Os Selfistas - Tolentino Mendonça

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Jorge Mayer

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Feb 16, 2020, 3:19:55 AM2/16/20
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A PROPOSIÇÃO QUE MOVE A SELFIE É AGORA ESTE VIDEOR ERGO SUM (SOU VISTO
LOGO EXISTO), PROPAGADO POR TODA A PARTE

A selfie tornou-se um sintoma do tempo em que vivemos. Se pensarmos na
fotografia tradicional era claro o seu papel em relação à
temporalidade da vida: a fotografia, fixando o tempo, como que o
prolongava, assumindo-se, no confronto com a nossa existência, como
uma arte da memória. Não é por acaso que imprimíamos as fotografias e
as recolhíamos num álbum, e deixámos de o fazer com o material
fotográfico que simplesmente acumulamos nos telemóveis. Quer dizer que
a função da imagem mudou. A fotografia tradicional pretendia ser ainda
um registo ao serviço da interpretação da vida. O seu processamento
chamava-se justamente “revelação”, pois era disso que se tratava, e
não só a um nível imediato, mas numa profusão de detalhes
significativos que a simples visão normalmente não deteta. Na sua
“Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin afirma, por exemplo,
que na fotografia fazemos a experiência do “inconsciente ótico”, do
mesmo modo que as psicoterapias nos permitem aceder ao “inconsciente
pulsional”. A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e
singular, o domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do
seu campo invisível.

A selfie, pelo contrário, transaciona sobre o imediato, como se o
sujeito histórico se tivesse tornado evanescente e a sua duração
(histórica, psicológica...) se dissolvesse para permitir que a
aparição instantânea se torne um fim. A proposição que move a selfie é
agora este videor ergo sum (sou visto logo existo), propagado por toda
a parte. Mas fazer depender a existência deste tipo de visibilidade dá
razão àquilo que o psiquiatra italiano Giovanni Stanghellini escreve
num ensaio recente (“Selfie. Sentirsi nello sguardo dell’altro”,
Feltrinelli, 2020): “a instantaneidade da selfie é semelhante à
temporalidade esfomeada e sem fôlego de um ataque bulímico”. De facto,
para compreendermos a contemporânea bulimia que nos torna a todos
produtores ininterruptos de imagens temos de procurar a razão de fundo
que permanece escondida, e que é uma dramática anorexia em relação ao
ser.

A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e singular, o
domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do seu campo
invisível

É verdade que enquanto a fotografia tradicional nos permitia dizer “eu
sou esta pessoa”, a selfie nos parece fazer dizer “eu estou aqui”. Mas
este “aqui” é um espaço atópico, errante, que nunca chega a ser
habitado. Por isso se caracteriza justamente o selfista como um
turista e não já como um viajante. Enganamo-nos, portanto, se pensamos
que a selfie serve para assinalar a nossa passagem por um determinado
lugar: ela é sim o resultado de uma radical desterritorialização da
vida, capturada pela ânsia da comunicação virtual, mais do que pelo
desejo de documentar o real.

O que procuramos então nas selfies? Stanghellini explica que buscamos
uma “prótese” existencial, uma “técnica de si” ativada para dar uma
resposta ficcional à necessidade de fundar a própria identidade.
Perante a exigência de nos definirmos a nós próprios, em tempos de
“aporia identitária”, a selfie é “o dispositivo que responde (que
tenta responder) à pergunta ‘quem sou?’”. Mas este psiquiatra que
dirige uma escola de psicoterapia em Florença é dirimente: “O mito da
instantaneidade como satisfação alucinatória da necessidade de
vizinhança ou de ultrapassagem da distância transforma a experiência
do sujeito apenas numa sequência sincopada de acontecimentos isolados
e encerrados neles mesmos. E quando pedimos aos outros para assistir —
se bem que ao longe — a estes acontecimentos, é porque só nos sentimos
presentes quando fazemos de nós próprios um espetáculo.” Não admira
que a era da selfie seja também a do crepúsculo do rosto.

in Semanário Expresso, 16.02.2020

http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2468/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/os-selfistas
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