Oi Roman,
se não me engano, seu comentário sobre o Vasari se vale bastante do programa do
Andrew Graham-Dixon pra BBC. Além dele, vale a pena mencionar os comentários do Georges Didi-Huberman sobre Vasari e a ascensão social do artista no "Diante da imagem". Um trechinho:
[…] tratava-se para Vasari de invocar a constituição de um corpo social, um corpo social já enobrecido pela operação histórica do livro, mas também pela criação em 1563 da Academia florentina das Arti del disegno, que consagrava definitivamente o ofício de artista como "arte liberal", longe das corporações medievais e do artesanato servil." – p. 76
A análise do Didi-Huberman é simultaneamente estética e sociológica; ele vai chamar atenção para o frontispício do livro, que faz referência à profecia de Ezequiel no Velho Testamento (Ez 37: 1-10), dos ossos que levantam do chão e ganham corpo novo (originalmente, o corpo da comunidade de Israel): essa seria a imagem para a imortalidade do novo ator social, o artista. O discurso legitimador do Vasari é, sem tirar nem por, a matriz argumentativa em prol do estabelecimento social da figura profissional do designer no século 20: o "Pioneers of Modern Movement" do Nikolaus Pevsner – simplesmente o livro mais lido entre os estudiosos do design – é estruturalmente idêntico ao "Vidas dos artistas".
Daí você pode inferir com segurança porque o livro foi escrito: para legitimar os artistas aos olhos das classes dominantes. Foi preciso criar um história de glória e eternidade que afastasse os artistas da realidade mecânica da sua prática (lembremos do Sennett); uma história que dignificasse os donos das mãos sujas. Essa mesma lógica continua em vigor (vide Jeff Koons). Outro livro do Pevsner, sobre a história das "Academias de arte", confirma quase sem querer o plano de ascensão social do artista.
Concordo, portanto, que é arriscado falar do design em termos da estética como a história da arte a entende: como um acúmulo e uma progressão de "descobertas", defendendo invariavelmente o trend mais recente como mais avançado, digno, valioso ou belo. Mas – repito – não acredito que isso nos impeça de ter um olhar desinteressado para os produtos da prática dos designers: podemos fazer julgamentos estéticos válidos (o que não quer dizer que eles sejam determinantes). Tenho para mim que o único modo de fazer isso é através de uma linguagem fenomenológica.
E a segunda visão, de fato, tende a retirar a estética do primeiro plano. (Ainda que ela continue no plano de fundo, como algo dado e irrefletido.) O paradigma são os projetos saídos da HfG Ulm, em que o uso é era o fundamento não só do desenho dos projetos, mas de uma parametrização das formas de produzir-distribuir. A contraparte de Ulm são os projetos de Papanek, por exemplo: mais radicais na escolha dos "problemas a serem resolvidos" e na resolução formal. O uso (e o usuário) em ambos os casos, no entanto, valem como vaca sagrada. São tabu.
Agora, a defesa do projetar em termos de gerenciamento é uma terceira maneira de olhar para a questão. Não acho que seja possível transpor facilmente do uso supostamente visado pelo ciclo produtivo para o gerenciamento de estruturas de produção, distribuição e consumo. De imediato, o gerenciamento impõe-nos outra linguagem.
A primeira pergunta que eu faço é: o que se gerencia? A resposta maldosa é: um ciclo produtivo ad infinitum, contraditório, com consequências sociais e ambientais nefastas. Administra-se o desastre, por assim dizer (e "administração" é uma tradução para management, assim como "gerenciamento").
A segunda pergunta é: qual a função do gerenciamento? Outra resposta maldosa pode ser: impedir que as coisas mudem. O gerente é responsável sobretudo por manter a produção/operação em ordem. Por isso o discurso da inovação, em muitas acepções, tem sido advogado como uma revolução administrativa: como se um conjunto de técnicas de processo criativo – agrupadas sobre a alcunha de Design Thinking –, quando aplicadas a outros setores da produção (como o administrativo), pudesse gerar uma súbita explosão de crescimento e uma superação mágica da concorrência. Quando você fala no designer como gerente (ou o gerente como designer), a imagem de vários Post-its na parede me veem à mente. (Nota: numa paranoia conspiratória poderíamos pensar que o Design Thinking foi uma mera invenção da 3M pra aumentar as vendas de Post-it).
Eu acho que precisamos atentar para não cair numa nova armadilha armada pelo discurso do gerenciamento e da eficiência – uma armadilha na qual infelizmente o Stolarski parece ter caído. Em poucas palavras, não é possível dissociar as benesses do sistema capitalista de produção (a eficiência e o dinamismo da indústria, sua capacidade de crescer e de acelerar os progressos tecnológicos e organizacionais, etc) das suas contradições (a precarização e alienação do trabalho, a concentração de renda, a exploração dos recursos humanos e naturais, etc). Uma classe de designer-gerentes, em posição mais decisiva na cadeia produtiva, nada mais vai fazer do que garantir o desenvolvimento do sistema atualmente em vigor, dedicado a reprodução sem limites do capital. Os mais esperançoso apostam em um cargo nas empresas públicas, que possa contribuir para a sua eficiência, mas isso, no final das contas, é capitalismo de Estado – o estágio que a teoria revolucionária encara como mal necessário, como intermediário.
Por outro lado, acho que a linguagem sociológica ajuda a traçar um cenário mais realista da nossa situação, mas tenho dúvidas se ele consegue oferecer elementos para pensarmos alternativas. Arrisco imaginar que existe um problema político no coração desse problema social, que vai além da questões de identidade profissional. Em suma, nós precisamos repensar radicalmente o que significa trabalhar, produzir, consumir, e isso não será feito no espaço de uma geração apenas. Há uma crise sobretudo das categorias de pensamento.
Mas tenho esperanças como você: existem coisas que desenvolvemos como praticantes de projeto que podem ajudar nas novas formas de organização que precisamos desenvolver.
Abraços,