OS SAPATOS
Nos anos em que o homem vive recostado em seus pensamentos, veio-me
uma lembrança curiosa.
O fato recordado não teve nenhuma importância em minha história
particular e, muito menos, na História Universal.
Talvez devêssemos classificá-lo como vulgar, ba-nal. Entretanto, mesmo
não mudando o curso de nada, marcou a minha mente observadora.
De fato, o acontecimento lembrado, talvez se en-quadrasse mais como
uma mera fofoca se não fosse por um detalhe. Ele se revestiu com um
peso poético cômico como o humor chapliniano.
Ele não teve uma conclusão moral que, aparente-mente devesse a nossa
mais profunda reflexão e, assim, alterasse a nossa visão do mundo, mas
forçou-nos a ela.
O que valeu nele foi sua força surda, que calou em nosso peito alguma
coisa indefinida, mas que merecia a nossa atenção.
No velório de um parente, uma senhora, próxima à família, toda vestida
de preto, adentrou na sala onde se encontrava o corpo do falecido e
toda atenção dos presentes se voltou para os seus sapatos.
Os sapatos que ela calçava eram feitos de tricô, com sapatilhas
formato bico fino e com um pequeno salto. Eles lembravam uma bota de
bruxas, dessas que a gente vê em desenhos. Eles não causaram, nos
presentes, nenhuma idéia de gozação com a senhora, ao contrário,
muitos evitavam olhar para eles, embora fosse uma tarefa extremamente
difícil, como observei.
O detalhe, que chamava a atenção para os sapatos daquela senhora, era
que eles destoavam de toda situação. Pareciam fazer parte de uma
fantasia, revelando-nos o nosso falso sofrimento.
Como sabemos, é muito comum nestas situações, onde reina um pesar
geral, acontecer um incidente en-graçado, constrangendo a todos para
não parecer que não estão sentindo a dor da perda de um ente querido.
O pior é que, ao se reprimir algum sentimento, por acharmos
contraditório e impróprio para um dado mo-mento, o fazemos crescer
como uma avalanche e, num dado nível, é impossível segurá-lo. O que
ocorre é que há uma explosão geral. Não é incomum, portanto, se
escutar gargalhadas num velório.
Os sapatos, presentes naquele velório, não nos pro-vocavam nenhuma
vontade de rir, mas eles estavam ali, silenciosos e era impossível
desviar os olhos deles.
Parecia que a coisa mais viva, mais autêntica e mais sincera naquele
velório eram aqueles sapatos. Eles eram um desafio para todos nós. E,
mais do que o silêncio que se faz nestas ocasiões, pontilhados por
cochichos aos ouvidos, como se não devêssemos incomodar o defunto e
despertá-lo, a presença daqueles sapatos criou um silêncio
verdadeiramente sepulcral, aterrador.
O que eles estavam despertando em nós? O que eles estavam provocando
em nós?
Nunca, num velório, o silêncio foi tão cumprido, calando em nós a
força de uma idéia. É aí que reside a vida?
HIDERALDO MONTENEGRO
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