Por Anselmo Massad
Um movimento popular ganhava atenção e simpatia da opinião pública
fazia dois anos. Era preciso desmoralizá-los. Em junho de 1998, a capa
da revista semanal com maior tiragem do país enquadrava uma das
lideranças do movimento com uma iluminação avermelhada produzida nas
telas de um computador sobre o rosto com uma expressão tensa. A chamada
não deixava dúvidas: "A esquerda com raiva". O rosto demonizado era de
João Pedro Stédile, líder do movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST), e a publicação, Veja.
Na matéria, além de explicitar sua posição, descredenciando o
movimento por defender idéias contrárias às defendidas pela revista, os
sem-terra eram apresentados como grupo subversivo-revolucionário, quase
terrorista. Apesar das quase duas horas de entrevista, só foram
aproveitadas declarações do líder de debates sobre socialismo em
congressos devidamente descontextualizados. Stédile conta que, após a
publicação daquela reportagem, ele e as lideranças do movimento tomaram
a decisão de não atender mais à revista. Na época, uma carta anônima
circulou por correio eletrônico revelando supostos detalhes de como a
matéria teria sido produzida. A carta não comprova nada, e atribui ao
secretário geral de Comunicações de Governo de Fernando Henrique
Cardoso, Ângelo Matarazzo, a "encomenda" para desmoralizar os sem-terra.
A iniciativa de não dar entrevistas a Veja também foi adotada por
Dom Paulo Evaristo Arns, ex-arcebispo da Arquidiocese de São Paulo,
quando presidia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O
motivo era a distorção da cobertura. Procurado, não quis discutir o
tema, apesar de manter a determinação de não conversar com jornalistas
do veículo.
O presidente venezuelano Hugo Chávez é o mais recente alvo no plano
internacional. Em 2002, Veja chegou às bancas no domingo com a chamada
"A queda do presidente fanfarrão", quando a reviravolta já havia
ocorrido e a manobra golpista denunciada. A "barriga", jargão
jornalístico empregado a erros da imprensa, não foi sequer corrigida ou
remediada. Em 4 de maio desse ano, Hugo Chávez voltou a ser alvo da
revista, com a pergunta na capa "Quem precisa de um novo Fidel?",
ditador cubado a quem a revista sempre se esperneou.
A lista é extensa, mas as razões derivam de uma fórmula simples.
"Veja faz um jornalismo de trás para a frente", explica Cláudio Julio
Tognolli, repórter do semanário na década de 1980 e hoje professor da
USP. Segundo ele, se estabelece uma tese e a partir dela se parte para
a rua, para a apuração. Ouvir lados diferentes da história e pesquisar
sobre o tema são práticas que não alteram a "pensata", jargão para
definir a tese que a matéria deve comprovar. Dentro da redação, o
melhor repórter é o que traz personagens e fontes para comprovar a
tese. "Assim, Veja ensina à classe média bebedora de uísque o que
pensar", alfineta.
Júlio César Barros, secretário de redação da revista, negou esse
tipo de procedimento, em entrevista realizada em meados de 2003. Ele
admitiu, porém, que a posição da revista é muito clara e conhecida por
todos, do estagiário ao diretor. "Medidas irresponsáveis, que atentem
contra as leis de mercado ou tragam prejuízos para a economia não terão
apoio da revista, que prefere políticas austeras e espaço para o
empresariado", resumiu. A versão oficial do jornalismo praticado pela
revista é de que, depois de ouvir especialistas e as pessoas
envolvidas, o repórter normalmente já tem uma opinião formada sobre o
assunto e a reproduz na matéria. Quem já trabalhou na revista nega.
"As assinaturas das matérias são uma ficção", sintetiza um
ex-colaborador da revista que não quis se identificar. As matérias são
reescritas diversas vezes. O repórter entrega o texto que é modificado
pelos editores, depois refeito pelos editores executivos e, por fim,
pelos diretores de redação. No final da "linha de montagem", o
repórter, que pacientemente aguardou a edição para uma eventual
necessidade de verificação de dados, não tem acesso ao texto até ver um
exemplar impresso. O processo é narrado no livro do ex-diretor de
redação da revista Mário Sérgio Conti, que fez parte da cúpula da
publicação até 1997, como chefe de redação e diretor. A opinião que
prevalece é a da revista, ainda que todos os entrevistados tenham dito
o oposto, mesmo que para isso seja preciso omiti-las do leitor.
