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Fundamentalismo ambiental põe em risco o desenvolvimento do Equador
Igor Fuser
Uma feroz disputa política agita o Equador e suscita debates
pelo mundo afora. A polêmica tem como foco o Parque Natural de Yasuní,
que o presidente equatoriano Rafael Correa decidiu recentemente abrir
para a exploração petroleira. A questão foi submetida à votação da
Assembleia Nacional, em Quito, nesta quinta-feira, 3 de outubro, quando a
posição de Correa foi referendada por 108 votos a 25, em meio a
protestos de entidades ambientalistas dentro e fora do Equador. Junto
com o futuro desse parque amazônico – uma das principais reservas de
biodiversidade do planeta – está em jogo uma questão muito cara a todos
os partidários da ideia de um “outro mundo possível”: quando os ideais
da preservação ambiental entram em choque com as necessidades humanas da
sobrevivência, dignidade e bem-estar, qual dos dois lados deve
prevalecer?
Em teoria, esse conflito não deveria existir.
Afinal, os trabalhadores explorados pelo capitalismo são os maiores
prejudicados pela devastação da natureza e pela atual catástrofe
climática, causada justamente pela febre da acumulação incessante de
capital. Ambientalistas e socialistas marcharam juntos nos encarniçados
embates contra as principais instituições do capitalismo global, na
virada do século, quando chegaram a impedir a realização de uma reunião
da Organização Mundial do Comércio, em Seattle (EUA). Na América do Sul,
essa aliança esteve presente na formação de governos populares, na
Bolívia (2006) e no Equador (2007), que adotaram entre seus princípios o
conceito indígena do “bem viver”. Por essa expressão, um tanto
imprecisa, entendia-se a valorização da existência humana em um plano
que vai além do consumismo contemporâneo e inclui a busca do equilíbrio
com a natureza.
Na sua atuação prática, esses dois governos de
esquerda logo se depararam com escolhas difíceis que trouxeram à tona
interpretações divergentes sobre o “bem viver”. Na Bolívia, o presidente
Evo Morales enfrentou em 2011 a duríssima resistência de organizações
indígenas e ambientalistas que, com forte apoio no exterior, tentaram
bloquear o projeto de construção de uma rodovia atravessando a reserva
indígena conhecida pela sigla Tipnis (Território Indígena e Parque
Nacional Isiboro Secure). Marchas e protestos sacudiram o país durante
meses. Morales defendia a obra como indispensável para superar o
isolamento econômico de uma enorme região (a província do Bení) e
incrementar a presença dos serviços públicos na Amazônia boliviana. O
impasse só se resolveu quando, consultados em referendo, os habitantes
nativos do Tipnis se manifestaram, na sua maioria, a favor da estrada.
Extrativismo a serviço das políticas sociaisO
Equador enfrenta um conflito semelhante. Desde sua instalação, o
governo de Correa tem apresentado um desempenho extraordinário no campo
social, com significativa redução da pobreza e melhoria dos indicadores
de saúde, emprego e educação. Mas esses avanços se devem, em grande
medida, à manutenção de um modelo econômico extrativista, com ênfase na
exploração de minérios e do petróleo, exportados na condição de
commodities para os países industrializados. São essas receitas que
financiam as políticas sociais e impulsionam o crescimento da economia.
Nesse
contexto deve ser entendido o impasse em torno da exploração petroleira
na Amazônia. Com 982 mil hectares, o Parque Yasuní abriga uma imensa
variedade de espécies vegetais e animais, além de ser habitado por
várias etnias indígenas, entre elas dois povos, os tagaeri e os
taromenane, que vivem em isolamento, por vontade própria. No subsolo do
parque, repousam 900 milhões de barris de petróleo, o equivalente a 25%
das reservas equatorianas.
O Equador é um país muito pobre,
carente de dinheiro para a construção de escolas, hospitais, estradas,
moradias populares. Não pode se dar o luxo de renunciar à exploração dos
seus recursos naturais. Dificilmente Correa escaparia, portanto, de
adotar medidas para o aproveitamento do petróleo de Yasuní. De outra
forma, deixaria de cumprir seu compromisso com o desenvolvimento
econômico e social do país – uma falta que lhe seria impiedosamente
cobrada pela oposição direitista. O Equador é uma democracia, não se
pode esquecer, e jamais, em país algum, o ecologismo radical conseguiu
os votos da maioria do eleitorado.
Ainda assim, e com sua equipe
de governo dividida entre defensores e adversários da extração
petroleira em Yasuní, o presidente lançou, em 2008, uma audaciosa
proposta ao mundo: manter o petróleo do parque debaixo da terra,
intocado, em troca de uma compensação financeira, pela comunidade
internacional, de US$ 3,6 bilhões, equivalente à metade da receita que o
país perderia ao abrir mão desse recurso.
