QUESTÕES DE LINGUAGEM MÉDICA

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Simônides Bacelar

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Dec 2, 2015, 11:32:30 AM12/2/15
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Paciente Grave – Paciente Crítico

Sobretudo em comunicações formais, recomenda-se evitar as expressões "paciente grave" ou “paciente crítico”, pelo seu cunho coloquial, e preferir paciente em estado grave, paciente em estado crítico, paciente gravemente ou criticamente enfermo, paciente com doença grave ou em situação grave.

Em rigor médico-científico, é o estado clínico do paciente que está grave ou crítico ou a doença que é grave ou crítica, não a própria pessoa. Podem ser também criticos ou graves – processos, afecções, padecimentos, transtornos ou distúrbios orgânicos mórbidos, bem como situações ou condições clínicas ou cirúrgicas. Note-se, por analogia, a distinção entre “paciente crítico ou grave” e paciente em estado crítico ou grave de doença.

Do latim gravis, pesado, carregado, grave tem como sentido próprio – o que ou aquilo que tem peso; que ou aquilo que está sujeito à ação da gravidade (Houaiss, 2009). Em português, como sentido denotativo significa o que ou aquilo que tem peso; que ou aquilo que está sujeito à ação da gravidade (Houaiss, ob. cit.). Por conotação, é usado em referência a algo extremamente sério, preocupante como está nos dicionários.

Crítico procede do latim criticus, adaptação do grego kritikós, que julga, avalia e decide (Dic. Houaiss, 2009). Em língua portuguesa, tem denotação de relativo a crítica. Em  conotação, vale por grave, perigoso (Dic. Aurélio Ferreira, 2009). A expressão inglesa critical patient induz facilmente à sua tradução como “paciente crítico” (https://www.google.com.br/?gws_rd=ssl#q=%22critical+patient%22+tradu%c3%a7%c3%a3o). Nesse contexto, se pode, assim, considerá-la também como anglicismo.  

Todavia, bons revisores de redação jornalística chamam à atenção esses detalhes:

Grave é o estado do doente ou do ferido e não ele próprio. Por isso, não existem “doentes graves” ou “feridos graves” (E. Martins, O Estado de São Paulo: Manual de Redação e Estilo, 1997, p. 136). Não se dizc om referência ao estado de saúde de alguém, que esse alguém está grave e sim que seu estado é grave ou que passa mal  ou estámal e inexiste estado médico do paciente (L. Garcia, O Globo: Manual de Redação e Estilo, 2000, p. 170).

Também instrutos gramáticos observam:

Grave só pode ser o estado de uma pessoa, mas nunca a própria pessoa (A. Sacconi, Não Erre Mais, 1979, p. 77). O estado de saúde é grave, mas não existem doentes graves ou vítimas graves (Sérgio Nogueira Duarte da Silva. O Português do Dia-a-Dia: Como Falar e Escrever Melhor, 2004, p. 45). Quem emprega essa construção – O doente estava grave – por certo, não quer dizer que o doente estava sério, mas sim que estava passando mal. A construção em epígrafe, aliás muito empregada, contém, portanto, uma impropriedade flagrante. Não é o doente que é grave e sim a doença (L. Victoria, Como se Deve Dizer e Como não se Deve Dizer, 1963, p. 34).

Importa reconhecer que o doente tem personalidade psicossocial, a qual não se inclui no conceito de “grave” ou “crítica”. Reitera-se, portanto, que a doença ou a lesão pode ser grave, consumptiva, preocupante, maléfica, dolorosa, mortal, perigosa – não o indivíduo doente.

É importante, pelo aspecto, personalístico, humanitário e realístico, discernir doente e doença, bem como a necessidade médica de tratar ambos. A preocupação com o cumprimento de normas técnicas e obrigações profissionais voltadas apenas às doenças é questionável (O. F. Martins, Virtudes Profissionais do Médico, in: C. Urban, Bioética Clínica, 2003, p. 190). A bioética personalista sobreleva a pessoa humana como unidade corpo-espírito e esta como sua referência central. Nesse sentido, posiciona-a como patrimônio social (R. Paccini, Bioética Personalista Aplicada à Clínica, in C. Urban, Bioética Clínica, 2003, p. 55-62).   

Vale acrescentar que, na literatura médica, existem expressões que confundem o doente com sua doença ou com seu corpo, fato que não poderia ser confortável ao paciente. Nos prontuários e nos registros da web, podem ser encontradas expressões como “paciente neurológico sequelado”, por paciente com sequelas no sistema nervoso ou sensitivomotoras; “paciente fissurado” por paciente com fissura labial ou labiopalatina, “paciente fraturado” em lugar de paciente com fratura óssea, femoral, craniana; “paciente invaginado” por paciente com invaginação intestinal, “paciente laqueada”, em lugar de paciente com laqueadura tubária, “paciente agudo”, em vez de paciente com quadro agudo de alguma doença e outros casos. Lançar esses estigmas à personalidade do enfermo é indesejável. Dizem-se, então, adequadamente: Paciente em estado grave. Paciente em situação ou em estado clínico grave. Paciente com doença grave. Paciente com lesões ou feridas graves. Recomenda-se evitar também:  “enfartado grave”, “operado grave”, “gestante grave”, “lactente grave”, “cliente grave” ou crítico.

Observa-se ainda que é viciosa a expressão “estado de saúde grave”, uma vez que saúde significa propriamente ausência de doença e isso não poderia ser grave.

Em uma vista panorámica deste cenário, constata-senque, por seu vastíssimo uso, paciente crítico e paciente grave fazem parte do patrimôminio linguístico do nosso idioma e como fatos da língua não cabe apontá-los como erros já que a língua tem base convencional e é criada pelo povo. De fato, em estilo literário, como figura de linguagem (hipálage), por exemplo, se usa deslocar um adjetivo para outro substantivo na mesma frase para efeitos estilísticos (V. Bergo, Erros e Dúvidas de Linguagem, 1986. p. 135). Por exemplo, em lugar de passos de uma pessoa angustiada, diz-se passos angustiados de uma pessoa. (G. Giacomozzi e outros, Dic. de Gramática, 2004). Em vez de doente em estado grave se diz estado de um doente grave.

Contudo, em relatos formais, sobretudo nos documentais científicos, é preciso aplicar o idioma oficial em conformidade às normas redacionais e gramaticais da língua-padrão. Sabe-se que todo país precisa de uma norma linguística oficial, comum, sem a qual seria impensável o próprio estado (Hildo H. do Couto. O que é Português Brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 74). Nesse caso, orienta-se pela precisão dos termos, deixando-se de parte os registros coloquiais e figurativos. “Nos trabalhos científicos, emprega-se a linguagem denotativa, isto é, cada palavra deve apresentar seu sentido próprio, referencial e não dar margem a outras interpretações” (Maria Margarida de Andrade, Introdução à Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Atlas; 2003, p. 101). “Para o homem de ciência, para o homem de laboratório, tão exato e preciso deve ser o raciocínio quanto exata e precisa a expressão falada ou escrita em que ele se exterioriza; o descuidado, o confuso e o impróprio significam certamente o desconcerto e a confusão do pensamento” (Clifford Allbutt, apud Plácido Barbosa, Dic. de terminologia médica portugueza, 1917, p. 6,).

Diante dessas considerações, recomenda-se usar, em relatos científicos formais, paciente em estado grave ou em estado crítico em vez de paciente grave ou paciente crítico, sem que esses usos recomendem ou estimulem rejeições, radicalismos e inflexibilidades correlatas às outras formas existentes no idioma.

Simônides Bacelar

Médico, Hospital Universitário de Brasília - UnB

 



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