A
criação de frases de efeito para os entrevistados foi, durante a década
de 1980, prática comum, conforme narram diversos jornalistas ex-Veja. É
do inventivo do ex-diretor Elio Gaspari a frase assumida por Joãozinho
Trinta: "Quem gosta de pobreza é intelectual". Outras foram criadas,
algumas sem consulta, no caso de fontes mais próximas aos repórteres e
diretores, que ganhavam carta-branca como porta-vozes de certas
personalidades.
No quesito busca de frases, Tognolli conta que elaborou com colegas
um dicionário de fontes que incluía verbetes como "Sindicalista que
fala bem da direita" ou "Militar que fala bem da esquerda". O material
informal de consulta chegou a 70 verbetes e inúmeros nomes. Algo
essencial para os dias de fechamento e encomendas de declarações sob
medida.
Veja por dentro
Assim como outras revistas semanais, a estrutura é extremamente
centralizada. Até o cargo de editor, o jornalista ainda é considerado
de "baixa patente", ou seja, não decide grandes coisas sobre o que será
publicado. Dos editores executivos para cima já se possui poder sobre a
definição do conteúdo, mas os profissionais são escolhidos a dedo. Além
de competência profissional - qualidade de texto, capacidade
intelectual e ampla bagagem cultural - é preciso estar muito alinhado
com a editora.
Afinados, os diretores têm grande liberdade para controlar a equipe.
Quanto ao conteúdo, o espaço é considerável, ainda que o presidente do
conselho do grupo, Roberto Civita, o herdeiro do império da Editora
Abril, participe das reuniões que definem a capa de Veja, junto do
diretor de redação, do diretor-adjunto (cargo hoje vago), do
redator-chefe e, eventualmente, do editor-executivo da área.
O ex-redator-chefe, atualmente diretor do jornal Diário de São Paulo
relata que Civita sempre foi muito presente na redação, ainda que sem
vetos ou imposições do patrão. Leite sustenta que as matérias e capas
sempre foram feitas ou derrubadas a partir de critérios jornalísticos.
"Roberto Civita acompanhava a confecção da revista, sabia de seu
conteúdo e dava sua opinião em reuniões regulares com os diretores da
revista. Mas,de vez em quando, até saíam matérias com as quais ele não
estava de acordo", garante. Leite afirma que, nesses casos, cobrado por
políticos e empresários, Civita respondia que "não controlava aquele
pessoal". "Claro que controlava, mas sabia que fazer revista não é
igual a fabricar sabonete", compara.
A revista busca agradar a quem a compra: a classe média
conservadora. A tiragem semanal da revista é de 1,1 milhão de
exemplares, sendo 800 mil assinantes e o restante vendido em banca. "A
maioria dos que compram, gostam das opiniões, gostam do Diogo
Mainardi", lamenta Raimundo Pereira, um dos primeiros editores da
revista na época em que lá ainda trabalhava o u criador, Mino Carta.
A cúpula da publicação reflete esse perfil. O diretor de redação
Eurípedes Alcântara e o ex-diretor da revista Exame Eduardo Oinegue,
autor da matéria de 1998 sobre os sem-terra, são membros do São Paulo
Athletic Club, o Clube Inglês, freqüentado pela elite paulistana.
Oinegue costumava defender que os jornalistas devem circular e manter
amizades no meio em que cobrem. Entre empresários, se a editoria é
Economia, políticos, se é Brasil etc.
Os preconceitos da elite são refletidos pela revista. Além dos
movimentos sociais, há quem relate que um dos bordões de Tales
Alvarenga, atual diretor de publicações, em sua fase à frente da
revista era: "Não quero gente feia". Por gente bonita, referia-se não
apenas a padrões estéticos de magreza, mas também aqueles ligados à cor
da pele. Segundo colaboradores próximos, fotografar negros seria quase
certeza de material desperdiçado.
A despeito de comentar o livro de Mário Sérgio Conti, o
ex-editor-executivo de Veja, hoje diretor do Diário de São Paulo, Paulo
Moreira Leite, criticava a obra por ser parcial demais e não ser fiel
aos fatos, especialmente os que envolviam os amigos do diretor. "A
amizade e a proximidade excessiva com os poderosos são o caminho mais
comum e mais eficaz para a impostura e a falsidade, o erro e a
arrogância", afirmava na época. Procurado novamente para falar a
respeito, recusou-se a falar mais sobre Conti.
Falando em amizades, um caso em que essas relações foram reveladas,
mas nem por isso foram explicadas ocorreu em novembro de 2001. O nome
da editora de economia de Veja, Eliana Simonetti, aparecia na agenda do
lobista Alexandre Paes dos Santos. Ela recebeu a quantia de 40 mil
reais em empréstimos, segundo sua própria estimativa. A revista, de
acordo com a jornalista, sabia do relacionamento. Quando os repasses
vieram a público, ela foi demitida, sob a alegação de "relacionamento
impróprio" com uma fonte.