Campanha de desmoralização, sem argumentos concretosA
Iniciativa Yasuní, como foi denominada, fracassou totalmente, por falta
de doadores. Em cinco anos de peregrinação pelas capitais do “Primeiro
Mundo”, os emissários equatorianos arrecadaram menos de 1% da quantia
pretendida. Diante desse resultado, Correa anunciou, em agosto deste
ano, o que chamou de “Plano B”, entregando os blocos petrolíferos de
Yasuní à estatal Petroecuador, que buscará parceria com empresas
internacionais (de preferência, chinesas) para dar início ao projeto de
extração.
De herói ecológico, Correa passou a ser tratado como
um inimigo da natureza. Os ambientalistas – equatorianos e estrangeiros –
deflagraram uma campanha de desmoralização do presidente equatoriano,
sem apresentar qualquer alternativa exceto a de deixar o petróleo sob o
solo, em um país onde mais da metade da população sofre pela
inexistência de saneamento básico.
Os detratores de Correa
desprezam, propositalmente, o fato de que o projeto petroleiro do Yasuní
prevê impacto direto apenas em uma ínfima parcela do parque – um
milésimo da área total, segundo o governo. As normas estabelecidas, e
aprovadas pela Assembleia Nacional, proíbem a construção de estradas nos
marcos do projeto. O material de construção será transportado de
helicóptero ou pelas vias fluviais existentes, e os oleodutos para o
escoamento da produção ficarão enterrados. Para evitar contaminação do
solo, a água e o petróleo serão utilizados em circuitos fechados, sem
contato com o ambiente externo. Técnicas modernas de perfuração
horizontal reduzirão a quantidade de torres petrolíferas. As regiões
onde vivem os índios isolados foram declaradas intangíveis – os
trabalhos serão imediatamente interrompidos em caso de algum contato com
essas populações.
Mas os opositores do projeto se mantêm
intransigentes na sua desconfiança, quando prestariam um serviço melhor à
causa ecológica se empenhando em reforçar as garantias de que a
exploração será conduzida de forma responsável, com o cumprimento das
promessas do governo. Difundem um discurso de ceticismo absoluto, sem
apresentar motivos que justifiquem tal postura. Denunciam o barulho dos
helicópteros como ameaça ecológica (estressaria os pássaros e assustaria
os índios). O alarmismo reina na blogosfera: “vão destruir o parque”,
“milhares de espécies serão extintas”...
Os acusadores mais
afoitos chegam a listar o nome de Correa entre os vilões do aquecimento
global, desconsiderando a obviedade de que não é a extração de petróleo
que causa o agravamento do efeito estufa, e sim o seu consumo – da mesma
maneira que os plantadores de coca das regiões andinas não podem ser
culpados pelos problemas de saúde dos viciados em cocaína ou em crack.
“Viver bem” só é possível com o desenvolvimentoHá
muito de oportunismo político, evidentemente, na ofensiva contra o
presidente equatoriano, mas o importante a assinalar aqui é o grave
equívoco que se comete ao apresentar o desenvolvimento e a
sustentabilidade ambiental como objetivos incompatíveis. Na raiz desse
erro, encontra-se a concepção fundamentalista de que a natureza é
“sagrada”. Assim, sua proteção é erigida em valor supremo, acima das
necessidades humanas.
Na realidade, a busca do “bem viver” se
articula com demandas muito concretas, que dependem de dinheiro público
para serem atendidas. Viver bem pressupõe dentistas, luz elétrica,
mobilidade. Ninguém quer ver os filhos morrerem por falta de atendimento
médico ou rejeita o aumento da expectativa de vida que só é possível
com o acesso aos benefícios da civilização moderna. O desenvolvimento é
um pré-requisito para a melhoria das condições de vida e também para
que se possam adotar políticas ambientais efetivamente sustentáveis.
A
extração do petróleo do Yasuní gerará recursos preciosos para que o
Equador possa enfrentar seus problemas econômicos e sociais. Mas não
resolverá – e nisso os críticos de Correa têm razão – o desafio de
superar os limites do extrativismo (assim como a renúncia a esse projeto
estaria longe de trazer qualquer progresso no rumo de uma economia mais
diversificada). O governo equatoriano argumenta que a exploração dos
recursos naturais é o único caminho para viabilizar a transição para uma
economia avançada, com ênfase na industrialização. A conferir.
O
que realmente não faz qualquer sentido é deixar o petróleo debaixo da
terra em nome de uma ideia romântica de “impacto ambiental zero”. Quem
defende essa posição deveria também, por coerência, ter a coragem de
propor que o Brasil desista do pré-sal, em nome do combate ao efeito
estufa e à poluição do mar. Alguém é a favor?
(*) Igor
Fuser é professor na Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em
Ciência Política pela USP e autor do livro “Energia e Relações
Internacionais” (Editora Saraiva, 2013)