Quem tem o “direito de ser idiota”? O professor Denis Rosenfield quer esse direito para ele. Em rede nacional, Rosenfield bradou para Jô Soares que queria poder ser idiota e, então, desobedecer as leis do Estado que protegem sua vida. Ele gostaria de poder fumar e ter doenças, beber e dirigir, não usar cinto de segurança e assim por diante. O argumento dele tem uma pretensão de ser filosófico. Ele dá ao Estado a prerrogativa de informação, não de legislação sobre o que ele diz que são decisões só dele, de âmbito privado.
Parece fácil, ao menos em tese, se insurgir contra a legislação que visa proteger o indivíduo dele mesmo. Há um tom de rebeldia nesse tipo de atitude, fazendo-a não soar tão conservadora quanto efetivamente pode ser. Mas essa rebeldia pode se revelar inócua quando, após o primeiro brado, tais posições não se aliam a boas justificativas. Quais as justificativas do professor gaúcho para sua rebeldia conservadora ou, talvez, melhor dizendo, antissocial? Nenhuma! Ou talvez uma, aliás, péssima: o indivíduo é o indivíduo, ou ele tem liberdade como indivíduo ou não é indivíduo. Em complemento: pode ser perigoso que o Estado, ao legislar na tentativa de proteger o indivíduo dele mesmo, acabe por ditar o que é o bem para todos nós.
Essa justificativa seria boa caso estivéssemos sob as regras de um Estado diferente, que não liberal democrático. Mas, na condição que vivemos hoje no Brasil, a diatribe de Denis não tem razão de ser. Pois, no nosso caso, o Estado não age no sentido de dizer “o que é o bem”. O que o Estado liberal democrático que temos faz é submeter à sociedade, caso a caso, via Congresso e outros mecanismos do sistema de representatividade de uma democracia liberal, restrições ou avanços a respeito das regras sobre decisões individuais que não são completamente privadas, mas que afetam segundos e terceiros. Pois, enfim, o Estado liberal democrático sabe de uma verdade bastante óbvia, que somente o egocentrismo e, no limite, o egoísmo das posições de Denis Rosenfield fingem desconhecer: ninguém morre sozinho.
Quando a legislação de um país regido por um Estado liberal democrático endurece sobre aparentes decisões que, ao menos à primeira vista, seriam liberais, precisamos entender se se trata de alguma coisa que veio em sentido de melhor convivência social e da diminuição de danos ou não. Vejamos os casos pequenos que Denis, uma vez na TV, começou a defender, colocando o Jô Soares (e nós todos!) sob um rosto de espanto, quando não de riso.
Denis quer dirigir levemente alcoolizado. Ele não quer dirigir bêbado. Mas quer dirigir após ter bebido, desconsiderando as normas técnicas atuais, que se baseiam no trabalho científico que indicam que a bebida ingerida pelo motorista, em uma determinada quantidade, já o coloca no limiar de diminuição de seus reflexos. Denis acha que o Estado deveria apenas informar-lhe sobre o prejuízo, mas não poderia pará-lo na estrada e multá-lo. Denis não percebe que ele, na direção, pode fazer mal a terceiros. Mas, avisado sobre isso pelo Jô, ele tenta pegar outro exemplo não tão ruim. Ele quer dirigir sem cinto de segurança. Diz que, nesse caso, se vier a se machucar ou mesmo morrer, só ele seria atingido. Assim, o “direito de ser idiota” estaria preservado.
