https://www.youtube.com/watch?v=mZFrAcZrUjc&t=130s
Fonte:
https://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2024/amazonia-na-rota-do-petroleo/gas-na-floresta/gas-e-oleo-na-floresta-atropelam-agricultores-com-preco-baixo-por-terra-e-tem-aval-a-dezenas-de-pocos/
• Gás na floresta
◦ Gás e óleo na floresta atropelam agricultores com preço baixo
por terra e têm aval a dezenas de poços
Amazônia na rota do petróleo
O avanço da exploração de óleo e gás sobre a floresta
Gás na floresta
Gás e óleo na floresta atropelam agricultores com preço baixo por terra
e têm aval a dezenas de poços
Empreendimento se expande em ritmo acelerado em área preservada da
amazônia ocidental e ignora indígenas; Eneva diz que paga valores acima
do mercado
23.ago.2024 às 23h00Atualizado em: 23.ago.2024 às 23h00
Vinicius Sassine
Lalo de Almeida
O sossego, o silêncio e o espaço de quem se viu no meio do caminho de um
gigantesco empreendimento de gás natural e óleo, no coração da floresta
amazônica, podem valer de R$ 400 a pouco mais de R$ 3.000 por mês.
A 80 metros da porta da casa de José Carlos da Silva, 58, e Alzira
Pereira Pinto, 65, um poço foi cavado para a prospecção de combustível
fóssil, alimento futuro de termelétricas. O descampado em volta do poço
e das válvulas está ainda mais perto, a 30 metros. O quintal da casa,
que fica na beira de uma rodovia rumo a Itapiranga (AM), tem agora uma
estrutura de gás e petróleo.
“Esse descampado já destruiu minhas plantações de coco, abacaxi,
pimenta-do-reino, tucumã e macaxeira”, diz o agricultor, que é
ex-cortador de cana e ex-vendedor de frutas. “Eu não sabia que tinha gás
aqui. Fico vendo a perfuração e tenho medo de explosão, vazamento, essas
coisas”, afirma a mulher.
Poço de gás no terreno do agricultor José Carlos da Silva, 58, que mora
na casa ao fundo, na zona rural de Itapiranga (AM) -
Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva, uma empresa com faturamento bilionário e que é dona do maior
empreendimento privado de exploração de óleo e gás na amazônia, em
franca expansão, alugou o quintal de José e Alzira para cavar um poço de
gás. Começou pagando R$ 3.400 por mês pelo aluguel, e reajustou para
R$ 4.000, segundo o casal.
Outro pedaço do terreno foi alugado para a passagem de um gasoduto. O
valor: R$ 500 ao ano, ou R$ 42 por mês. “Eles “amarraram o nó”. Disseram
que se a gente não aceitasse, outros vários iam aceitar. Como que peita?
Não tenho essa força. Tive de me sujeitar”, afirma José Carlos,
pernambucano, há 36 anos na amazônia.
O agricultor José Carlos da Silva em bananal no seu sítio na zona rural
de Itapiranga (AM), alugado em parte para exploração de gás -
Lalo de Almeida/Folhapress
A casa do policial aposentado Francisco de Moraes, 65, está na beira de
outra rodovia, no caminho para Silves (AM), cidade que é uma ilha,
próxima a Itapiranga. Ele alugou parte de seu terreno –500 metros de
comprimento, 35 metros de largura– para a Eneva seguir com o gasoduto em
construção, conectando poços de exploração e unidade de tratamento do gás.
“Eu comprei isso aqui para sossego. Era o paraíso. Agora estou no
inferno”, diz Francisco. “Eu encho o ouvido de algodão para tentar
dormir. É muito barulho, muita zoada, principalmente à noite. Eu quero
ir embora.”
O aluguel acertado, segundo ele, foi de quase R$ 5.000 ao ano, ou pouco
mais de R$ 400 por mês. Tratores quebraram sua bomba d"água, uma estrada
de chão imponente surgiu no fundo de sua casa, pés de tucumã, jaca e
cumaru precisaram ser arrancados. “Eu me arrependi de ter aceitado. Não
sabia que seria esse transtorno.”
