Notas sobre o primeiro dos QUATRO VALES, obra de Bahá'u'llah, de profundos sentidos espirituais e místicos
Por Guilherme Bitencourt
E OS PEREGRINOS SÃO DAQUELES QUE BUSCAM (TALIBÁN) a Caaba do Ser Almejado (maqsúd), essa condição pertence ao Eu – mas àquele Eu que é “O Eu de Deus que permeia todas as Suas leis.”
Taliban, plural de talib, que no árabe significa estudante, ou como no texto traduzido pelo autor “daqueles que buscam a Caaba do Ser Almejado (maqsud)”. Baha’u’lláh se dirigindo a Shaykh Abdur Rahman Talabani al-Kirkuk, que foi um representante do sendeiro místico ou caminho (tariqa) Qadiriyyah, a primeira ordem Sufi que veio a existir no mundo, fundada sob a figura do Santo Sufi persa Shaykh Abdu’l Qadir al-Jilani, em Bagdá, no século X da era cristã. Baha’u’lláh usa termos especificamente sufistas para lançar luzes sob o Shaykh (Kirkuk) e fazê-lo entender o propósito de Sua Consagrada Missão. Acredito, portanto, que Baha’u’lláh quando diz logo em seguida, “essa condição pertence ao Eu – mas àquele Eu que é – O Eu de Deus que permeia todas as Suas leis” está se referindo não à alma animalesca que os Sufis chamam de “Nafs-al-Ammara”, senão ao ser mais elevado, o “Nafs al-Safiyyah”, a alma purificada onde o ser alcança a libertação da dualidade, aceita a vontade de Deus, se contentando e ficando feliz com tudo. O indivíduo passa, a partir de então, a sentir os eflúvios divinos como raios de sol que reverberam no espelho polido de seu coração. Aonde quer que vos dirijais, notareis o Eu de Deus que permeia todas as Suas Leis. O “Eu” manifesto em cada palavra que se traduz ou se transforma em algo de acordo com a Vontade Divina (Mashi'a), bastando Deus dizer “seja” e então vem à existência (kun faya kun).
Nesse plano, o Eu não é rejeitado, mas amado; é fonte de satisfação e não deve ser evitado. Ainda que, no princípio, esse plano seja região de conflito, ao seu fim ele dá acesso ao trono de esplendor. Assim como foi dito: “Ó Amigo; ó Abraão do dia atual! Mata essas quatro aves de rapina do mal”, para que, após a morte, o enigma da vida possa ser decifrado.
Tanto o Sufismo e o ‘Irfan, o principal foco é a relação entre o homem e Deus a partir de dentro do coração do indivíduo. Entende-se coração aqui não como simplesmente o órgão que bombeia sangue para as partes do corpo, mas como a origem das intenções e emoções, a causa por trás de todos os intuitos humanos. O cérebro coleta todas as imagens físicas e o coração aqui é o tradutor. Ambos, coração e cérebro, trabalham juntos, mas o coração é onde gera o verdadeiro conhecimento. O Eu nesse plano, que é uma região de conflito, busca se estabelecer no Trono e para isso é necessário passar por esse vale. O vale apresenta perigos com várias armadilhas que devem ser superadas durante o caminho. Então o “seu fim dá acesso ao trono de esplendor”, significando que as armadilhas foram superadas, permitindo o acesso ao trono. O Eu de Deus então se estabelece no coração puro. Por isso Baha’u’lláh faz referência às palavras do Mathnawi de Mevlana Rumi, “Ó Amigo, ó Abraão do dia atual! Mata essas aves de rapina do mal”, que é a explicação do versículo corânico sobre as quatro aves que foram “ressuscitadas” por Deus a pedido do Patriarca Abraão. As aves são definidas de acordo com o Mathnawi como o pato da gula, o galo da concupiscência, o pavão da ambição e da ostentação, e o corvo dos maus desejos; isso compõe o texto de várias histórias. Na primeira delas um homem corpulento e infiel de maus hábitos é hospedado na casa do Profeta Muhammad onde a gula é o seu principal defeito. No final da história ele envergonhado acaba se arrependendo e renunciando à sua gula pelo alimento espiritual oferecido pelo Mensageiro, levando todos a refletir, dando testemunho da luz espiritual interior. Baha’u’lláh termina escrevendo com Seu consagrado cálamo, “para que, após a morte, o enigma da vida possa ser decifrado”, significando que, através da ausência de perturbações causadas pela mera complacência com o apetite desregrado por paixões soltas, a alma adquire o necessário para a sua jornada pelos reinos da vida, desbravando outros mundos espirituais no Reino de Abhá!
