Para ninguém dizer que eu só mando notícias direitosas pra lista, segue uma do Ópera Mundi, muito interessante nesse tempo de eleição, que está polarizando o país em fundamentalistas religiosos cristãos representando o Bem e pessoas que querem discutir a realidade sócioeconômica do país representando os pervertidos contra a vida.
bisous
Ricardo
Tabu no Brasil, aborto é menos restrito na maioria
dos países
Estamos em um país sul-americano colonizado por europeus
católicos. Nação que sofreu com uma ditadura sangrenta e só anos
depois, com a democracia já instaurada, assistiu aos generais
responsáveis por dizimar a esquerda armada serem julgados e condenados.
Em seguida, e não sem grande polêmica, seu Senado aprovou o casamento
gay. Agora, a próxima pauta em discussão é a descriminalização do
aborto.
O país colonizado a que se refere o parágrafo não é o Brasil. Diz
respeito à Argentina. Nesse mesmo mês de outubro de 2010, enquanto
nossos vizinhos iniciam um debate com chances reais de legalizar
interrupções voluntárias de gravidez (IVG), assistimos aqui ao oposto,
com a perseguição a quem defende tal posicionamento. Que o digam os
candidatos à Presidência do Brasil José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff
(PT), cujas campanhas buscam dissociá-los de qualquer ação pró-aborto.
Afinal, qual a explicação para tamanha discrepância, em países tão
próximos, geográfica e historicamente?
Arte/Opera Mundi
Status legal do aborto no mundo. Clique
aqui para mais informações (em inglês). Veja
as restrições legais ao aborto em cada país
Fonte: Center for Reproductive Rights (EUA), dados de 2009
"Durante os últimos anos, e devido principalmente ao trabalho
incansável do movimento de mulheres, a opinião pública mudou", analisou a
advogada argentina Susana Chiarotti, co-autora do livro Realidades y coyunturas del aborto - entre
el derecho y la necesidad (Realidades e conjunturas do aborto -
entre o direito e a necessidade, sem tradução para o português), que
cita o Brasil como um exemplo de retrocesso.
O caso narrado é episódio em 2004, quando, durante quatro meses,
foi possível realizar abortos de fetos anencéfalos, ou seja, que não
tiveram a formação neurológica correta e não conseguiriam sobreviver
fora do útero. A autorização foi possível graças a uma ação ajuizada
naquele ano pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde), que alegou ofensa à dignidade humana da mãe, prevista no artigo
5º da Constituição Federal. Na ocasião, o STF (Supremo Tribunal Federal)
brasileiro entendeu que era preciso antes validar o mérito do
instrumento utilizado pela CNTS, a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, o que ocorreu em 2005. Desde então, a ação aguarda
julgamento do Supremo.
Leia a série de reportagens:
Aborto
ilegal é 300 vezes mais perigoso para a mulher que o legal
Aborto:
nos EUA, governo Bush deixou marcas que Obama tenta apagar
Veja
as restrições legais ao aborto em cada país
Se aprovar a descriminalização do aborto sem pressupostos, a
Argentina se somará a outros 56 países do mundo que adotam essa prática –
variável a depender do tempo limite de gestação para realizar a
prática. Além deles, 37 nações admitem IVGs por motivos econômicos ou de
saúde mental e mais 36 aceitam a interrupção para preservar a saúde
física da mulher, de uma maneira mais ampla – grupo ao qual os
argentinos já fazem parte, com destaque para a legislação da Província
de Buenos Aires. No total, são 93 Estados que, de forma menos
restritiva, descriminalizaram o aborto, de acordo com os dados da
associação
Reproductive
Rights. Algo em torno de 74,3% da população mundial.
Do outro lado dessa conta está o Brasil e outros 67 países que
proíbem completamente a prática ou abrem uma exceção bastante limitada,
como em caso de risco extremo para a vida da mãe e de estupro. Estes
somam 25,7% dos habitantes do planeta, a maioria na África, América
Latina e no mundo islâmico.
