Abcesso ou abscesso?

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Simônides Bacelar

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Dec 30, 2015, 8:09:40 PM12/30/15
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QUESTÕES DE LINGUAGEM MÉDICA

 

Abcesso ou abscesso ?

 

Síntese. Abcesso e abscesso são grafias existentes na literatura médica e, assim, têm uso legitimado. Por essa razão não deve nenhuma dessas formas ser titulada como erro de grafia, mas ambas como formas variantes. Contudo, abscesso apresenta-se como feitio preferencial, sobretudo em registros formais, por ser mais usado, mais dicionarizado, ter base etimológica mais consistente e ser menos possível de levantar questionamentos.

 

Questões. Existem controvérsias a respeito das grafias abcesso e abscesso. No início do século XX, a forma abcesso era de uso comum, talvez por influência do francês abcés (Basílio, 1904. p 89). Segundo Victoria (1956), abcesso é a grafia correta. Em consideração, porém, à etimologia e à preferência atual na comunidade médica, é recomendável abscesso (Rezende, 1998).

 

Afirma Proença Filho (2003, p. 34) que as duas formas são admitidas, mas é de boa valia assegurar a presença do s da primeira sílaba e os dos ss da última. No vocabulário Ortográfico da Academia de Ciências de Lisboa, consta ab(s)cesso, que faz referência a uso facultativo do s (Oliveira, 1949).

 

O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001) averba as duas formas, mas, em abscesso, dá remissão para abcesso, o que mostra preferência por esta última forma.

 

O Aulete (1980) e o Mirador (1980) não trazem abcesso, apenas abscesso. No dígrafo sc, a supressão do s justifica-se pela inutilidade fonética dessa letra (Barbosa, 1917), e foi a simplificação fator proeminente nas reformas ortográficas já ocorridas, de modo que a escrita abcesso encontra-se averbada por excelentes vocabularistas como Cândido de Figueiredo, J. I. Roquete, Domingos Vieira, Silveira Bueno e Pedro Pinto, além de ser encontrada na literatura médica atual.

 

Bons dicionários, como o Aurélio (Ferreira, 2009) e o Houaiss (2009) dão abcesso com remissão a abscesso o que indica esta última como forma preferencial. O Houaiss (2009) registra abcesso como forma não preferencial de abscesso.

 

Outras fontes, como o Dicionário Médico Climepsi (Fonseca, 2012) e o Dicionário de Manuel Freitas e Costa (Costa, 2005) dão apenas abcesso. Segundo estudo de Rezende (2011), em 204 artigos indexados pela Bireme, 91,9% usaram abscesso.

 

É oportuno acrescentar que abcesso e abscesso são nomes presentes na literatura científica e médica e assim se lê em passos como:

 

Abcesso periodontal em paciente usuária de piercing lingual: relato de caso clínico (Ver Bras Odontol. 2007; 64(1/2): 49).

 

A ressonância magnética revelou lesão nos corpos vertebrais de T12 e L1 com abcesso paravertebral (Arq Neuro-Psiquiatr. 2002;60(1):142).

 

Outros dois com abcesso pélvico foram submetidos a drenagem (Ars Curandi. 1997;30:66).

 

Mal de Pott torácico com abscesso mediastinal (Arq Bras Neurocirug 1994;13:189).

 

Etimologia.

 

 

Quase todas as palavras da língua portuguesa, em sua forma atual, guardam intimidade com o respectivo étimo nos campos semânticos, fonéticos e gráficos, com ressalvas das letras k, w e y e grupos consonantais como ph, th, ch. Desse modo, a etimologia pode ser útil no estabelecimento de normas de usos.

 

Registra Adolpho Coelho (1890) que abcesso provém do latim abcessus, que advém de abcedere. Há outras interpretações. Em Quicherat (1876), há apenas abscessus. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, (Academia, 2001) dá abcesso e abscesso provenientes do latim abscessus. Ambas as formas, abcesso e abscesso, são oriundas do latim abscessus, matéria que se afasta do organismo (Machado, 1977), particípio de abscedere, afastar-se, abandonar; de ab, afastamento, e cedere, andar, ir embora (Basílio, 1904; Ferreira, 1996). Observa Figueiredo (1922, p. 215) que abscesso não é vício de linguagem e não se estriba mal na etimologia latina; que o grupo sci perde na pronúncia o s; de scena formou-se cena, de sciência, ciência; que a pronúncia é a lei suprema da grafia nacional; que do latim exsistire veio existir, de exsanguis veio exangue, de exstinguire veio extinguir. Conclui que a lógica e o bom senso mandam preferir abcesso a abscesso.