Esse é o plano da alma que é aceita por Deus. Assim como diz o versículo: “Entra para junto de Meus servos, E ingressa em Meu paraíso.”
A alma, aqui, encontra o estado de paz e o discurso é dirigido ao eu espiritual (nafs al-ruh) através do qual o eu natural tem sua vida. A alma está satisfeita com Deus devido ao seu repouso tranquilo (sukun) em Deus, Todo-Poderoso e Majestoso. A alma alcança a vida com a própria Vida (hayat al-Hayat) a subsistência permanente através da própria Subsistência Permanente.
Esta condição possui muitos sinais, incontáveis provas. Daí ter sido dito: “Nós, seguramente, mostrar-lhes-emos os Nossos sinais no mundo e dentro de si próprios, até que se lhes torne manifesto ser Ele a verdade” e que não há outro Deus salvo Ele.
Baha’u’lláh faz menção ao versículo 41 da Surata Al-Fussilat (Capítulo Os Detalhados) do Alcorão, onde cita dois sinais. O primeiro sinal aqui tem um significado específico (khass) e outro geral (‘amm). O significado do sinal em geral é a morte do corpo físico (Khilqa), “Nossos sinais no mundo” referente à forma natural (jibilla). O específico é a morte dos prazeres mundanos, das luxúrias do eu inferior (shahawat al-nafs), sendo aquele dentro de si próprios. É através desses sinais que “se tornará manifesto ser Ele a verdade e que não há outro Deus salvo Ele”.
É necessário, pois, que cada um leia o livro de seu próprio Eu, e não tratados de gramática. Eis o motivo pelo qual Ele afirmou: “Lê teu livro: não é necessário mais que tu próprio para te condenares neste dia.”
“O livro de seu próprio Eu” é a consciência que é a nossa mediadora. O versículo corânico mencionado por Baha’u’lláh ao Shaykh Abdur Rahman al-Talabani, se refere a se auto avaliar, pesando nossas ações antes de serem pesadas quando a morte sobrevier. Deixando os tratados de gramática que seguem antigas tradições para seguir o Manifestante Divino dessa época neste dia que marca o juízo final. Logo após o sol atingir seu zênite, começa a se declinar, até que se põe completamente no horizonte e a escuridão toma conta de tudo até a estrela surgir novamente com todo seu brilho, esplendor e glória.
Conta-se uma história a respeito de um sábio místico que partiu em viagem na companhia de um erudito gramático. Chegaram eles à praia do Mar da Grandeza. O sábio, invocando a Deus, prontamente jogou-se às ondas, mas o gramático ficou perdido em seus raciocínios, os quais eram como palavras escritas n’água. O sábio chamou por ele: “Por que não segues adiante?” Ao que o gramático respondeu: “Ó irmão, não ouso avançar mais. É necessário que eu retorne!” Então o sábio bradou: “Esquece o que leste nos livros de Síbavayh e Qawlavayh, de Ibn-i-Hájib e Ibn- i-Málik, e atravessa as águas!”