"Especialmente nos países da América Latina há uma influência
muito forte do catolicismo Existe um movimento conservador em torno dos
temas dos direitos reprodutivos e o Brasil não fica atrás. Temos uma
bancada de parlamentares que se diz em defesa da vida, mas só estanca o
debate e tenta retroceder naqueles pontos onde o aborto já foi aprovado,
ou seja, em caso de estupro e risco de vida", afirmou Rosângela Dualib,
da associação Católicas pelo Direito de Decidir, que atua na Europa e
na América.
Novas perspectivas
Entre os que recentemente modificaram a legislação favoravelmente
ao aborto está a Espanha. Desde fevereiro deste ano, o país, de forte
tradição católica, mas laico, autoriza a interrupção da gravidez até a
14ª semana, sem qualquer restrição, e até a 22ª condicionada à risco à
vida da gestante ou má formação fetal. A grande novidade, porém, ficou
por conta da permissão de jovens entre 16 e 18 anos, consideradas
menores de idade, a interromperem voluntariamente a gravidez sem
consentimento dos pais. O ponto foi um dos mais ressaltados nos
protestos contrários à aprovação da lei.
No vizinho e igualmente devoto Portugal, a alteração ocorreu há
três anos, referendada por plebiscito popular em que a descriminalização
do aborto obteve 59% de aprovação. A diferença para a Espanha ficou
justamente na notificação parental de adolescentes, ainda obrigatória.
Apenas entre 2008 e 2009, cerca de 39 mil abortos foram feitos
legalmente no país.
A lei portuguesa se assemelha também a de outro país próximo onde o
aborto já é uma realidade há quase cinco décadas: a França. Em ambos,
há um tempo mínimo obrigatório para refletir sobre a decisão a partir do
atendimento inicial dado à mulher pelo sistema público de saúde. Quem
optar por interromper uma gravidez recebe apoio psicológico e social
para lidar com a situação.
Associado a isso está a disseminação de políticas de planejamento
familiar e prevenção de gravidez, que recebem bastante ênfase (e verbas)
na Europa. De acordo com Anne Daguerre, pesquisadora associada da
Sciences Po, em Paris, "a Holanda é o melhor exemplo de uma política
empreendedora em matéria de educação sexual e acesso aos contraceptivos:
75% das holandesas de 15 a 44 anos utilizam algum método moderno para
evitar a gravidez. Como consequência, a taxa de abortos no país é uma
das mais reduzidas da Europa: oito em cada mil gestações. As IVGs são
praticadas em clínicas especializadas, por médicos altamente
qualificados. E o atendimento conta com a cobertura integral de uma
empresa pública de seguros."
De fato, uma pesquisa feita em 2007 pela OMS (Organização Mundial
da Saúde) demonstra que nos países onde o aborto é permitido por lei, o
número de procedimentos tende a cair – com exceção de Cuba e do Vietnã,
onde o acesso a métodos contraceptivos é bastante restrito. "A prática
tem mostrado que, nos países onde o aborto é legalizado, há um
crescimento inicial, pela demanda reprimida, e depois isso se estabiliza
e há uma diminuição subsequente. Isso porque as mulheres que passaram
por um aborto já saem dos sistemas de saúde com um método contraceptivo
adequado, escolhido a partir das informações que recebeu nessas
instituições", afirmou Rosângela Dualib.
Segundo ela, esses dados vão contra discurso propagado
recentemente no Brasil, que tende a ver a interrupção voluntária da
gravidez como uma forma de prevenção, e não de remediar uma situação
indesejada. "Nenhuma mulher passa incólume física e psicologicamente por
uma experiência dessas. Dizer que as mulheres vão eleger isso como
método contraceptivo é uma falácia. A taxa tende a diminuir", completou.
Nos cálculos do SUS (Sistema Único de Saúde), cerca de um milhão
de abortos inseguros são realizados anualmente no Brasil; uma em cada
cinco mulheres já teria recorrido à prática ao menos uma vez em sua
vida, sendo a maioria delas casada, com mais de 18 anos e identificada
com alguma religião. Uma realidade que bate à porta de todos.