 

Importa considerar que, em latim, a, ab e abs são propriamente preposições, com o sentido de afastamento. Mas, em muitos casos, essas preposições agregaram-se ao termo ao qual se referem com função de prefixo. Como prefixo antes de elementos iniciados por c, p, q e t usa-se a forma abs (Ferreira, 1996), como em abscondere, aspostare (de abs e portare), absque, abstinere. Assim, de abscessus procede normalmente abscesso em português, não abcesso.

 

Pensa-se que abscesso vem primariamente do latim abscedere, afastar-se, mas não é bem assim. Procede do grego apostema, que tem o sentido de jogar fora, ou arrastar para fora como se tratasse de maus humores, o que passou para o latim com esse mesmo sentido como abscesso (Haubrich, 1977).

 

Tomar a etimologia como base para formação de termos técnicos científicos franqueia mais consistência para formar uma base sólida e perene, pois o étimo é imutável, com exceção dos casos ainda obscuros. Tomar como base o uso atual, ou mesmo o tradicional em alguns casos, tomar o que existe em determinado momento no âmbito das transformações dos sentidos de muitos nomes, terá base enfraquecida, pois estes sentidos podem ser modismos que se modificarão com o passar do tempo, o que equivale a fazer alicerces na areia. Ainda mais é certo que a tradução de termos formados com base etimológica servirá para uso, compreensibilidade e aceitabilidade em todas as línguas, cuja origem seja a mesma. A segurança etimológica dará também mais credibilidade às traduções para idiomas de outras origens.

 

É importante lembrar que o indo-europeu originou as línguas europeias atuais, o que reforça o papel da etimologia na formação e no uso das palavras. O sentido ou a grafia, tomados em certo momento diacrônico de um termo, variarão de acordo com a língua em que ocorre a transformação da forma ou do sentido da palavra. Esse tipo de neologismo não servirá adequadamente como tradução para outra língua como ocorre com abcesso, anemia severa, malformação e outros casos. 

 

Semântica. A definição de abscesso apresenta também desarmonia entre dicionaristas, autores médicos e especialistas sobre o tema.

 

Semântica diacrônica. Dicionários antigos como o Moraes Silva (1813), o Constâncio (1845), dão abscesso como tumor que contém pus. Como acumulação de urina ou matérias fecais fora das vias que lhes são próprias é uso tido como diacronismo, isto é, obsoleto (Houaiss, 2009).

 

Semântica sincrônica geral. O Houaiss (ob. cit.) dá abscesso como acumulação de pus numa cavidade formada acidentalmente nos tecidos orgânicos, ou mesmo em órgão cavitário, em consequência de inflamação. O Aurélio consigna abscesso como acúmulo de pus em uma cavidade formada em consequência de processo inflamatório em um ou mais locais de órgãos ou em cavidades do corpo.

 

Semântica sincrônica especializada. Ambos os nomes têm o mesmo significado de inflamação aguda ou crônica com coleção localizada de pus, geralmente causado por bactéria piogênica sediada profundamente no tecido (Robbins, 1975, p. 79) ou segregação seropurulenta um exudato com células inflamatórias degeneradas, tecido necrosado, micro-organismos, gases formados por estes, vermes (helmintos) contida em uma cavidade neoformada por tecido inflamado por vezes com fibrose. Diferencia-se de empiema por este se formar em cavidades preexistentes como a pleural e a peritoneal (Rey, 2003). No entanto, outros dicionaristas médicos dão abscesso como coleção purulenta em espaços limitados que separam um tecido de outro, como alvéolos dentários, vias biliares, extradural, intradural, mastoideo, lacrimal, orbital, paranefrítico, subfrênico, espermático, subaponeurótico, sudoríparo, tubovariano, timpânico, vítreo. Há também os abscessos cujas coleções purulentas preenchem os espaços residuais formados por intervenções cirúrgicas. Diferencia-se de fleimão, celulite, erisipela por terem essas lesões coleção seropurulenta difusa (Coutinho, sem data).

 

Ortografia. Ambos são nomes abonados pela ortografia oficial (Academia, 2009). Em muitos casos, por não ter pronúncia em nosso falar, o s da forma latina desapareceu na forma vernácula. Ex.: scientia > ciência; exscribere > escrever; exsultare > exultar; exstirpare > extirpar; exstinguire > extinguir; exsistire > existir. Mas o grupo sc, no interior do nome, em quase todos os casos, permaneceu até nossos dias: fascia > fáscia; fascinare > fascinar; conscientia > consciência; conscius > cônscio. Convém frisar que os lusitanos pronunciam diferentemente os dois nomes, isto é, abxesso em relação à grafia abscesso e, em relação a abcesso, a dicção é semelhante à brasileira.