O maior problema é que a informação surgiu a partir de uma agenda do
lobista, envolvido com empresas transnacionais e com influência direta
sobre funcionários do Palácio do Planalto. Quem revelou a existência do
documento foi Veja, cuja reportagem fez vista grossa ao nome da colega.
Para dar satisfação à opinião pública, a revista publicou somente uma
nota a respeito. Nenhuma investigação foi promovida sobre eventuais
matérias compradas, hipótese negada pela ex-editora e pela revista.
Simonetti não respondeu aos contatos, mas afirmou, à época, que "todo
jornalista tem seu lobista", colocando toda a classe sob suspeita. Ela
processou a Abril, e ganhou em primeira instância no ano seguinte o
direito à indenização de 20 vezes o valor do último salário.
Império
Publicações tradicionais do mundo todo têm sua posição claramente
conhecida pelo público, sem roupagem de imparcialidade. Os
questionamentos éticos aparecem quando as relações por trás desses
interesses não são transparentes ao público leitor. Um dos motivos
dessa falta de transparência é o surgimento dos grandes conglomerados
de comunicação. Esse fenômeno adquire contornos mais dramáticos no
Brasil, que permite a propriedade cruzada dos meios de comunicação (uma
mesma empresa detém meios impressos e televisivos, por exemplo).
O presidente da Radiobrás e ex-diretor de publicações da Abril,
Eugênio Bucci, alerta que os grupos transnacionais de entretenimento
compram TVs e jornais e os restringem a um mero departamento. "A
pergunta que se colocava antes era se o jornalismo é capaz de ser
independente do anunciante. Hoje se questiona se ele é capaz de ser
independente do grupo que o incorporou", avalia.
A concentração dos veículos de comunicação nas mãos de poucos
grupos, ainda que nacionais, é a marca da história da mídia no Brasil.
O grupo Abril não foge à regra. Ele abarca um complexo que envolve 90
revistas, duas editoras de livros (Ática e Scipione), uma rede de TV
(MTV), uma de TV a cabo (TVA) e uma rede de distribuição de revistas em
banca de jornal (Dinap), além de inúmeras páginas na internet. Tem sete
das dez revistas com maior tiragem no país e, nesse quesito, Veja é a
quarta maior do mundo. "A Abril faz o que for preciso para expandir seu
império, se for preciso derrubar um artigo da Constituição, alterar
leis ou políticas, ela usa suas publicações para gerar pressão",
sustenta Giberto Maringoni, jornalista, chargista e doutorando em
história da imprensa.
A evolução do império Abril dá uma mostra de como ela soube usar bem
sua, digamos, habilidade. O início das atividades se deu em 1950, com a
publicação das revistas em quadrinhos do Pato Donald, personagem de
Walt Disney. O milanês Victor Civita aproveitava a licença para a
América Latina e a amizade do irmão Cesar com o desenhista
norte-americano para lançar os produtos. Apesar de simbólico, não se
pode dizer que o grupo tenha sido um propalador de enlatados
norte-americanos ou produzido materiais de má qualidade em sua história.
O surgimento de diversas revistas, incluindo Veja, um semanário
informativo - e não uma revista ilustrada, como o nome e as
concorrentes sugeriam -, o lançamento de coleções na década de 1960,
como A conquista do espaço, a revista infantil Recreio, sob o comando
da escritora Ruth Rocha, e a revista Realidade, uma das melhores feitas
no país até hoje, são exemplos de publicações de qualidade da editora.
Qualidade que não se manteve, segundo o diretor responsável pela
criação de Veja em 1968, Mino Carta. Ele considera a publicação da
Abril muito ruim, assim como todas da grande imprensa brasileira, à
qual lê muito pouco, para "não sofrer demais". Na época em lançou o
livro Castelo de Âmbar (Editora Record, 2000), afirmou aos quatro
ventos a incompetência e até a "imbecilidade", em suas palavras, dos
donos da Abril, que "não entendiam nada de Brasil, assim como não
entendem ainda hoje."
O episódio da demissão de Carta do seu posto na revista Veja é um
exemplo do tipo de interesses que pautam os donos da Abril e o
jornalismo de suas publicações. A censura prévia havia sido suspensa em
março de 1974, com a posse do general Ernesto Geisel. Combativa, a
redação publicou três capas seguidas com duras críticas ao governo. A
gota d'água para o regime foi uma charge de Millôr Fernandes, que
apresentava um preso acorrentado e um balão com a fala de um carcereiro
oculto, do lado de fora da cela: "Nada consta".
