(Imagem:
Cena que encerra o filme “Tempos Modernos”, à medida que o filme vai
acabando, o casal vai sumindo na estrada junto com o filme. Maravilha! O
filme nos mostra a ideia de continuidade em que nos coloca além dos
padrões da modernidade. O que chama a atenção e enche a tela não é o
fim, mas um horizonte que parece não ter fim).
É
muito comum em nossas atividades diárias experimentarmos um certo gozo
incontido, principalmente nas pequenas coisas. Mesmo aquelas coisas mais
repetidas do dia a dia como escovar os dentes, andar até a escola,
visitar um amigo, encontrar-se com um membro familiar, ir até ao
mercado, tomar um sorvete, saborear uma boa comida, aliviar-se da bexiga
cheia... A propósito, um judeu que se preze, nascido em Israel, educado
segundo às Escrituras, certamente já viveu alguma vez na vida a
fabulosa experiência da “beraká”, uma alegria extraordinária que
inunda a alma de amor próprio, de autoconhecimento e de intensa
consciência de si mesmo. Para o judeu, das coisas mais simples às mais
complexas, até mesmo urinar ou saciar a sede com um simples copo d'água é
motivo de gozo, de ação de graças. O judeu dá graças a Deus por tudo!
Parece que há um pouco disso na filosofia da alteridade de Lévinas,
principalmente quando se descobre os limites do eu.
Na
contramão do que pensava Kant sobre a consciência do eu transcendental
como fundamento e medida do conhecimento e da moralidade, Lévinas
admitia originariamente que “ser eu é existir de tal maneira que se
esteja já para além do ser, na felicidade. Para o eu, ser não significa
nem se opor, nem se representar alguma coisa, nem se servir de alguma
coisa, nem aspirar a alguma coisa, mas gozar dela”(LEVINAS, Emmanuel.
Totalité et infini. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.
124). Nessa direção pessoal de Lévinas, temos um eu que se
identifica no gozo que sente em viver bem com a realidade do mundo, em
fazer bem as coisas na sua simplicidade, como que se a identidade do eu
viesse junto com a felicidade. Uma espécie de ação de graças por cada
ato do dia realizado, como se isso constituísse o eu de uma grandeza e
elevação tal que o mundo todo se bastasse nele. “O gozo é a própria
produção de um ser que nasce, que rompe a eternidade tranquila da sua
existência seminal ou uterina, para se encerrar numa pessoa que, vivendo
no mundo, vive em sua casa”(idem, p. 54).
Segundo
Lévinas, antes de duvidar, o eu é pura sensibilidade. Antes de
abstrair-se, o eu é concreto e pura relação de si com o mundo. “O eu é
sempre mais do que a sua posse. Aliás, não há posse. Há o indivíduo que
se produz a partir de si, de sua própria subjetividade em um mundo
concreto, no qual ele tem poderes e se mantém apoderando-se das coisas. O
eu não se dissolve na totalidade da história e no absoluto; possui uma
identidade que se faz a partir de si na relação com o mundo”(KUIAVA,
Evaldo Antônio. Subjetividade Transcendental e Alteridade: um estudo
sobre a questão do outro em Kant e Levinas. Caxias do Sul, RS: EDUCS.
2003. p. 152).
Mesmo
admitindo que existe uma identidade do eu em relação ao mundo, Lévinas
dá ênfase a um dado extremamente sólido em sua filosofia, a alteridade. A
leitura que se faz do ego em Lévinas é inteiramente submetida à noção
de outro, de alter. Daí, sua disposição em orientar seu pensar para o
fulcro da alteridade. “Ao contrário de Kant, para o qual a autonomia
do sujeito era o princípio supremo da moralidade, para Lévinas a
categoria chave do universo ético será a alteridade. O outro não
figurará simplesmente como um alter-ego, um ego como eu. O seu objetivo
consistirá em destituir o eu autônomo e soberano, incapaz de perceber no
outro nada além de si mesmo. Sendo assim, romperá com o primado do eu
sobre o outro”(idem, p. 147).
Ocorre
assim, na ontologia de Lévinas, como já era esperado, uma primazia do
outro sobre o eu, uma vez que somente um eu destituído da sua soberania e
soberba poderá ser, de fato, ético. Não se trata de decretar a morte da
subjetividade, mas de combater ao monologismo e ao monarquismo, ou até
mesmo, à uma espécie de ranço da modernidade em promover uma
racionalização legalista no campo da moral de dos valores. Depõe-se, sem
dúvida, com a atividade filosófica de Lévinas voltada para a
alteridade, o caráter normativo da subjetividade kantiana. “Apresentará a subjetividade como acolhendo Outrem, como hospitalidade”(LEVINAS, E. Totalité et infini...op. cit., p. 12).
Portanto,
o eu que pensa, duvida, dorme, come, respira, sonha, ama, conhece,
odeia, imagina, urina e tem sede, descobre a presença de algo que
ultrapassa seus limites, a sua finitude, por isso, a possibilidade de
acolher outrem. É possuindo a ideia de infinito que se destitui o eu de
sua autonomia e de seu pedantismo racional, como se o eu se dobrasse aos
seus próprios limites. Entende-se, com isso, a famosa expressão de
Lévinas: “Possuir a ideia do infinito é já ter acolhido outrem”(idem, p. 94).
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em Filosofia e Bacharel em Teologia