Como na metáfora dos modernistas brasileiros, o continente promove uma
antropofagia cultural, engolindo, digerindo e transformando a herança
da diáspora negra
18/11/2010
Spensy Pimentel
do Desinformemonos.org
Vinte anos atrás, o rap político chegava ao seu auge nos EUA. Grupos
como Public Enemy, Boogie Down Productions (BDP) e Niggers with
Attitude (NWA) expressavam, cada um a seu modo, o descontentamento dos
habitantes dos guetos das grandes cidades do país com a falta de
oportunidades econômicas para os mais pobres e a violencia policial,
especialmente contra negros e latinos. A virulência das letras,
recuperando muitas idéias e nomes do movimento negro dos anos 60 e 70,
chamava a atenção, e os grupos chegaram a ser alvo de investigações do
FBI. Congressistas da direita faziam discursos raivosos e paranóicos.
Causa? Efeito? Sintoma, de qualquer modo. Enquanto ecoavam pelos
guetos negros e latinos dos EUA versos virulentos contra a polícia,
como “Fuck the police” / “They have the authority to kill a minority”,
do NWA, uma insatisfação crescente desembocou em uma série de revoltas
em 1992, principalmente a partir de Los Angeles, onde policiais
acusados de espancar o taxista negro Rodney King, flagrados por um
cinegrafista amador um ano antes, foram absolvidos por um júri formado
majoritariamente por brancos.
Logo depois, os ventos mudaram nos EUA. A sucessão de governos
republicanos – que costumam cortar os gastos públicos, principalmente
destinados à assistência social – foi interrompida em 1993 pela
chegada do democrata Bill Clinton. A queda do muro de Berlim, em 1989,
deu força ao projeto neoliberal traduzido no decálogo do Consenso de
Washington, e os anos 90 foram marcados pela imposição dos padrões
econômicos que interessavam aos mercados financeiros. Na América
Latina, uma leva de governos francamente alinhados com os EUA produziu
abertura dos mercados, privatizações e o desmantelamento da economia.
Os rentistas – os que vivem de juros – lucraram como nunca. Em menor
ou maior grau, o continente foi à lona e sofre até hoje as
consequencias da adoção das famosas lições de casa de organismos como
o FMI e o Banco Mundial.
A música dos guetos continuou a refletir o zeitgeist, o espírito do
mundo. Favorecida pelas políticas de livre mercado, as privatizações e
as novas tecnologias, com o advento da internet, sobretudo, a economia
americana viveu um período de grande prosperidade. Em paralelo, o rap
ganhou espaço no mainstream (3M: mercado, mídia, moda) ao mesmo tempo
em que o protesto político passou a ser uma corrente minoritária.
Ganhava espaço, principalmente, o gangsta rap, cada vez mais
celebrando um modo de vida consumista de artistas que passavam a
ganhar dinheiro com a música. Se os clipes de rap antes denunciavam a
violência da polícia contra os jovens negros na rua, agora passavam a
mostrar como, mesmo em um automóvel luxuoso de último tipo um negro
ainda podia ser parado como suspeito. No fio da navalha entre as duas
tendências ficavam figuras como certo filho de Afeni Davis, uma antiga
integrante do Black Panthers Party, conhecido como Tupac Shakur, mais
tarde 2Pac.
Mas a centelha de consciência política e revolta trazida pelo Hip Hop
como herança dos movimentos negros dos anos 60 e 70 não morreu, apenas
emigrou. Escondida nos porões das naus da globalização neoliberal, ela
se espalhou pelos continentes. Na França, foi trilha sonora das
revoltas dos jovens dos bairros pobres contra as políticas liberais e
a violência policial. Na Palestina, embala a luta dos jovens na
Intifada. À África, o fruto da diáspora negra voltou para semear a
desobediência civil contra o autoritarismo.
E foi na América Latina que a semente do Hip Hop encontrou o solo mais
fértil. Na região que sofre desde o século XIX com a sombra da
presença norte-americana, os ensinamentos sobre o valor da organização
comunitária local na produção cultural ganham nova dimensão. Enquanto
o Hip Hop se torna parte do cerne da indústria cultural
norte-americano no fim dos anos 90, na América Latina, ele se converte
em catalisador de núcleos de formação política nas periferias urbanas
e voz dos oprimidos.