No entanto, também nesse caso Denis estará ferindo terceiros: irá desamparar sua família e, se ficar doente, irá onerá-la e também nos atingirá, pois ocupará um leito hospitalar que nós todos pagamos (direta, indiretamente ou, ainda, com algum custo social, caso seja um hospital privado) e que gostaríamos de ver usado por aqueles que adoecem por conta do não evitável, e não por conta do evitável. Assim, de alguma maneira, Denis, uma vez no hospital por conta de exercer o “direito de ser idiota”, iria atingir terceiros e quartos. Isso descumpriria até mesmo sua própria regra, anunciada no programa de TV, que a liberdade que ele quer exercer não poderia prejudicar a liberdade alheia. Ora, nesse caso, sua atitude prejudicaria a liberdade de muita gente. Muitos seriam cerceados em desejos, profissão, horários e boa vontade para cuidar dele no hospital ou, talvez, durante toda uma vida. O Estado legisla de forma a cuidar da vida do indivíduo, à revelia dele próprio, exatamente para que ele não atue como idiota e fira (em vários sentidos) terceiros e quartos. O Estado liberal democrático não interfere nas suas atitudes privadas, de gostos e pensamentos idiotas, a não ser que a idiotia comece a se tornar antissocial e crie irresponsabilidades que vão para além do indivíduo.
A ideia de Denis, portanto, que ele imagina que seja o suprassumo do liberalismo, ou ainda, um libertarismo individualista fantástico, não é uma posição sequer utópica, é uma posição inviável socialmente mesmo em imaginação. Em qualquer sociedade que se preze, moderna, onde vale o chamado “direito subjetivo”, faz-se necessário que os cidadãos sejam antes de tudo cidadãos, ou seja, sujeitos políticos. Ora, se são sujeitos, precisam ser tomados segundo a regra que confere ao indivíduo capacidade de pensar por si mesmo e capacidade de avaliação racional, o que implica razoabilidade. Alguém que se torna idiota ou que quer passar por idiota é destituído da condição de sujeito pelo Estado liberal democrático. Nenhum portador de uma inteligência insuficiente para exercer a condição técnica de cidadania, pode ser um sujeito. Por isso, nesse caso, não pode exercer certos direitos que são essencialmente subjetivos. O direito de escolha para exercer funções cooperativas, que envolvem a trama social, não podem lhe ser conferidos. O idiota do Denis é exatamente o indivíduo que não pode ser punido por erros no trânsito porque ele está aquém de entender o que é o trânsito de carros na sociedade. Ele não está em condições de entender a liberdade individual. Ele não percebe que não está em uma ilha, e que não pode morrer sozinho, que sua morte ou seu ferimento tem consequências imediatas para terceiros, os que o amam, os que lhe são dependentes e nós todos, os que vamos financiar os seus cuidados – em hospital público mais, é claro, mas não estaremos isentos de pagar algo no hospital particular; no mínimo, no hospital particular, Denis estará fora das estatísticas de um sistema razoável de saúde. Pois ele, uma vez machucado, estará sofrendo de algo evitável, tirando a vaga de alguém que estará sofrendo do inevitável.
Nenhum liberal ou mesmo libertário defendeu tal posição. O individuo como átomo isolado, sem traços humanos, não é uma quimera da filosofia política. Ele é uma bobagem. Mesmo quando a filosofia política cria elementos ideais, quase quiméricos, como um “homem em estado de natureza”, esse homem tem traços (sociais) que o garantem como homem. Esses traços exigem que ele não seja idiota, que ele seja um humano dotado da condição de vir a ser sujeito. Ora, Denis Rosenfield não quer ser um bípede-sem-penas capaz, quer ser idiota. No entanto, dado que vive na trama social e não poderia viver em outro lugar, a ele não é permitido nem mesmo entrar em uma máquina de redução do QI para ser o idiota que deseja. Denis Rosenfield só pode ser idiota exercendo um não-direito. Ele gostaria de perder todas as responsabilidades, ainda vivendo em sociedade, mas por sua própria decisão. Isso seria uma atitude possível? Factualmente, sim, moralmente, não, ele estaria agindo de modo egocêntrico e egoísta, e jamais seria perdoado pelos que o cercam. Ele tem esse direito? Nem politicamente, por tudo que disse, nem eticamente, por tudo que acabei de dizer. Para a sua infelicidade, Denis terá de continuar sem ser o idiota que deseja ser.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Veja aqui o vídeo em que comento rapidamente a fala do professor Rosenfield no Programa do Jô.