Voce decide Freud explica

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Liza

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May 11, 2007, 3:38:36 PM5/11/07
to Grupo de Estudos de Hermenêutica Jurídica
Você Decide...e Freud Explica
Maria Rita Kehl
Artigo publicado no site da Fundação Sistema Estadual de Análise de
Dados - Publicações O Preconceito e no livro Psicanálise e o
Contemporâneo, Samira Chalhub (org.) Hacker Editores, Cespuc, 1996
A dobradinha "você decide e Freud explica" sintetiza, a meu ver, duas
formas de alienação características da subjetividade moderna: de um
lado, o delírio de autonomia que consiste em acreditarmos que não
devemos prestar contas a ninguém a respeito de nossas escolhas, nem
pagar qualquer preço por elas. De outro, a esperança de que uma certa
psicanálise venha nos socorrer para fundamentar e desculpar nossos
atos através da explicação das motivações inconscientes, que serviriam
assim como justificativa para o exercício da soberania narsísica do
cidadão reduzido ao estatuto de consumidor.
A psicanálise e a publicidade funcionam, assim, como duas técnicas
privilegiadas de produção de subjetividade. Em entrevista ao
psicanalista Contardo Calligaris para o caderno Mais! do jornal Folha
de São Paulo (5/11/94), o fotógrafo Toscani, responsável pelas
campanhas publicitárias da Benetton, chamou a atenção para o fato de
que os gastos com publicidade nos países ricos, hoje, são cerca de
duas vezes superiores aos gastos com educação pública. Guardadas as
devidas diferenças orçamentárias, o número revela que a publicidade é
mais presente e mais eficiente como produtora de subjetividade do que
a formação escolar tradicional, no Ocidente.
A publicidade convoca os sujeitos a apostar em sua onipotência. O
sujeito das "culturas do narcisismo" no dizer de Christopher Lasch,
adaptado às condições desejantes das grandes sociedades de mercado
(independente de suas condições materiais), acredita que tem uma
espécie de direito natural ao desfrute de todos os bens que a
publicidade lhe oferece ou, pior ainda, acredita que tem uma espécie
de dever de desfrutar deles. No discurso publicitário, evidentemente,
o dever de gozar suplanta toda interdição ao gozo que funda as
sociedades humanas - suplanta até mesmo a dimensão fundamental do
Princípio de Realidade, que nos ensina que nenhum desfrute é possível
sem um adiamento inicial, seguido de um certo investimento de,
digamos, trabalho físico ou mental. O sujeito onipotente da Cultura do
Narcisismo vive um delírio semelhante ao que Freud descreveu como o
estado psíquico regido pelo Princípio do Prazer: sem história, sem
mediação de tempo e esforço entre desejar e obter, sem dívida para com
nenhum passado, nenhuma instância paterna. É o self-made-man
imaginário (como todo self-made-man), que se acredita sem outro
compromisso a não ser com o próprio gozo, ao qual a mídia publicitária
- ou a mídia em geral, já que toda mídia é pautada pelos imperativos
da publicidade - apela incessantemente.
Ora, gozar plenamente é tão impossível ao ser humano quanto renunciar
completamente ao gozo, mas o sujeito contemporâneo não sabe disto -
esta é a dimensão de sua alienação que chamei de "você decide", quando
a "decisão" se inscreve não no registro político da cidadania
(dimensão construída coletivamente) mas no registro privado do
consumo. Esta forma de alienação exige o recalque da dimensão
simbólica que sustenta as formações sociais. O sujeito das culturas do
narcisismo se esquece de que até mesmo a liberdade de escolhas de que
desfruta hoje é fruto de uma história de trabalho e sacrifícios
humanos - encarnados e atualizados nas mercadorias.
O esquecimento é necessário para produzir a dimensão imaginária de um
gozo sem dívidas e sem limites. O consumidor contemporâneo representa
a si mesmo como um eterno filho do presente, sem história e sem lei,
regido por um pastiche do Princípio do Prazer e voltado para um futuro
imediato que só lhe promete mais mercadorias. Na velocidade própria
das sociedades industriais sustentadas por uma produção de tecnologia
que ultrapassa os indivíduos, tudo parece "caído do céu": os objetos
não têm história nem parecem encarnar um capítulo da grande construção
das sociedades humanas.
A filósofa Hannah Arendt chama a atenção para o fato de que, ao
contrário do que as aparências poderiam indicar, o preço pago por este
esquecimento ativo das nossas origens é de conformismo e resignação em
relação às condições do presente, já que todo desejo de mudança,
apartado da consciência do que nos determina, se esgota numa rebeldia