Milhares de jovens, aos quais não falavam os partidos, os sindicatos
ou os movimentos negro e indígena, de repente estão a ler obras de
Malcolm X e Martin Luther King, a procurar informações sobre líderes
como Zumbi dos Palmares, Che Guevara, Luisa Mahin ou Tupak Katari, ao
mesmo tempo em que promovem festas, cursos de dança, desenho e poesia,
além de trabalhos sociais nas comunidades onde vivem. A maioria
absoluta não vai se tornar campeão de vendas, não vai se tornar
milionário, mas terá, certamente, a vida mudada por essa sutil
combinação de arte e política em que se converteu o Hip Hop.
Ao sul do Rio Grande também se dança
Os mexicanos, que são quase 30 milhões, entre os nascidos no México ou
seus descendentes, vivendo nos Estados Unidos, têm tamanha presença
nos guetos americanos que o país poderia ser considerado quase tão
importante na composição dos elementos do Hip Hop como a Jamaica – de
onde vieram vários dos primeiros envolvidos nas festas de rua (block
parties) onde surgiu o movimento, com elementos como o DJing e o
Mcing. O rap chicano se impôs nos anos 90, e a arte do lowriding, por
exemplo, típica das comunidades mexicanas na região de Los Angeles,
foi definitivamente incorporada ao Hip Hop. Não há como ignorar,
ainda, a possível influência da arte latino-americana no grafite,
particularmente o muralismo centroamericano.
Desde os anos 90, ao mesmo tempo que é um dos mais castigados pelas
políticas neoliberais, o país também gerou um movimento que virou
referência para a resistência contemporânea ao capitalismo, o
zapatismo. Rappers como Olmeca, que mora em Los Angeles, e Boca Floja
demonstram a influência do EZLN.
Outro país latino-americano cujos imigrantes estiveram fortemente
ligados às raizes do movimento é Porto Rico. Alguns dos primeiros Mcs,
Djs, breakers e grafiteiros tinham ascendência portorriquenha – ou
cubana, ou ambas. Era portorriquenho, por exemplo, Julio 204,
precursor do grafite e do próprio Taki 183, o primeiro praticante das
tags a obter fama na mídia, em 1971. Outro descendente de
portorriquenhos (e cubanos) era o DJ Disco Wiz, integrante de uma das
primeiras crews de Mcs do Bronx.
Hoje, o rap político portorriquenho, conhecido como rap boricua,
celebra a soberania do país e ataca os invasores norte-americanos. Em
“Mano Dura”, Siete Nueve e Intifada denunciam a execução, por agentes
do FBI, em 2005, de Filiberto Ojeda Rios, líder independentista. O
vídeo de “Epica del Tiempo”, de Intifada, celebra a resistência à
ocupação norte-americana, que já dura 112 anos.
Em 2008, na disputa entre Obama e McCain, o reggaeton, uma derivação
latina do Hip Hop de apelo mais comercial, originária de Porto Rico,
entrou na política eleitoral. Daddy Yankee declarou voto em McCain, e
o rapper Siete Nueve pedia a ele: “Quedate callao!” Situação parecida
ocorreu, também no governo Bush, com o sambista brasileiro Alexandre
Pires, que chegou a chorar ao encontrar o presidente norte-americano.
“Falhou, sujou, a bandeira brasileira / Envergonhando a América Latina
inteira / Inocência, oportunismo, ignorância da história / Chorou nos
braços de quem tem fama sem glória”, cantou para ele à época o rapper
GOG.
No Brasil, o rap tornou-se, rapidamente, uma das principais expressões
de um forte movimento de auto-afirmação da população negra e de
reivindicação de espaços na política, na economia e na sociedade.
Nomes como os dos Racionais MCs e GOG inspiraram milhares de jovens a
procurar entender melhor sua história e sua vida. Toda uma geração de
rappers obteve destaque no país desde o início dos anos 90, trazendo
destaque à problemática da juventude negra nas periferias
metropolitanas do país. São nomes como RZO, Sabotage, De Menos Crime,
Conexão do Morro, MV Bill, Z'África Brasil, entre outros. Na década
atual, os rumos dos trabalhos dos Racionais e de Bill, entre outros,
causa debate no movimento, incluindo-se contratos com grandes empresas
e aparições na maior rede de TV do país, a Globo, além de
posicionar-se a favor de ações polêmicas do governo Lula como a
coordenação da missão da ONU no Haiti.
Em tempos de bonança na economia, com um governo que tem aprovação de
uma maioria absoluta da população negra e pobre, o rap político perdeu
terreno. Ganhou espaço no país o funk carioca, por exemplo, uma
derivação de um estilo do rap norte-americano, o miami bass, mais
dançante e abordando temáticas mais ligadas à sexualidade. Ainda
assim, o funk carioca enfrenta a criminalização, da mesma forma que
outras manifestações culturais populares, principalmente devido a
letras que abordam (e, do ponto de vista de alguns, exaltam) o crime
organizado do Rio de Janeiro. Artistas do funk carioca como Deize
Tigrona alçaram fama internacional.
