LÁGRIMA
Fátima Venutti
O sino da igreja badalou
chamando para a missa das dez, como e todo sempre, sistematicamente fazia.
Foi no início do séc.
XVII que os últimos jesuítas resolveram cravar sua passagem pela região do Vale
do Encantado. O suor de muitos índios tingiu os pilares daquela rendição
confessa e sob pressão à religiosidade branca. Enquanto o padre iniciava o
sermão sugerido para aquela manhã, Santa Rita lacrimejou.
Lentamente, os olhos
vidrados de um azul celestial foram se envolvendo de uma claridade e
transparência nunca vista antes. O pó do tempo e da História eram assim eliminados.
O tempo registrado em relógios parou enquanto ia surgindo, do canto interno do
olho direito, um vitral líquido que delicadamente descia vagaroso pela sua
face, passando pela narina esquerda e esbarrando na sutil feição de seus lábios,
pintados de um vermelho doce e angelical. A lentidão do surgimento daquele
líquido era quase imperceptível ao olhar humano. A Santa percorreu, com um
único olhar, todos os fiéis e, conhecendo-os um a um, fez sua escolha.
Aquele, ajoelhado na
soleira da última fileira de bancos, próximo à porta de entrada daquela casa de
suplícios materiais. Bastava somente que ele levantasse a cabeça depois de suas
decoradas orações e a enxergasse ali, chorando os seus pecados.
Matilde nem estava
prestando atenção ao sermão. Lembrou da
última vez que entrou numa igreja pra assistir a uma missa. Tinha 12 anos, era dia
de sua Primeira Comunhão e, na hora da confissão, o padre encostou sua mão em
uma de suas coxas. Aparício estava atrasado e ela com medo de que ele não
viesse. Enquanto olhava os objetos que adornavam o altar, todos dourados,
brilhando e ofuscando o olhar, pensava em quanto não deviam valer no penhor.
Com um objeto daqueles, uma taça sequer, podia ir embora daquela cidade imunda,
praguejada de pessoas inertes ao que acontecia no mundo. Olhou as horas no
pulso e bufou o atraso de Aparício. Mais um chiclete na boca. O padre falava
efusivamente. Matilde não estava nem aí pro sermão.
Quando aquele homem
finalizou com um amém, levantou a
cabeça em direção ao altar, mas sentiu a necessidade de olhar pra imagem de Santa Rita e saudá-la. Quase sem fôlego com o susto que levou com
o que viu, quis conferir mais de perto, e aproximou-se aos pés da santinha que
protegia os moradores da cidade. Enquanto o padre finalizava seu sermão, ele
saiu correndo da igreja em direção à sua casa. Queria pegar uma máquina
fotográfica e talvez, ganhar alguns trocados com a revelação da santinha.
Aparício não veio e Matilde
não pode pedir-lhe ajuda pra fazer o aborto. A missa terminou e ela foi saindo
lentamente pelo corredor central quando observou aquele homem de pé,
eufórico, tirando fotos da santinha da
cidade, bem de perfil. O turismo estava dando seus primeiros passos, pensou.
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Postado por Fátima Venutti no
Último beijo em 2/02/2012 10:53:00 AM