O policial aposentado Francisco de Moraes, 65, caminha pelo terreno
aberto para a passagem de um gasoduto no quintal de sua casa, em Silves
(AM) - Lalo de Almeida/Folhapress
A consolidação de um polo de gás e óleo em uma área superpreservada da
amazônia teve início efetivo em 2021 e uma expansão sem precedentes em
2023, que avança por 2024.
Para isso, a Eneva obteve licenças para perfuração de 29 poços de gás
(18 somente em 2023) em blocos na região compreendida entre Itacoatiara,
Silves e Itapiranga, no leste do Amazonas, um lugar alcançado por terra,
o que é raro no estado amazônico dependente do transporte fluvial em
quase toda sua extensão.
As autorizações incluem um gasoduto com 32 km de extensão e a construção
de usinas termelétricas. As licenças foram emitidas pelo Ipaam
(Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) –não passaram, portanto,
pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), órgão federal.
Obra do Complexo Azulão, da empresa Eneva, em Silves (AM) -
Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva afirmou, em nota, que paga aos proprietários de terra valores
acima da média de mercado e que preza por transparência e bom
relacionamento com os agricultores. Quase 100% das negociações foram
concluídas e de forma amigável, disse a empresa.
Quem tem um poço produtor no imóvel tem direito a participação na
produção, conforme a companhia. Segundo a Eneva, são 20 licenças para
perfuração de poços de gás natural, e 18 já foram perfurados, com
extração efetiva de 3.
No campo de Azulão, a empresa busca explorar 14,8 bilhões de metros
cúbicos de gás. No campo mais recente, o Tambaqui, a expectativa é de
exploração de 3,6 bilhões de metros cúbicos de gás e também de óleo, com
quase 14 milhões de barris, segundo relatórios da Eneva.
A expansão de gás e petróleo pela floresta está em pleno vapor, com
perfurações de poços novos para prospecção, distribuição de dutos em
diferentes pontos da mata, formatação do gasoduto –que já ganha forma em
diferentes trechos na floresta, para atravessar cursos d"água– e
abertura de estradas de chão para a movimentação de operários e a
consolidação do empreendimento.
Para avançar, o projeto usa métodos vistos em grandes obras na amazônia.
Ignora a existência de comunidades tradicionais, como as aldeias muras
no campo Tambaqui –no caso dos indígenas, não há nem preço ou conversa
sobre o espaço. Atrai pequenos agricultores, cujas terras são
necessárias para a rede de poços. Esconde informações de quem se viu no
meio do caminho do óleo e do gás.
Gasoduto em construção perto de unidade de tratamento de gás no campo de
Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Integrantes de comunidades locais relatam que funcionários da Eneva
destacados para o convencimento sobre o aluguel das terras se negam a
fornecer cópia do contrato para leitura antes da assinatura. Também há
omissão sobre a possibilidade de que o pagamento seja de uma vez, não
fracionado mês a mês. Eles citam ainda ameaças de perda do terreno por
meio de ordem judicial.
Há quem resista. Desde dezembro de 2023, o agricultor Francisco Correia,
51, recebe visitas de funcionários da Eneva com proposta para alugar
parte do terreno onde vive –mais especificamente o pedaço de terra usado
para plantação de mandioca, que é a base da farinha produzida pela
própria família. A roça cederia lugar à via do gasoduto.
A proposta feita foi de R$ 3.500 por ano, menos de R$ 300 por mês,
segundo Francisco, que não a aceitou.
“Não estou empatando a passagem. Estou questionando um preço justo”, diz
o agricultor. “Aí eles seguem vindo aqui, e precisei arrumar um advogado.”
O agricultor Francisco Correia, 51, em plantação de mandioca no seu
sítio, que está no trajeto de um gasoduto do campo de Azulão -
Lalo de Almeida/Folhapress
Francisco tem um financiamento rural em aberto, captado para custear uma
plantação de andiroba. O crédito tem o valor de R$ 16 mil. A Eneva,
conforme o agricultor, quer pagar cerca de R$ 7.000 pela roça que seria
tratorada.
“Eu disse que está pouco. Não vendo só a farinha, vendo goma e tucupi. A
empresa quer dar esmola”, afirma ele.
