Interessante como o sentimento de piedade agora me faz lembrar dela
como se fosse uma amiga ou parente próximo. Dá até vontade de ligar
pra ela, doar sangue, enfim, fazer algo que nos aproxime; não pela
arte e admiração, mas pela dor. E esta química da dor e sofrimento faz
a gente olhar com olhos diferente pra quem nunca olhamos com afeto ou
ternura.
Conheço uma pessoa que procura oportunidades nas tragédias desses dias
para oferecer voluntariamente qualquer tipo de ajuda, desde remover
entulhos até a distribuição de alimento e remédios. Quando vejo na TV
cenas de gente socorrendo e sendo socorridas logo o imagino lá, sujo,
cansado, encharcado ou empoeirado, mas sorrindo. Porque lá, as pessoas
estão encharcadas de sentimento de misericórdia e quebrantamento, e as
máscaras de orgulho e auto-suficiência foram arrastadas com os bens
pelas correntezas da vida.
Acho que o mundo que vivemos seria tão melhor e diferente se
sentíssemos como que num estado comum de calamidade, tomados por
enchentes e terremotos de segunda a domingo. No fundo não acho que
precisamos disso, nem quero isso pra ninguém, mas nos tornaria mais
próximos, reconciliados e sensíveis.
Quem sabe, se decretássemos para nossa alma que estamos vivendo em
tragédia, o tom das conversas entre família não mudaria? Alunos e
professores não construiriam a educação juntos? Velhinhos não
morreriam nas filas esperando atendimento? Certamente nosso olhar
ganharia lentes de compaixão, e nosso ambiente se encheria com ares de
abrigo e refúgio em tempos de guerra.
Heron Caetano