O desafio da complexidade e da transdisciplinaridade. Entrevista
com Edgar Morin
Se há um intelectual francês para
quem a expressão ‘mestre’ ainda tem um sentido, este é Edgar Morin. Um mestre do
pensamento respeitado e estudado, que há mais de meio século afronta com as
armas da reflexão a complexidade do mundo e as suas contradições. Aos 86 anos, o sociólogo que se aproximou da
filosofia é hoje mais do que nunca o centro do debate
intelectual: os seus livros são traduzidos no mundo inteiro e as suas teses são
discutidas atenciosamente em congressos concorridíssimos. O último se realizou,
há alguns dias, em Paris, onde, durante dois dias, Morin se confrontou
publicamente com especialistas em várias disciplinas. A reportagem e a
entrevista são do jornal La Repubblica,
25-04-2008.
Não por acaso, portanto, que a editora Seuil decidiu
republicar, integralmente, a obra O Método, isto é,
os seis volumes do estudioso francês publicados entre 1997 e 2004, afrontando,
graças ao diálogo contínuo entre ciências humanas e ciências naturais, as muitas
formas da complexidade. Uma reflexão que, partindo do “conhecimento da
natureza”, se alarga para a “natureza do conhecimento”, investindo depois no
mundo das idéias, o território da antropologia e o continente da ética. “Como
todos os pioneiros, também eu, no início, fui
incompreendido. Hoje, no entanto, a importância do conceito de
complexidade é reconhecido por todos”, recorda Morin, a cujo pensamento
voluntariamente aberto a revista Communications acaba de dedicar um rico número
monográfico.
“Quando comecei a escrever o primeiro volume de O Método,
não era, certamente, um profeta. Eu buscava somente compreender a realidade que
estava na minha frente, confrotando-me com as idéias que começavam a circular em
certos ambientes de pesquisa. Em seguida, algumas das minhas intuições foram
recebidas pelo mundo da cultura, outras, pelo contrário, suscitaram fortes
resistências”.
O Método é um trabalho que foi se fazendo e que foi sendo
reorganizado no decorrer do tempo...
Escrever para mim não é simplesmente redigir um texto a partir de um pensamento já
cristalizado. Pelo contrário, o momento da escritura é aquele no
qual as reflexões se formam e se transformam, para que novas idéias modifiquem
continuamente a economia do trabalho já feito. Sem esquecer as leituras de alguns amigos que, com as suas críticas, me mostraram novos
horizontes de pesquisa, impelindo-me a retomar o trabalho. É um modo de
trabalhar difícil, mas apaixonante, que transforma continuamente o meu
pensamento. Um pensamento, pois, que nunca é inamovível nem definido uma vez por
todas. Como dizia Nietzsche, o método chega somente no fim.
Por que o
conceito de complexidade lhe pareceu
decisivo?
Os problemas importantes são sempre complexos e devem ser
afrontados globalmente. Se quero compreender a personalidade de um indivíduo,
não posso reduzi-la a poucos traços
esquemáticos. Devo necessariamente ter em conta muitas nuances,
às vezes contraditórias. O mesmo vale para a situação do planeta. Para compreendê-lo é
preciso ter presente muitos parâmetros. Enfim, a realidade é complexa e cheia de
contradições que são um verdadeiro desafio para o conhecimento. Para afrontar
tal complexidade, não basta simplesmente justapor fragmentos de saberes
diversos. É preciso encontrar o modo de integrá-los no
interior de uma nova prospectiva.
É o que o senhor fez no
Método?
Realmente, busquei elaborar alguns princípios de tal modo que
fosse possível colocar em relação aqueles conhecimentos que os instrumentos
tradicionais do conhecimento não conseguem coligar. Por isso utilizei o
ensinamento daqueles filósofos que não tiveram medo de afrontar as contradições,
desde Heráclito até Marx. Sem esquecer Pascal, para
quem o homem era o ser mais miserável e grotesco, mas também o mais
nobre.
O terceiro volume do Método é dedicado ao “conhecimento do conhecimento”. Por
quê?