O impasse em torno do terreno almejado para o gasoduto –uma porção de
300 metros de comprimento e 35 metros de largura– permanece. “Eu vivo do
meu trabalho. Tenho nove filhos e é daqui que tiro meu sustento e minha
renda.”
O empreendimento da Eneva vem transformando a paisagem nesse ponto da
amazônia ocidental. Há obras e abertura de poços em diferentes trechos,
embora a maioria das perfurações seja para prospecção, antes da
exploração definitiva.
Todos os dias, entre 20 e 30 caminhões cruzam as rodovias, segundo
moradores de casas e comunidades vizinhas às estradas. O destino é
Roraima, principal consumidor do gás produzido, que abastece a usina
termelétrica que garante o fornecimento de energia em parte do estado
vizinho ao Amazonas.
Unidade de tratamento de gás no campo de Azulão, em Silves, no Amazonas
- Lalo de Almeida/Folhapress
Silves, a cidade mais próxima ao complexo em fase de ampliação, parece
não sentir os efeitos de um empreendimento desse porte. A cidade vive a
calma de um município pequeno, e a movimentação maior se dá em
Itapiranga, com obras na esteira da expectativa do gás e do óleo, como
um hotel em construção.
“Existe uma certa decepção com o empreendimento”, admite o prefeito de
Silves, Paulino Grana (Republicanos). “O município recebe, em royalties,
entre R$ 140 mil e R$ 150 mil”, diz.
Mesmo assim, o prefeito é defensor do projeto. Diz que 500 pessoas de
Silves trabalham na Eneva, um número próximo do que a prefeitura
emprega, 700. Ele espera que os royalties se multipliquem por sete
quando a termelétrica estiver funcionando. E aponta como principal
legado a reforma de um prédio para o funcionamento de uma escola técnica.
Balsa que faz o trajeto de Silves ao continente leva operários
envolvidos nas obras do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Para a perfuração de diversos poços até agora, segundo Grana, a empresa
faz uso de áreas do município, do estado do Amazonas, de posseiros e de
proprietários privados, além de um território tradicional reivindicado
pelo povo mura.
A reportagem conseguiu mapear dez poços na região entre Itacoatiara,
Silves e Itapiranga. O sistema de dados públicos da ANP (Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) diz que foram 12
perfurações desde 2021.
Quatro poços estão no território reivindicado por famílias muras, a
Terra Indígena Gavião Real. Da rodovia até o local de dois poços, por
uma estrada de terra aberta pela empresa, são 20 quilômetros. O rio
Anebá está a 400 metros do local, e há aldeias próximas.
Jonas Mura, liderança do povo mura, observa uma válvula instalada em um
poço de gás perfurado dentro da Terra Indígena Gavião Real, em Silves -
Lalo de Almeida/Folhapress
“Aqui era o braço de um igarapé que servia como caminho para caça.
Aterraram o igarapé para a estrada, não dá para passar de canoa mais”,
diz Jonas Mura, cacique geral da terra indígena, enquanto percorre os
acessos aos poços. As comunidades, compostas por 1.360 indígenas, em
sete aldeias, tentam a demarcação do território junto à Funai (Fundação
Nacional dos Povos Indígenas).
Jonas se tornou o rosto mais conhecido da oposição ao empreendimento de
óleo e gás nesse ponto da amazônia. Ele diz ter sofrido ameaças de morte
e está inserido num programa de proteção, com acesso direto a forças
policiais.
A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de
25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras
descritas nas bases de dados da Funai.”
Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF
(Ministério Público Federal), que “a Funai precisa dizer onde estão os
indígenas”.
A Procuradoria da República no Amazonas pediu, em ação na Justiça
Federal, a suspensão de processos de licenciamento e da exploração de
poços de óleo e gás onde há sobreposição com comunidades tradicionais,
além da transferência do licenciamento ao Ibama.
Poço de gás natural localizado na Terra Indígena Gavião Real, do povo
mura - Lalo de Almeida/Folhapress
Uma das aldeias do território tem um posto de saúde indígena. O Dsei
(Distrito Sanitário Especial Indígena) de Manaus, vinculado ao
Ministério da Saúde, informou ao MPF que 166 famílias indígenas são
atendidas pelo distrito na região de Silves.