Na negociação operacional da censura, Carta conta que Roberto
Civita, filho de Victor, ofereceu a cabeça de Millôr a Golbery do Couto
e Silva, chefe da Casa Civil, para tentar evitar a censura. O então
ministro da Justiça, Armando Falcão, queria a cabeça de Carta. No
livro, ele menciona uma carta escrita por Sérgio Pompeu de Souza, o
preferido de Falcão e diretor da sucursal de Brasília, sugerindo ao
conselho a demissão do diretor para facilitar as coisas para a revista.
Carta afirma que, entre as facilidades, estava incluso a liberação de
um financiamento da Caixa Econômica Federal para saldar uma dívida de
50 milhões de dólares no exterior.
Na versão oficial, reproduzida no livro de Conti, os Civita queriam
noticiar os progressos do país e Carta, só os aspectos negativos do
regime. Queriam ainda expandir o grupo, com a construção de hotéis. Foi
preciso ceder ao governo. O episódio decisivo foi a exigência da
demissão do dramaturgo Plínio Marcos, colunista da revista. A negativa
de Carta em fazê-lo foi o motivo alegado para o seu desligamento, em
abril de 1976. Dois meses depois, a censura na revista acabou.
Desde então, Veja tem servido a interesses políticos e econômicos
para preservar os seus, ainda que isso implique mudança de posição. Um
exemplo foi o comportamento na ascensão e queda do ex-presidente
Fernando Collor de Melo. O livro Notícias do Planalto, de Mário Sérgio
Conti, conta em detalhes o período, ainda que inclua a maioria da
grande imprensa. Da capa sobre "O caçador de marajás", em 1988, até a
"Caso encerrado", sobre a morte de Paulo César Farias, a despeito do
laudo do médico-legista Fortunato Badan Palhares, em 1993. A adesão
automática à candidatura alternativa aos perigosos Leonel Brizola e
depois Luiz Inácio Lula da Silva, favoritos naquele pleito, foi dando
lugar aos escândalos de corrupção no decorrer do governo.
Os que têm seus interesses atendidos pela revista também mudam. Para
Tognolli, durante a década de 1980, a revista vivia sob a tutela de
Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), quando Elio Gaspari era o diretor da
revista. Nos anos de Mário Sérgio Conti, houve uma pequena melhora, até
a transição ocorrida nos anos de Fernando Henrique em Brasília. "O que
antes era ninho dos baianos, hoje é ninho dos tucanos. Quem começou a
campanha da mídia contra o atual governo foi Veja", sustenta.
Um levantamento das capas entre os anos de 2000 e 2005 mostram
claramente o seu jornalismo tendencioso. Política interna e economia
são os temas de capa mais freqüentes em 2000, 2002 e 2005.
Curiosamente, em 1998, ano de eleições federal e estadual, esses temas
estiveram bem ausentes: só foram destacados em 11 das 52 edições. Nada
se compara a 2005, em que quase metade das 28 capas produzidas até o
fechamento desta reportagem destaca temas políticos. Desnecessário
dizer que o prato principal era a corrupção.
Um exemplo foi o uso de uma pesquisa do Instituto Ipsos Opinion,
divulgado pela revista na edição de 13 de julho. No levantamento,
constatou-se que 55% dos entrevistados acreditavam que Lula conhecia o
esquema de corrupção, ao mesmo tempo em que a popularidade pessoal e do
governo permaneciam estáveis em relação ao estudo anterior. A avaliação
dos analistas do grupo, de que a imagem do presidente permanecia
intacta, foi omitida, o inverso do apregoado pela reportagem de capa. A
visão dos autores só foi publicada depois de duas edições na seção de
cartas, sem o menor destaque.
Raimundo Pereira acredita que, se não fosse o caso do financiamento
de campanha, é bem possível que se achasse outro assunto para
desmoralizar o atual governo. "Veja não está isolada em sua ação, mas é
a ponta de lança, a que tem mais prestígio e circulação", avalia.
Tratamento bem diferente daquele dado ao caso da compra de votos
para a aprovação da emenda da reeleição, em 1997. Naquele ano, apenas
uma capa foi feita sobre o assunto, com o rosto de Sérgio Motta, então
ministro-chefe da Casa Civil, e a chamada "Reeleição" e "A compra de
votos no Congresso", em letras menores. Como se não fosse corrupção.
Assepsia total para o Planalto. Um servilismo ao governo que, com os
petistas no poder, se transformou em ódio.