Ao mesmo tempo, a maior consciência sobre os limites da tomada de
poder por um partido de esquerda e a necessidade de continuar a luta
social fora do âmbito estatal dão destaque a uma nova leva de
ativistas-ativistas, como é o caso dos coletivos Lutarmada e
Enraizados, ou mesmo do próprio movimento da literatura marginal ou
periférica, uma transformação sui generis do Hip Hop, grande novidade
dos últimos anos no país (vide, por exemplo, Donde Miras). A falência
da indústria da música também enseja a reflexão sobre formas
alternativas de distribuição, e novos padrões de comportamento diante
da grande mídia e dos partidos políticos, como é o caso dos MCs
Emicida, Rashid e Rapadura, ou dos grupos Facção Central e Tr3f – este
último, do escritor Ferréz. Nem sempre se trata de uma “nova geração”.
Há casos em que se trata de gente com anos de estrada no movimento,
mas que representam esse novo momento que chegou para o Hip Hop no
Brasil, diante da atual conjuntura política (o link acima é para um
clipe do Facção Central que foi censurado pela Justiça em 1998).
Em outros países, como Venezuela e Cuba, onde há um explicito projeto
socialista em marcha, os governos locais dão apoio massivo ao Hip Hop
como forma de cultura jovem. Em Cuba, existe até mesmo um organismo
estatal específico, a Agência Cubana de Rap, para dar suporte ao
movimento. Intensa articulação com os afrocubanos nos EUA acontece em
torno do evento Agosto Negro, que ocorre desde 1998 e envolve, entre
outros elementos, a solidariedade com presos políticos negros nos EUA
(como o padrasto de Tupac, preso até hoje) – por iniciativa da
ativista Nehanda Abiodun, veterana do Black Power que obteve asilo
político em Cuba. Nomes fortes dessa cena do rap político cubano são,
entre outros, Anonimo Consejo, Los Aldeanos e Obsesión.
Na Venezuela, desde 2005, o governo ajuda a promover a Cúpula
Internacional do Hip Hop, que é anual e já está em sua 5a edição. Aí
estão grupos como o Hip Hop Revolución, Kultura Santa e Septima Raza.
Em parceria com o governo, o movimento está criando a rede de Escolas
Populares de Artes e Tradicoes Urbanas (Epatu). Pelas cúpulas
venezuelanas já passaram grupos de vários países, como Legua York
(Chile), Actitud María Marta (Argentina) e Metaforus (República
Dominicana). E há, evidentemente, também, os que cantam contra o
governo.
Uma das grandes novidades dos últimos anos, ainda, é o rap indígena.
Na Bolivia, onde dois terços da população pertencem a algum dos mais
de 35 povos originários do país, destaca-se a producao de El Alto,
onde apareceu o grupo Wayna Rap, rimando em aymara (uma das duas
principais etnias do país) e onde vivia o ativista Ukamau Y Ke, morto
em 2009.
No Chile, os Mapuche, que são o principal grupo indigena do país,
enfrentam pesada discriminação racial e violencia policial. A
identificação com o Hip Hop é inevitável. Na fronteira do Brasil com o
Paraguai, os Guarani-Kaiowa enfrentam situacao semelhante. Nas aldeias
do grupo, superlotadas pelo confinamento promovido pelo governo
brasileiro ao longo de todo o seculo XX, a fim de liberar as ricas
terras da região para o agronegócio, os jovens enfrentam fome, doenças
e falta de perspectivas sobre um futuro. O resultado tem sido muita
violência, suicídios e, agora, como reação, o Hip Hop, cantado em
guarani.
O Hip Hop na América Latina não para de evoluir e transformar-se. Como
na metáfora dos modernistas brasileiros, evocando a herança dos índios
tupi da costa brasileira, canibais à época da conquista, o continente
promove uma antropofagia cultural, engolindo, digerindo e
transformando a herança da diáspora negra. Neste momento, não só
aparecem projetos que demonstram cada vez mais a consciência dessa
realidade, como o recente disco Distant Relatives, do americano Nas e
do jamaicano Damian Marley. Para além dos artistas de mais
visibilidade, milhares de rappers, breakers, grafiteiros cada vez mais
aproveitam oportunidades para viajar e promover encontros e
intercâmbios. O resultado explosivo dessa união planetária será
percebido em pouco tempo, tenho certeza.
link reportagem: http://www.brasildefato.com.br/node/5076