“Os parentes de lá estão prejudicados e são diretamente afetados pelos
empreendimentos”, afirmou o Dsei à Procuradoria.
Desde o início de 2024, existe uma nova preocupação: a possível presença
de indígenas isolados –que não desejam contato com não indígenas ou com
outros indígenas– em uma área de floresta próxima do empreendimento da
Eneva.
Extração de gás natural ao lado de unidade de tratamento no campo
Azulão, da Eneva - Lalo de Almeida/Folhapress
O avistamento de uma família, com possibilidade de que seja de um povo
em isolamento voluntário, foi feito pela CPT (Comissão Pastoral da
Terra) de Itacoatiara, que comunicou a Funai. Técnicos do órgão federal
fizeram, então, um trabalho de campo em busca de indícios sobre os isolados.
Um documento da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, elaborado em
19 de junho, afirma: “O local exato do avistamento dista tão somente 31
km em linha reta da área da Eneva para prospecção de gás”.
A diretora de Proteção Territorial, Maria Janete Albuquerque, disse
ainda no ofício que vestígios da passagem de indígenas isolados foram
encontrados, que existe “alta probabilidade” de presença de um povo em
isolamento voluntário na região do igarapé Caribi e que o grupo seria
“altamente vulnerável”, em razão da prospecção de gás e do manejo de
madeira.
“Recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de
exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo
florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”, sugeriu a diretora da
Funai. Áreas usadas pela Mil Madeiras se confundem com áreas usadas pela
Eneva, como indicam placas nos lugares de exploração.
Placa sinaliza perfuração de um poço de gás natural na estrada que liga
Itacoatiara a Silves - Lalo de Almeida/Folhapress
A empresa de gás afirmou que a própria Funai disse “de forma clara” que
não há registro no banco de dados do órgão sobre a existência de
indígenas isolados na região.
A cada dia, o projeto da Eneva –companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy,
Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária– se expande e
se consolida na floresta. Segue o caminho do empreendimento de gás e
termelétricas tocado pela mesma empresa no Maranhão.
José Carlos e Alzira, que passam os dias observando o trabalho de
operários em um poço de gás aberto praticamente no quintal de casa,
acreditam que está cada vez mais próxima a exploração do combustível
fóssil a ser extraído da terra onde vivem há mais de 20 anos.
“Estão fazendo a canalização, a linha do gasoduto. Deve estar próximo de
tirar”, diz ele. “O que ninguém da Eneva explicou até agora foi: com
quem fica o dinheiro desse gás que vai sair daqui?”
Poco de gás natural no terreno do agricultor José Carlos da Silva na
zona rural de Itapiranga, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Amazônia na Rota do Petróleo conta os riscos para
o meio ambiente e para as comunidades próximas associados a projetos de
exploração de combustíveis fósseis na maior floresta tropical do mundo.
Para os três capítulos do trabalho, o repórter Vinicius Sassine,
correspondente da Folha na região, e o repórter fotográfico Lalo de
Almeida visitaram locais com empreendimentos de óleo e gás já instalados
ou em avaliação.
•
O bloco 59Pressão de Lula por petróleo ignora mangues sensíveis e
explosão de vida que sustenta pescadores
Reportagem e coordenação Vinicius Sassine e Lalo de AlmeidaIdealização
Vinicius SassineEdição de textos Giuliana de ToledoEditor de fotografia
Otavio ValleEdição de fotografia Lalo de Almeida Tratamento de imagem
Edson Salles e Fabiano VitoEditor de arte Kleber BonjoanCoordenação de
Infografia Adriana MattosInfografia Gustavo QueiroloDesign Irapuan
CamposDesenvolvimento Rubens Alencar
Poço de gás no terreno do agricultor José Carlos da Silva, 58, que mora
na casa ao fundo, na zona rural de Itapiranga (AM) -
Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva, uma empresa com faturamento bilionário e que é dona do maior
empreendimento privado de exploração de óleo e gás na amazônia, em
franca expansão, alugou o quintal de José e Alzira para cavar um poço de
gás. Começou pagando R$ 3.400 por mês pelo aluguel, e reajustou para
R$ 4.000, segundo o casal.