Este é, certamente, o coração do problema, já que devemos conhecer
os mecanismos do conhecimento, se queremos compreender os nossos erros. Se as
minhas idéias encontraram o favor de muitas pessoas em diferentes âmbitos –
da ciência à literatura, da filosofia à pedagogia
– é porque estas eram profundamente insatisfeitas de uma cultura dominada
pelo pensamento binário, feito de oposições maniqueístas que removem toda e
qualquer contradição. No meu trabalho encontraram uma primeria resposta às
dúvidas que tinham. Eu, no entanto, somente revelei intuições que, ainda que não
formuladas, eram provavelmente já estavam presentes em muitos estudiosos. Existe uma aspiração difusa de um outro modo de
compreender o conhecimento. Por isso, as minhas reflexões
puderam se difundir em muitos países, como a Itália, onde o meu trabalho é mais
seguido que na própria França. Isso, naturalmente, é motivo de uma grande
satisfação, ainda que muito ainda precisa ser feito.
Em que
direção?
É preciso se ocupar do ensino. A reforma do conhecimento e
do pensamento somente poderá se concretizar através de uma reforma do ensino, uma problemática a que tenho dedicado os
livros A cabeça bem-feita (Bertrand Brasil, 2001)e Os sete
saberes necessários. A educação do futuro (Cortez, 12a. edição, 2007). O
nosso sistema de ensino separa as disciplinas e despedaça a realidade,
tornando impossível a compreensão do mundo e impedindo perceber os problemas
fundamentais que sempre são globais. O excesso de especialização se tornou um
problema. Pessoas muito competentes no seu setor, não sabem como reagir quando
qualquer outra problemática perpassa o seu âmbito específico. Teriam que ser
capazes de afrontar globalmente os problemas, mas não são
capazes.
É preciso uma ótica interdisciplinar?
Sim,
evidentemente, mas a interdisciplinaridade avança muito lentamente. No mundo da
pesquisa francesa os barões das disciplinas não são nem um pouco sensíveis a tal
perspectiva. Há, no entanto, um movimento em curso, que eu busco encorajar.
A interdisciplinaridade é positiva porque permite
que as pessoas que trabalham em campos diferentes, dialoguem, mas seria
necessário fazer um passo ulterior na direção da transdisciplinaridade, a única
capaz de construir um pensamento global capaz de articular os diferentes
saberes. No fundo, existe já uma ciência que se move neste sentido e que pode
servir de modelo.
Qual é?
A ecologia, que se apóia
na idéia de ecossistema. Ou seja, uma organização complexa, fundada ao mesmo
tempo no conflito e na cooperação, que nasce da eco-organização e da implicação
recíproca dos diferentes componentes do sistema. Fazendo interagir muitos
parâmetros diferentes, a ecologia é um exemplo muito
sutil, ainda que ela seja uma ciência com uma dimensão aleatória, dado que ainda
não somos capazes de responder a todas as grandes interrogações que ela levanta.
Isso vale mais ainda quando as chamadas ciências exatas são sempre mais
constrangidas a integrar a dimensão da dúvida e da incerteza. Nenhuma ciência
pode se arrogar exclusivamente certezas. Basta pensar nas dificuldades da
economia ante o marasmo dos mercados. Enfim, é preciso nunca eliminar a
dúvida.
A ecologia é um modelo também para o sistema da
cultura? É por isso que o senhor tem falado de uma ecologia
das idéias?
É um dos modelos, dado que também no âmbito
cultural agem contemporaneamente os princípios de conflito e de cooperação.
Partindo deste ponto de vista, é possível pensar em termos diferentes também a
relação entre autonomia e independência. Na natureza não se pode ser
independente a não ser dependendo do próprio ambiente. O que vale para o
ambiente biológico, vale também para o ambiente social, urbano, cultural,
religioso. Compreender a interdependência dos
sistemas culturais e das idéias é hoje mais do que nunca necessário. Isso
contribuirá a mudar o nosso modo de pensar, dando-nos um instrumento a mais para
fugir do abismo para o qual o planeta parece estar destinado.