inútil. Ou na crença de que nada se pode fazer para transformar o que
está posto, pois ignoramos que o que está posto foi, algum dia,
construído por nossos antepassados. Arendt escreve que somos
prisioneiros das tradições que recalcamos: "o fim de uma certa
tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais
percam poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes
parece que este poder das noções e categorias cediças e puídas torna-
se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se
distancia da memória de sua origem. Ela revela toda sua força
coercitiva somente depois de seu fim, quando os homens nem ao menos se
rebelam contra ela". Ao que está se referindo esta passagem, senão ao
poder de "eterno retorno" próprio do recalcado? O texto de Hannah
Arendt não faz um apelo conservador pela manutenção das tradições; faz
um apelo ao desesquecimento das origens do presente, do caráter
histórico (portanto mutável) de situações que tendemos a considerar
como naturais e imutáveis.
Uma das respostas a esta forma de alienação contemporânea é a neurose.
Por que as sociedades modernas produzem culpa e neurose, se elas
apelam incessantemente para que o sujeito goze sem culpa e seja feliz?
Por que as formações sociais não sustentam mais os sujeitos, escreveu
Freud em Totem e Tabu. Em sociedades arcaicas, as estruturas
simbólicas determinavam os destinos dos sujeitos. Laços de parentesco,
a posição dentro da família, origem de classe, etc, decidiam pelo
sujeito, em grande parte, a vida que ele deveria ter. A neurose se
produz quando o sujeito se acredita senhor de seu destino, e
inteiramente responsável (portanto culpável) pelo que fizer dele.
Penso que esta esperança moderna contém um germe de libertação
individual - vivemos aliás em sociedades do individualismo - mas
contém também as condições para que o oposto se realize, o
aprisionamento dos sujeitos na culpa neurótica pelo que não consegue
realizar. Não quero me aprofundar aqui sobre todas as condições de
produção da neurose, mas apontar para uma delas, a meu ver
fundamental: o recalque da dimensão simbólica que transcende os
indivíduos e, em larga medida, ainda determina seus destinos. O
sujeito moderno é neurótico porque se acredita soberano e o que é
pior, acredita que a soberania é condição de sua liberdade. Assim, ele
está sempre angustiado diante de um excesso de responsabilidade não
para com os outros mas para consigo mesmo - só o reconhecimento do
Outro, da dimensão coletiva que também determina sua vida e delimita
seu destino poderia aliviá-lo deste sofrimento, desta eterna culpa por
não conseguir ser tudo, possuir tudo, gozar de tudo.
A psicanálise, outra técnica moderna de produção de subjetividade, vem
sendo convocada pela mídia para resolver este impasse, da pior maneira
possível, como se lhe coubesse inventar uma solução de compromisso
entre o imperativo do gozo e a angústia neurótica dos sujeitos, que
nem ao menos entendem por que não conseguem gozar da herança que lhes
foi legada pela história. Nas últimas décadas, a mídia vem tentando
transformar a psicanálise numa espécie de panacéia consoladora das
frustrações e/ou legitimadora das transgressões que se cometem em
obediência ao imperativo do gozo.
A psicanálise substitui as ciências sociais como fantasia de panacéia
universal na medida em que o homem social, político, vai sendo
substituído pelo homem psicológico. É claro que os sujeitos das
culturas do narcisismo são tão sociais quanto quaisquer outros, mas
têm que se acreditar livres e soberanos para tudo desejar e tudo
consumir.
A mídia recorre à psicanálise em busca não de intervenções que
destruam esta forma de alienação, mas de explicações apaziguadoras da
angústia que a onipotência produz. "Você decide e Freud explica" seria
a dobradinha ideal para apaziguar a má consciência do homem moderno
sem estragar sua condição de criança mimada do discurso publicitário.
Em nome de uma explicação "freudiana", tudo é permitido. A idéia de
que a verdade freudiana do desejo é passível de realização e
reconhecimento no mundo das mercadorias é um subproduto da banalização
da psicanálise pela mídia, que busca num certo discurso psicologizante
legitimar a infantilidade de seu próprio público. Do mesmo modo, as
ideologias neoliberais banalizam os direitos de cidadania dos
indivíduos, confundindo-os com direitos do consumidor - o que
significa que os que estão abaixo de um padrão significativo de
consumo, não possuem direito algum.
No Brasil, particularmente, o enfraquecimento das instituições que
deveriam sustentar a lei e zelar por seu cumprimento para todos sem