Outro pedaço do terreno foi alugado para a passagem de um gasoduto. O
valor: R$ 500 ao ano, ou R$ 42 por mês. “Eles “amarraram o nó”. Disseram
que se a gente não aceitasse, outros vários iam aceitar. Como que peita?
Não tenho essa força. Tive de me sujeitar”, afirma José Carlos,
pernambucano, há 36 anos na amazônia.
O agricultor José Carlos da Silva em bananal no seu sítio na zona rural
de Itapiranga (AM), alugado em parte para exploração de gás -
Lalo de Almeida/Folhapress
A casa do policial aposentado Francisco de Moraes, 65, está na beira de
outra rodovia, no caminho para Silves (AM), cidade que é uma ilha,
próxima a Itapiranga. Ele alugou parte de seu terreno –500 metros de
comprimento, 35 metros de largura– para a Eneva seguir com o gasoduto em
construção, conectando poços de exploração e unidade de tratamento do gás.
“Eu comprei isso aqui para sossego. Era o paraíso. Agora estou no
inferno”, diz Francisco. “Eu encho o ouvido de algodão para tentar
dormir. É muito barulho, muita zoada, principalmente à noite. Eu quero
ir embora.”
O aluguel acertado, segundo ele, foi de quase R$ 5.000 ao ano, ou pouco
mais de R$ 400 por mês. Tratores quebraram sua bomba d"água, uma estrada
de chão imponente surgiu no fundo de sua casa, pés de tucumã, jaca e
cumaru precisaram ser arrancados. “Eu me arrependi de ter aceitado. Não
sabia que seria esse transtorno.”
O policial aposentado Francisco de Moraes, 65, caminha pelo terreno
aberto para a passagem de um gasoduto no quintal de sua casa, em Silves
(AM) - Lalo de Almeida/Folhapress
A consolidação de um polo de gás e óleo em uma área superpreservada da
amazônia teve início efetivo em 2021 e uma expansão sem precedentes em
2023, que avança por 2024.
Para isso, a Eneva obteve licenças para perfuração de 29 poços de gás
(18 somente em 2023) em blocos na região compreendida entre Itacoatiara,
Silves e Itapiranga, no leste do Amazonas, um lugar alcançado por terra,
o que é raro no estado amazônico dependente do transporte fluvial em
quase toda sua extensão.
As autorizações incluem um gasoduto com 32 km de extensão e a construção
de usinas termelétricas. As licenças foram emitidas pelo Ipaam
(Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) –não passaram, portanto,
pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), órgão federal.
Obra do Complexo Azulão, da empresa Eneva, em Silves (AM) -
Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva afirmou, em nota, que paga aos proprietários de terra valores
acima da média de mercado e que preza por transparência e bom
relacionamento com os agricultores. Quase 100% das negociações foram
concluídas e de forma amigável, disse a empresa.
Quem tem um poço produtor no imóvel tem direito a participação na
produção, conforme a companhia. Segundo a Eneva, são 20 licenças para
perfuração de poços de gás natural, e 18 já foram perfurados, com
extração efetiva de 3.
No campo de Azulão, a empresa busca explorar 14,8 bilhões de metros
cúbicos de gás. No campo mais recente, o Tambaqui, a expectativa é de
exploração de 3,6 bilhões de metros cúbicos de gás e também de óleo, com
quase 14 milhões de barris, segundo relatórios da Eneva.
A expansão de gás e petróleo pela floresta está em pleno vapor, com
perfurações de poços novos para prospecção, distribuição de dutos em
diferentes pontos da mata, formatação do gasoduto –que já ganha forma em
diferentes trechos na floresta, para atravessar cursos d"água– e
abertura de estradas de chão para a movimentação de operários e a
consolidação do empreendimento.
Para avançar, o projeto usa métodos vistos em grandes obras na amazônia.
Ignora a existência de comunidades tradicionais, como as aldeias muras
no campo Tambaqui –no caso dos indígenas, não há nem preço ou conversa
sobre o espaço. Atrai pequenos agricultores, cujas terras são
necessárias para a rede de poços. Esconde informações de quem se viu no
meio do caminho do óleo e do gás.
