ZIZEK - Como o WikiLeaks abriu os olhos do mundo para a ilusão de liberdade

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Jun 20, 2014, 10:35:54 AM6/20/14
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Opinião: Como o WikiLeaks abriu os olhos do mundo para a ilusão de liberdade

SLAVOJ ZIZEK
DO "GUARDIAN"

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Recordamos as datas dos eventos importantes de nossa era: o 11 de setembro (não só pelo ataque às Torres Gêmeas em 2001 como pelo golpe militar contra Salvador Allende no Chile em 1973), o Dia-D etc. Talvez outra data precise ser acrescentada a essa lista: o 19 de junho.

A maioria de nós gosta de dar uma caminhada durante o dia, para tomar ar. Deve existir um bom motivo para aqueles que não podem fazê-lo - talvez seu trabalho os impeça (mineiros, tripulantes de submarinos), ou sofram de uma estranha doença que torna expor a pele à luz do sul um perigo mortal. Até mesmo os presidiários têm sua hora de caminhada ao ar livre, uma vez por dia.

Em 19 de junho, fez dois anos que Julian Asange foi privado desse direito. Ele está permanentemente confinado ao apartamento que abriga a embaixada equatoriana em Londres. Caso decidisse sair do apartamento, seria imediatamente detido. O que Assange fez para merecer esse tratamento? De certa forma, é possível compreender as autoridades: Assange e seus colegas de denúncia são muitas vezes acusados de traição, mas são algo de muito pior (aos olhos das autoridades).

Assange se definiu como um "espião para o povo". "Espionar para o povo" não é uma simples traição (o que significaria, em lugar disso, agir como agente duplo, vendendo nossos segredos ao inimigo); é algo muito mais radical. Solapa o princípio mesmo da espionagem, o princípio do segredo, já que o objetivo da atividade é expor segredos. As pessoas que ajudam o WikiLeaks já não são apenas denunciantes que expõem as práticas ilegais de empresas privadas (bancos, companhias petroleiras e de tabaco) às autoridades públicas; o que eles fazem é denunciar essas autoridades mesmas ao público mais amplo.

Na verdade não aprendemos com o WikiLeaks nada que já não presumíssemos ser verdade - mas uma coisa é saber de algo em termos genéricos e outra ter acesso aos dados concretos. É mais ou menos como saber que um parceiro sexual está sendo infiel. Pode-se aceitar o conhecimento abstrato do fato, mas surge dor se a pessoa descobrir os detalhes tórridos, se a pessoa contemplar imagens do que seu parceiro anda fazendo.

Diante de fatos como esses, não seria o caso de todos os cidadãos norte-americanos decentes se sentirem envergonhados? Até agora, a atitude do cidadão médio foi a de uma hipócrita negação: preferimos ignorar o servicinho sujo que as agências de inteligência fazem. De agora em diante, não poderemos mais fingir que não sabemos.

Não basta ver o WikiLeaks como um fenômeno antiamericano. Estados como a Rússia e a China são muito mais opressivos que os Estados Unidos. Imagine o que teria acontecido a alguém como Chelsea Manning em um tribunal chinês. O mais provável é que nem houvesse um julgamento público; ela simplesmente desapareceria.

Os Estados Unidos não tratam seus prisioneiros com igual brutalidade - por conta de sua prioridade tecnológica, simplesmente não precisam adotar essa abordagem escancaradamente brutal (que o país não hesita em aplicar quando necessário).

Mas é por isso que os Estados Unidos são uma ameaça ainda mais perigosa que a China para a nossa liberdade: suas medidas de controle não são percebidas como tais, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.

Em um país como a China, as limitações à liberdade ficam claras para todos, e não existem ilusões a respeito.

Nos Estados Unidos, porém, as liberdades formais são garantidas, de modo que a maioria dos indivíduos experimenta suas vidas como livres e não está nem mesmo ciente de em que medida são controladas por mecanismos do Estado.

Os denunciantes fazem algo de muito mais importante do que afirmar o óbvio por meio de denúncias contra os regimes abertamente opressivos; eles tornam pública a falta de liberdade subjacente a uma situação em que supostamente nos experimentamos como livres.

Em maio de 2002, foi reportado que cientistas da Universidade de Nova York haviam instalado um chip de computador capaz de transmitir sinais elementares diretamente ao cérebro de um rato - permitindo aos cientistas controlar os movimentos do rato por meio de um mecanismo de direção, como o usado em um carinhos de controle remoto. Pela primeira vez, a livre vontade de um animal vivo foi assumida por uma máquina externa.

Como esse desafortunado rato experimentava seus movimentos, decretados de fora para todos os fins práticos? Estava completamente inconsciente de que seus movimentos eram guiados de fora? Talvez esteja aí a diferença entre os cidadãos chineses e nós, cidadãos livres dos países liberais, ocidentais: os ratos chineses ao menos têm consciência de que são controlados, enquanto nós somos ratos estúpidos e circulamos sem saber que nossos movimentos estão sendo monitorados.

Será que o WikiLeaks está buscando um sonho impossível? Definitivamente não, e a prova é que o mundo já mudou desde suas revelações.

Não só aprendemos muito sobre as atividades ilegais dos Estados Unidos e de outras grandes potências; não só as revelações do WikiLeaks colocaram os serviços secretos na defensiva e deram origem a atos legislativos para controlá-los.

O WikiLeaks conseguiu muito mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em que vivem. Algo que até o momento tolerávamos silenciosamente como aceitável se tornou inaceitável.

É por isso que Assange foi acusado de causar tamanho estrago. No entanto, não existe violência naquilo que o WikiLeaks está fazendo.

Todos nós conhecemos a clássica cena de desenho animado: o personagem chega a um precipício mas continua correndo, ignorando o fato de que não existe chão sob seus pés, e só começa a cair quando olha para o abismo.

O que o WikiLeaks está fazendo é simplesmente nos lembrar do poder de olhar para baixo.

A reação de muita gente às revelações do WikiLeaks, depois de passar pela lavagem cerebral da mídia, pode ser resumida pelos memoráveis versos da canção final do filme "Nashville", de Robert Altman: "Você pode dizer que não sou livre mas isso não me preocupa". O WikiLeaks faz com que nos preocupemos. E, infelizmente, muita gente não gosta disso.

SLAVOJ ZIZEK é diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities 

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