(Público, 15-04-2008, Ana Cristina Pereira, http://www.publico.clix.pt/)
Não ficou provada a ofensa à integridade
física da transexual, apenas o omissão
de auxílio
O juiz João Grilo trata-o por "senhor
Vítor". "Senhor Vítor"
completou há pouco 18 anos e ouve a leitura
da sua sentença. Não ficou provado
que agrediu Gisberta, ficou provado que lhe negou
auxílio dias a fio - um acto de "crueldade
inimaginável", pelo que "não
é possível suspender a pena ou substituí-la".
Oito meses de prisão efectiva. Visto de
trás, o rapaz, alto, magro, parece imóvel,
sem reacção.
Gisberta acumulava formas de exclusão.
Era indocumentada, transexual, trabalhadora do
sexo, sem-abrigo, toxicodependente, seropositiva,
tuberculosa. Em Fevereiro de 2006, ao longo de
quatro dias, 14 rapazes deslocaram-se ao prédio
inacabado no qual se refugiara, no Campo de 24
de Agosto, no Porto. Bateram-lhe com paus, com
pedras, com os pés. No fim, destruíram
a sua barraca, atiraram-na para um fosso de sete
metros.
O juiz criticou os depoimentos dos 13 menores
- já julgados pelo Tribunal de Família
e Menores do Porto. Classificou-os de "vagos",
"imprecisos", "omissos", "desconexos".
Acusavam "vastas" falhas de memória,
só sabiam que Vítor nada fizera,
disso lembravam-se.
O magistrado qualificou o discurso do réu
de "incoerente" e as suas desculpas
de "ridículas": não accionou
o 112 porque pensariam que estava a gozar, a ambulância
não conseguiria chegar ali, temia que lhe
imputassem responsabilidade. "Se estava tão
incomodado, porque foi ao local quatro vezes?"
O Tribunal de São João Novo "não
ficou convencido" - "não acreditou
nos menores", nem no "senhor Vítor".
"Face à míngua de prova",
porém, "não foi possível"
apurar a sua intervenção concreta
nas ofensas à integridade física.
Acabou por condená-lo por omissão
de auxílio. Ele viu, ao longo de vários
dias, "um ser humano a definhar, a sofrer".
Podia ter chamado o guarda, podia ter contado
a um monitor das Oficinas de São José,
onde ainda agora vive. Se tivesse sido hospitalizada,
Gisberta teria recuperado em duas semanas. Se
tivesse sido ali abandonada, teria morrido. Os
rapazes optaram por atirá-la ao fosso e
ela afogou-se. "Quando foi atirada, nem se
apercebeu, graças a Deus".
O colectivo concluiu que "a culpa do senhor
Vítor é intensa", "merecedora
de censura ética elevadíssima".
Não se equipara à de um atropelamento
e fuga (aí a decisão toma-se numa
"fracção de segundo").
Há uma frase do réu que ainda ecoa
no cérebro dos magistrados: "Também
atiravam pedras a cães."
"A sociedade está perplexa com a quantidade
enorme de casos em que menores têm comportamentos
de uma crueldade enorme", enfatizou João
Grilo. Lembrou o bullying (violência, intencional
e repetida, praticada por um ou mais indivíduos
contra um indivíduo, perante a inércia
ou indiferença alheia), lembrou o caso
Carolina Michaëlis, a "atitude de uma
série de jovens que se divertem a ver alguém
sofrer", como "é o seu caso".
O "senhor Vítor" não mostrou
emoção e "a emoção
às vezes conta". Manteve-se "distante,
como se não fosse nada" com ele, "mas
era". Por isso, dentro de uma moldura penal
até oito meses, o tribunal aplicou-lhe
oito meses. Como "talvez oito meses em Custóias
seja um sofrimento muito grande", pode cumpri-los
em casa. Há que reduzir os dois meses e
cinco dias de prisão preventiva cumpridos.
13 menores foram condenados a várias penas,
até um máximo de 13 meses de internamento
tutelar.