Gasoduto em construção perto de unidade de tratamento de gás no campo de
Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Integrantes de comunidades locais relatam que funcionários da Eneva
destacados para o convencimento sobre o aluguel das terras se negam a
fornecer cópia do contrato para leitura antes da assinatura. Também há
omissão sobre a possibilidade de que o pagamento seja de uma vez, não
fracionado mês a mês. Eles citam ainda ameaças de perda do terreno por
meio de ordem judicial.
Há quem resista. Desde dezembro de 2023, o agricultor Francisco Correia,
51, recebe visitas de funcionários da Eneva com proposta para alugar
parte do terreno onde vive –mais especificamente o pedaço de terra usado
para plantação de mandioca, que é a base da farinha produzida pela
própria família. A roça cederia lugar à via do gasoduto.
A proposta feita foi de R$ 3.500 por ano, menos de R$ 300 por mês,
segundo Francisco, que não a aceitou.
“Não estou empatando a passagem. Estou questionando um preço justo”, diz
o agricultor. “Aí eles seguem vindo aqui, e precisei arrumar um advogado.”
O agricultor Francisco Correia, 51, em plantação de mandioca no seu
sítio, que está no trajeto de um gasoduto do campo de Azulão -
Lalo de Almeida/Folhapress
Francisco tem um financiamento rural em aberto, captado para custear uma
plantação de andiroba. O crédito tem o valor de R$ 16 mil. A Eneva,
conforme o agricultor, quer pagar cerca de R$ 7.000 pela roça que seria
tratorada.
“Eu disse que está pouco. Não vendo só a farinha, vendo goma e tucupi. A
empresa quer dar esmola”, afirma ele.
O impasse em torno do terreno almejado para o gasoduto –uma porção de
300 metros de comprimento e 35 metros de largura– permanece. “Eu vivo do
meu trabalho. Tenho nove filhos e é daqui que tiro meu sustento e minha
renda.”
O empreendimento da Eneva vem transformando a paisagem nesse ponto da
amazônia ocidental. Há obras e abertura de poços em diferentes trechos,
embora a maioria das perfurações seja para prospecção, antes da
exploração definitiva.
Todos os dias, entre 20 e 30 caminhões cruzam as rodovias, segundo
moradores de casas e comunidades vizinhas às estradas. O destino é
Roraima, principal consumidor do gás produzido, que abastece a usina
termelétrica que garante o fornecimento de energia em parte do estado
vizinho ao Amazonas.
Unidade de tratamento de gás no campo de Azulão, em Silves, no Amazonas
- Lalo de Almeida/Folhapress
Silves, a cidade mais próxima ao complexo em fase de ampliação, parece
não sentir os efeitos de um empreendimento desse porte. A cidade vive a
calma de um município pequeno, e a movimentação maior se dá em
Itapiranga, com obras na esteira da expectativa do gás e do óleo, como
um hotel em construção.
“Existe uma certa decepção com o empreendimento”, admite o prefeito de
Silves, Paulino Grana (Republicanos). “O município recebe, em royalties,
entre R$ 140 mil e R$ 150 mil”, diz.
Mesmo assim, o prefeito é defensor do projeto. Diz que 500 pessoas de
Silves trabalham na Eneva, um número próximo do que a prefeitura
emprega, 700. Ele espera que os royalties se multipliquem por sete
quando a termelétrica estiver funcionando. E aponta como principal
legado a reforma de um prédio para o funcionamento de uma escola técnica.
Balsa que faz o trajeto de Silves ao continente leva operários
envolvidos nas obras do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Para a perfuração de diversos poços até agora, segundo Grana, a empresa
faz uso de áreas do município, do estado do Amazonas, de posseiros e de
proprietários privados, além de um território tradicional reivindicado
pelo povo mura.
A reportagem conseguiu mapear dez poços na região entre Itacoatiara,
Silves e Itapiranga. O sistema de dados públicos da ANP (Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) diz que foram 12
perfurações desde 2021.
Quatro poços estão no território reivindicado por famílias muras, a
Terra Indígena Gavião Real. Da rodovia até o local de dois poços, por
uma estrada de terra aberta pela empresa, são 20 quilômetros. O rio
Anebá está a 400 metros do local, e há aldeias próximas.