exceção, contribuiu para esta passagem tipicamente moderna, em que os
conflitos que deveriam se dar entre os indivíduos e as instâncias
públicas se transformam em conflitos íntimos, entre instâncias
psíquicas subjetivas. Aquilo que deveria ser decidido fora da
subjetividade, pelo temor à lei ou pelo enfrentamento entre os que
transgridem e os que defendem a lei, transforma-se num drama subjetivo
cuja solução deve ser "explicada" pela psicanálise. Dostoiévski
antecipou este mal-entendido moderno criando o jovem Raskólhnikov,
compelido a praticar um crime, qualquer crime, para comprovar a
liberdade que lhe conferia sua superioridade intelectual, livre das
amarras terríveis do catolicismo russo.
Se o pacto simbólico foi esquecido - ativamente esquecido,
esquecimento que a mídia produz diariamente - ou desqualificado; se a
dimensão coletiva das interdições que sustentam a vida em sociedade
está obscurecida pela onipotência das elites que se acreditam acima da
lei; se todos os indivíduos são igualmente convocados a gozar de
privilégios que por sua própria natureza excluem a grande maioria,
estão dadas as condições para a expansão, no melhor dos casos, do
conflito neurótico - no pior, da perversão dos laços sociais. Se cada
indivíduo vive suas escolhas como se fosse soberano, às custas de
todos os seus iguais, paga por isto o preço altíssimo de se ver
destruindo os laços sociais que o sustentam.
Por fim, gostaria de sugerir alguns preconceitos produzidos em
consequência deste mal-entendido contemporâneo. Em primeiro lugar, já
que todos são convocados para gozar de privilégios - o que seria
impossível - logo se estabelece uma distinção entre quem goza e quem
não goza nas sociedades de consumo, implicando numa diferença de
qualidade entre os sujeitos: capazes e incapazes, competentes e
incompetentes até, no limite da perversidade, merecedores e não
merecedores (de privilégios, de excessos, etc). A sociedade se divide
entre os que "conquistam" o direito de gozar e os outros, otários, a
serem usados e abusados pelos mais espertos.
Em outras palavras: quem é e quem não é cidadão, no sentido definido
pela Declaração dos Direitos do Homem (que fundou a modernidade!),
passa a ser decidido em termos de quem é e quem não é consumidor. No
Brasil isto fica ainda mais terrível , uma vez que cerca de um terço
da população está abaixo dos padrões de consumo considerados mínimos
pelas pesquisas de mercado - abaixo do que as empresas de publicidade
chamam de "classes C e D". Excluídos tanto do "você decide" quanto do
"Freud explica", estes milhões de brasileiros, estes absolutamente
outros, parecem não pertencer à mesma ordem simbólica que nós - não
sendo consumidores, também não seriam cidadãos.
Assim, o maior preconceito em vigor no Brasil, hoje, não é de raça,
gênero ou credo - é o preconceito contra os pobres. A palavra deve ser
politicamente incorreta, mas já que convivemos tranqüilamente com o
fato, ela não deveria nos chocar: estamos convencidos de que os que
não consomem, valem menos do que nós. Junto a isto, cria-se um
preconceito contra todos os projetos que ainda chamaria de
esquerdistas, isto é, que partem do ideal iluminista de que uma
sociedade deva ser capaz de criar soluções coletivas, racionais, que
sacrifiquem privilégios individuais a favor de direitos democráticos.
Diante do imperativo do gozo, tais ideais parecem ingênuos,
fantasiosos. Já nos esquecemos que até mesmo os privilégios
"conquistados" por uma elite, hoje consolidada, na sua origem dependeu
de condições coletivas favoráveis - ou, o que é pior, de uma certa
prática consentida de apropriação de bens públicos.
O esquecimento nos condena a uma eterna indiferença, perturbada
somente pela angústia que nos avisa que nenhuma situação de
privilégios dura para sempre. Nos condena a um estado de adolescência
permanente, impotente e ansiosa, em que cada um se acredita sempre
capaz de, sozinho, partir do zero e conquistar o mundo - e quanta
culpa sentimos ao ver que isto não acontece! Esta adolescência
envelhecida do homem contemporâneo, acompanhada do medo pânico de
nossos únicos limites naturais- o envelhecimento, a morte - não
oferece nenhum porto onde possamos ancorar ou de onde zarpar o navio
de nossos sonhos, já que nos rouba a dimensão coletiva e histórica a
que pertencemos. Assim, até os mais belos sonhos se transformam em
delírios narcísicos, impotentes na medida justa da nossa fantasiosa
onipotência. Termino com um verso da poeta Ana Cristina Cezar sobre a
adolescência: "É sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço".

