Vítimas do programa de esterilização compulsória de Alberto Fujimori lutam para punir os responsávels pelos crimes
19/10/2010
Ángel Páez
IPS
Mulheres
camponesas, pobres e de língua quéchua da província peruana de Anta,
vítimas do programa de esterilização compulsória de Alberto Fujimori
entre 1996 e 2000, voltam a buscar a esquiva Justiça com um novo
processo contra os responsáveis pelo plano.
No dia 26 de maio
de 2009, o promotor de Direitos Humanos, Jaime Schwartz, arquivou um
caso contra quatro ex-ministros da Saúde do regime Fujimori (1990-2000)
alegando que as imputações estavam prescritas, ao considerar que os
possíveis crimes eram contra a vida, o corpo e a saúde, e de homicídio
culposo.
A acusação, porém, havia pedido que o julgamento fosse
por crime de genocídio e tortura. O Ministério Público ratificou a
decisão de Schwartz, apesar da queixa apresentada pelas vítimas e
organizações humanitárias que as assessoram legalmente.
Agora, a
Associação de Mulheres Afetadas pelas Esterilizações Forçadas de Anta,
uma província andina do Departamento de Cusco, decidiu colocar novo
cerco à impunidade e apresentar nova demanda, com uma estratégia
diferente, contra os responsáveis pela política de planejamento
familiar do último quadriênio de Fujimori.
A Associação reúne
uma centena de camponesas que documentaram com seus testemunhos o que
se escondeu por trás do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e
Planejamento Familiar, imposto à força e com enganos pelo
ex-presidente, que o apresentava como um plano contra a pobreza.
“Recordo
perfeitamente o dia em que me esterilizaram contra minha vontade,
porque o que fizeram me faz sofrer até hoje”, disse à IPS Sabina
Huilca. “Esse dia foi 24 de agosto de 1996”, acrescentou, tentando
parecer indiferente.
Ela será uma das vítimas que vão depor perante as autoridades para que os autores e executores do Programa sejam punidos.
“Depois
de ter dado à luz à minha quarta filha, fui ao centro de saúde de
Izcuchaca onde, após ser examinada pelo médico, ele me disse para não
ter mais filhos e que fosse feita a AQV (anticoncepção cirúrgica
voluntária)”, contou.
“Respondi que não. Boba, ele me dizia.
Terá mais filhos e não poderá criá-los”, insistiu, e, enquanto estava
deitada em uma cama, uma enfermeira me aplicou uma injeção, “que eu não
sabia e nem me disseram que era anestesia”.
“Quando acordei
tinha os pés e as mãos amarrados com faixas na cama. Estava
imobilizada. Pude ver que estavam dando os últimos pontos. ‘O que me
fizeram?’, gritei”.
“Já vamos terminar, disse o médico. E
comecei a chorar. ‘Não quero, não quero!’, gritei desesperada. Mas o
dano já estava feito”, contou Sabina, na época com 28 anos e agora com
41.
“Nada pessoal”, uma reportagem feita pela advogada Giulia
Tamayo, a pedido da seção peruana do Comitê da América Latina e do
Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), revelou, em 1998,
o compulsivo plano.
A investigação documentou pela primeira vez
a sistemática e progressiva prática de esterilização que afetava
especialmente mulheres pobres, indígenas e camponesas.
As
revelações provocaram ameaças do governo contra Giulia, que precisou
abandonar o país e morar na Espanha, de onde acaba de retornar para
assessorar a Associação de Anta no novo processo.
O próprio
Estado reconheceu que sob o plano foram feitas 300 mil esterilizações,
das quais a Defensoria do Povo documentou, com base em denúncias, 2.074
casos forçados.
“As estruturas de poder que protegeram os
autores dos fatos criminosos continuam vigentes e, em consequência,
isso lhes garante impunidade até hoje, o que implica uma continuidade
da vulnerabilidade dos direitos das mulheres afetadas pelas
esterilizações maciças e compulsivas”, explicou Giulia à IPS.
Em
2003, o Estado peruano e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) assinaram um acordo amistoso sobre o caso da camponesa Mamérita
Mestanza, morta em 1998 após sofrer esterilização não consentida.
O
Estado aceitou sua responsabilidade, reconheceu os abusos cometidos na
execução do programa de planejamento familiar e se comprometeu a
investigar e punir os responsáveis, além de medidas de reparação para a
família de Mamérita.
Entretanto, o Ministério Público protelou a
investigação até seu arquivamento definitivo em 2009. Isso permitiu,
por exemplo, que um dos acusados, Alejandro Aguinaga, ex-ministro da
Saúde e médico pessoal de Fujimori, fosse eleito legislador para o
Congresso (unicameral) em 2006, e que desde julho seja seu
vice-presidente.
Fujimori cumpre penas de até 25 anos por crimes de corrupção e violação dos direitos humanos.
O
descumprimento da solução amistosa pelo Estado “prolonga a dor de
milhares de mulheres afetadas, porque os acusados continuam com suas
atividades como pessoas respeitáveis quando, na realidade, devem
responder perante a Justiça”, ressaltou Giulia, que também é
investigadora da seção espanhola da Anistia Internacional.
“Desta vez serão processados individualmente os autores dos fatos por crimes de lesa humanidade e tortura”, explicou.
O
processo contra cada suposto responsável pelo plano também será “por
crimes de guerra, porque a esterilização compulsória foi imposta no
contexto da guerra interna (1980-2000), recorrendo às Forças Armadas
para impor a ameaça e o medo”, explicou a advogada.
A
tipificação de crimes internacionais permitirá que “outro país possa
aplicar a Justiça, no caso de os acusados continuarem recebendo a
proteção do Estado”, disse a ativista humanitária.
“A CIDH assinalou a responsabilidade internacional pela esterilização forçada”, destacou Giulia.
Esclareceu
que a demanda foi apresentada pelas vítimas de Anta, porque ali “a
esterilização aconteceu casa por casa, as autoridades de Saúde da
região foram obrigadas a cumprir suas ‘cotas’ de mulheres esterilizadas
e as afetadas pertenciam a uma mesma comunidade indígena”.
Segundo Giulia, isso significa que “os que criaram o Programa definiram seu objetivo com abominável precisão”.
Uma
das primeiras a levantar a bandeira de luta contra as esterilizações
forçadas e por justiça foi a agora famosa legisladora de língua quéchua
Hilaria Supa, originária de Anta e mãe de uma das vítimas do programa.
“Desde
que me operaram até hoje, continuo sofrendo pelo que me fizeram à
força”, contou Sabina, moradora da comunidade camponesa de
Huayllaccocha, onde foram registrados vários casos semelhantes.
“Afetaram
minha condição de mulher. Desde então não pude carregar meus filhos que
eram pequenos, nem posso trabalhar no campo, que é do que vivemos, e
muito menos estou em condições de cozinhar porque sinto dores
horríveis”, contou, ao falar das consequências pouco conhecidas que
sofrem as vítimas.
“Tenho dificuldades para caminhar, minha vida
é um sofrimento. Além disso, na comunidade me tratam como deficiente,
porque no povoado uma mulher que não trabalha é muito mal vista”,
lamentou, já sem poder esconder a tristeza em que vive.
“O pior
de tudo é que um dos médicos que me prejudicou para toda a vida
continua trabalhando no mesmo ambulatório de Izcuchaca. Cada vez que o
vejo, me encho de raiva porque nada aconteceu a ele”, ressaltou.