 

Outras línguas. Em francês, se escreve abcés (mais usado) e abscés; em inglês, abscessus, abcess (menos usados) ou abscess; em castelhano, abceso (menos usado) e absceso; em italiano, ascesso. A frequência das formas mais usadas ou menos usadas foi observada pelo número correspondente de fontes nas páginas de busca da internet (www.bireme.br, Google Acadêmico).

 

Sinônimos e expressões correlatas. Apostema ou postema (do grego apostema), coleção purulenta, pústula (abscesso pequeno).

 

Conclusão. Por todo o exposto, ambas as formas, abcesso e abscesso, são legítimas e usáveis. Mas, nacionalmente, a preferência está em abscesso.

 

Referências

 

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, 5a ed., São Paulo: Global, 2009.

 

ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da língua portuguesa contemporânea. Portugal: Editorial Verbo, 2001.

 

AULETE, C.; GARCIA, H.; NASCENTES, A. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3a ed. Rio de Janeiro: Delta, 1980.

 

BARBOSA, P. Dicionário de terminologia médica portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1917.

 

BASÍLIO, P. A. Vícios da nossa linguagem médica. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger; 1904.

 

BUENO, F. S. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Lisa, s.d.

 

COELHO, A. Diccionario manual etymologico da língua portugueza. Lisboa: P. Plantter, 1890.

 

CONSTANCIO, F. S. Novo diccionario critico e etymologico da língua portuguesa. 3ª ed. Paris: Angelo Francisco Carneiro, editor proprietário, 1845.

 

COSTA, M. F. Dicionário de termos médicos. Porto, Portugal: Porto Editora, 2005.

 

COUTINHO, A. C. Dicionário enciclopédico de medicina. 2.a ed. Lisboa: Argo Editora, s. d.

 

FERREIRA, A. B. H. Coordenação: FERREIRA, M. B.; ANJOS, M. dos. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4.a ed. Curitiba: Editora Positivo, 2009.

 

FERREIRA, A. G. Dicionário de Latim Português. Portugal: Porto Editora, 1996

 

FIGUEIREDO, C. Novo dicionário da língua portuguesa. 4.a ed. Lisboa: Sociedade Editora Arthur Brandão, 1926.

 

FIGUEIREDO, C. Vícios da linguagem médica. 2.a ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1922. p. 215.

 

FONSECA, F; FALCATO, J. A.; ANDERSEN, F.; ALMEIDA, J. N.; TOJINHA, M. Dicionário médico Climepsi. Lisboa: Climepsi, 2012.

 

HAUBRICH, W. S. Medical meanings: a glossary of word origins. Philadelphia: American College of Phisicians, 1997.

 

HOUAISS, A.; SALLES, V. M.; FRANCO, F. M. M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1.a ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

 

MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3.a ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1977.

 

MIRADOR INTERNACIONAL. Dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1980.

 

MORAES Silva, Antonio de. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813.

 

OLIVEIRA, J. Medicina e gramática, Rio de Janeiro: edição do próprio autor, 1949.

 

PINTO, P. A. Dicionário de termos médicos. 8.a ed. Rio de Janeiro: Editora Científica, 1962.

 

PROENÇA FILHO, D. Por dentro das palavras da nossa língua portuguesa. 2.a ed. São Paulo: Record, 2003.

 

QUICHERAT, l.; DAVELUY, A. Dictionnaire Latin-Français. Paris: Librairie Hachette, 1876

 

REY, L. Dicionário de termos técnicos de medicina e saúde. 2.a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003.

 

REZENDE, J. M. Linguagem médica. 2.a ed. Goiânia: Editora UFG, 1998.

 

REZENDE, J. M. Linguagem médica. 4.a ed. Goiânia: Editora Kelps; 2011.

 

ROBBINS, S. L. Patologia estrutural e funcional. Rio de Janeiro: Interamericana, 1975. p. 79.

 

ROQUETE, J. I. Diccionário da língua portugueza de José da Fonseca. Paris: Guillard, Aillaud, 1848.

 

VICTORIA, L. A. P. Dicionário de dificuldades, erros e definições de português. 2.a ed. Rio de Janeiro: Pongetti, 1956.

 

VIEIRA, D. Grande diccionario portuguez ou thesouro da língua portugueza. Porto: Editores Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, 1873.

 

Fonte: http://files.bvs.br/upload/S/0101-5907/2013/v27n1/a3584.pdf

 

Simônides Bacelar

Brasília, DF

 

 
 
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