Jonas Mura, liderança do povo mura, observa uma válvula instalada em um
poço de gás perfurado dentro da Terra Indígena Gavião Real, em Silves -
Lalo de Almeida/Folhapress
“Aqui era o braço de um igarapé que servia como caminho para caça.
Aterraram o igarapé para a estrada, não dá para passar de canoa mais”,
diz Jonas Mura, cacique geral da terra indígena, enquanto percorre os
acessos aos poços. As comunidades, compostas por 1.360 indígenas, em
sete aldeias, tentam a demarcação do território junto à Funai (Fundação
Nacional dos Povos Indígenas).
Jonas se tornou o rosto mais conhecido da oposição ao empreendimento de
óleo e gás nesse ponto da amazônia. Ele diz ter sofrido ameaças de morte
e está inserido num programa de proteção, com acesso direto a forças
policiais.
A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de
25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras
descritas nas bases de dados da Funai.”
Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF
(Ministério Público Federal), que “a Funai precisa dizer onde estão os
indígenas”.
A Procuradoria da República no Amazonas pediu, em ação na Justiça
Federal, a suspensão de processos de licenciamento e da exploração de
poços de óleo e gás onde há sobreposição com comunidades tradicionais,
além da transferência do licenciamento ao Ibama.
Poço de gás natural localizado na Terra Indígena Gavião Real, do povo
mura - Lalo de Almeida/Folhapress
Uma das aldeias do território tem um posto de saúde indígena. O Dsei
(Distrito Sanitário Especial Indígena) de Manaus, vinculado ao
Ministério da Saúde, informou ao MPF que 166 famílias indígenas são
atendidas pelo distrito na região de Silves.
“Os parentes de lá estão prejudicados e são diretamente afetados pelos
empreendimentos”, afirmou o Dsei à Procuradoria.
Desde o início de 2024, existe uma nova preocupação: a possível presença
de indígenas isolados –que não desejam contato com não indígenas ou com
outros indígenas– em uma área de floresta próxima do empreendimento da
Eneva.
Extração de gás natural ao lado de unidade de tratamento no campo
Azulão, da Eneva - Lalo de Almeida/Folhapress
O avistamento de uma família, com possibilidade de que seja de um povo
em isolamento voluntário, foi feito pela CPT (Comissão Pastoral da
Terra) de Itacoatiara, que comunicou a Funai. Técnicos do órgão federal
fizeram, então, um trabalho de campo em busca de indícios sobre os isolados.
Um documento da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, elaborado em
19 de junho, afirma: “O local exato do avistamento dista tão somente 31
km em linha reta da área da Eneva para prospecção de gás”.
A diretora de Proteção Territorial, Maria Janete Albuquerque, disse
ainda no ofício que vestígios da passagem de indígenas isolados foram
encontrados, que existe “alta probabilidade” de presença de um povo em
isolamento voluntário na região do igarapé Caribi e que o grupo seria
“altamente vulnerável”, em razão da prospecção de gás e do manejo de
madeira.
“Recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de
exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo
florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”, sugeriu a diretora da
Funai. Áreas usadas pela Mil Madeiras se confundem com áreas usadas pela
Eneva, como indicam placas nos lugares de exploração.
Placa sinaliza perfuração de um poço de gás natural na estrada que liga
Itacoatiara a Silves - Lalo de Almeida/Folhapress
A empresa de gás afirmou que a própria Funai disse “de forma clara” que
não há registro no banco de dados do órgão sobre a existência de
indígenas isolados na região.
A cada dia, o projeto da Eneva –companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy,
Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária– se expande e
se consolida na floresta. Segue o caminho do empreendimento de gás e
termelétricas tocado pela mesma empresa no Maranhão.
José Carlos e Alzira, que passam os dias observando o trabalho de
operários em um poço de gás aberto praticamente no quintal de casa,
acreditam que está cada vez mais próxima a exploração do combustível
fóssil a ser extraído da terra onde vivem há mais de 20 anos.
“Estão fazendo a canalização, a linha do gasoduto. Deve estar próximo de
tirar”, diz ele. “O que ninguém da Eneva explicou até agora foi: com
quem fica o dinheiro desse gás que vai sair daqui?”
Poco de gás natural no terreno do agricultor José Carlos da Silva na
zona rural de Itapiranga, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress
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