uma maneira de se sonhar.

https://www.dropbox.com/sh/sexy5ismzrokco8/AADIqoBFh0mSPgtlThpbaBT4a?dl=0

Pra concluir, quando me deparo com o assunto, sempre faço a ressalva que o Projeto Synco não era sobre design, muito embora tenha entrado pra história por isso. Se o Gui fez alguma coisa, foi pra atrapalhar e adiar o plano (a sala nunca chegou a ficar pronta) e o palácio presidencial onde ficava foi parcialmente destruído durante o golpe. Era político e sobre como as informações deveriam circular no país. Embora fosse utópico não excluía a necessidade de decisão do Allende. Apesar de ouvir os outros, a cadeira dele era a única que tomava decisão. E era um mundo sem informática, não faço ideia de como o governo fazia pra obter certos dados da população na época.

Enfim, é isso.

abraço


Adriano Campos
+ 55 11 969 964 692
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