O Mar da Grandeza é a Graça de Deus manifestada em Baha’u’lláh. O sábio místico é aquele a quem Deus guia e o erudito gramático é aquele que seu intelecto se tornou uma barreira entre ele próprio e Deus. Os eruditos, ou acadêmicos, muitas vezes buscam provas em seus livros e por conhecerem determinado número de tradições (ahadith) e da lei (shar') tornam-se soberbos e confusos, correndo o risco de serem desorientados, perdidos em seus raciocínios que são como "palavras escritas n'água" diante do Mar da Grandeza da Revelação Divina.
O sábio, então, brada pedindo para esquecer os eruditos como Sibawayh, gramático persa da era medieval, autor do livro mais antigo em árabe de gramática e linguística, conhecido apenas como al-kitab (o livro) em cinco volumes. Considerado um dos maiores linguistas de todos os tempos, por biógrafos árabes do século X, como Ibn Nadhim e Abu Bakr al-Zubaydi e também pelo erudito muçulmano Ibn Khallikan do século XIII. Ibn Qawlwayh, um jurista e sábio xiita de ahadith (tradições islâmicas) do século VIII. Famoso por suas viagens para estudar tradições e por ter narrado muitas não apenas acerca de Muhammad, como também dos Imames Jafar As-Sadiq e Musa al-Kadhim, escrevendo muitos livros. O sábio muçulmano da escola de jurisprudência hanbalita (fiqh hanbali) Ibn Rajab, muito famoso entre os muçulmanos sunitas por suas obras nos campos das ciências islâmicas como exegese corânica, explanações acerca de hadith, jurisprudência, biografia e relatos históricos entre outras. Sua obra mais conhecida é o livro fath al-Bari (Vitória do Criador) a qual ele não terminou devido ter morrido. E por último o famoso gramático andaluz Ibn Al-Malik, que não deve ser confundido com o companheiro de Muhammad, Anas Ibn Malik ou com o fundador da escola malikita de jurisprudência sunita, Malik Ibn Anas e com o califa omíada Abdal Malik Ibn Marwan. Ibn Al-Malik foi um gramático árabe nascido em Jaén na Andaluzia (Espanha atual) deixando sua terra natal para viver na Síria onde começou a ensinar em Aleppo, Hamat e por fim se estabeleceu em Damasco onde teve o período mais produtivo de sua vida.
Esses sábios são fruto do Ramo da Dispensação anterior, assim como um aluno pode se apegar ao professor da série anterior, um homem erudito se apega a uma quantidade de livros escritos por sábios que já não acompanham mais o mundo à sua volta, resistindo as mudanças que acontecem ao seu entorno. Por seu apego a seus estudos e cargos, podem levar seu ego envenenado pelo orgulho a negar o Manifestante Divino e o Oceano de Suas Palavras.
A morte do ego é aqui necessária,
Não a tal arte da composição:
Esforça-te, pois, por seres nada
E caminha sobre o mar, então.
O ego aqui se refere à alma animalesca (nafs al-Ammara), que assume diversas formas no mundo mortal (‘alam-I-nasut). O orgulho oriundo da “arte da composição” deve ser aniquilado em Deus (Fana-fi-llah), reconhecendo sua efêmera condição, e então caminhar sobre o mar das Palavras proferidas pelo Manifestante Divino.
Da mesma forma, está escrito: “E não sejais dos que esqueceram a Deus, aos quais Ele, por isso, fez que esquecessem de si mesmos. Eles são dos iníquos.”
Os indivíduos que se esquecem de Deus são levados a cometer más ações que levam a outras más ações, se afastando do caminho indicado por Deus e Seu Manifestante. Tais indivíduos são os iníquos que se perdem em seus próprios prazeres desmedidos, caindo em um ciclo vicioso de paixões. Por outro lado, aqueles que se entregam ao caminho do bem, praticam boas ações e são levados a outras boas ações. Sempre meditam, ponderando sobre seus comportamentos, sendo humildes e desapegados de sua existência nesse plano mundano.
Guilherme Bitencourt
O texto acima é resultante de aprofundados estudos, mas não representa a opinião oficial da Fé Bahá'í.