sgsouza

unread,
May 14, 2007, 4:01:54 PM5/14/07
to Grupo de Estudos de Hermenêutica Jurídica
Prezados Colegas,

Ao abrir uma discussão sobre o artigo "Você decide Freud explica", a
profª Lisa nos presta ótima oportunidade para uma auto-análise sobre o
nosso papel dentro da formação social em que vivemos. Acostumados com
a rotina de nosso cotidiano, vivemos numa euforia coletiva. A
ideologia capitalista nos governa, dela somos prisioneiros e estamos
constantemente vigiados e advertidos através de seus instrumentos;
agentes de controle que do interior de suas salas, mantém-se soberanos
sobre uma sociedade de produção e meios de comunicação em massa que
determinam novas formas de comportamento. No trabalho, na escola ou
mesmo na companhia de amigos estamos sempre discutindo, comendo ou
vestindo a mídia. Esse desejo insaciável de prazer não pode ser mais
contido, pois as constantes renovações nos submetem ao "dever querer",
sem que isto nos faça falta.
Em sua recente visita ao Brasil o Pontífice Papa Bento XVI, não
condena a globalização mas critica o capitalismo, o marxismo, e a
sociedade de consumo, por não cumprirem o seu papel de trazerem a
justiça social, muito pelo contrário, abandonam a moralidade e a
valorização da vida humana.
Um bombardeio de informações fragmentadas cuidadosamente construídas
para atender aos ditames da ideologia de uma pequena parcela da
sociedade, assola um público formador de opinião, que está indefeso
numa luta desigual, onde a sua educação é insuficiente para discernir
entre o certo e o errado. Assim compram todas as idéias, todos os
produtos, pagam caro para aceitarem a si mesmos. Bem descrito no texto
de seu artigo: "A sociedade se divide entre os que "conquistam" o


direito de gozar e os outros, otários, a serem usados e abusados pelos
mais espertos. Em outras palavras: quem é e quem não é cidadão, no
sentido definido pela Declaração dos Direitos do Homem (que fundou a
modernidade!), passa a ser decidido em termos de quem é e quem não é
consumidor".

Logo, forma-se a maior parte da sociedade; indivíduos incompetentes,
incapazes, desprovidos de prazeres e do gozo de privilégio, cabendo
aqui outra passagem de seu artigo: "Pelo contrário, às vezes parece


que este poder das noções e categorias cediças e puídas torna- se mais
tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia
da memória de sua origem. Ela revela toda sua força coercitiva somente
depois de seu fim, quando os homens nem ao menos se rebelam contra
ela". Ao que está se referindo esta passagem, senão ao poder de

"eterno retorno" próprio do recalcado?".
A resposta está esquecida em nosso inconsciente, e sempre que nos
salta aos olhos, somos obrigados a "virar a cara", para o triste fim
de nossos irmãos. Paira sobre nós uma culpa inconsciente por não
cultivarmos nossa história, nossa cultura, legados que nos ensinam a
aprender e a ensinar. Eternamente cegos, viajamos num mar de
desilusões, servindo de lenha para a fornalha de um grande navio, onde
apenas uma minoria, eternos sorridentes, é quem guia o leme de nosso
destino.

Um abraço a todos, e até a próxima!

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