O Abecedário de Gilles Deleuze
Por Bernardo Rieux
Algum internauta paciente e muito bem intencionado tomou a iniciativa
de fazer a tradução das mais de 7 horas de entrevista feitas a Deleuze
por Claire Parnet, compiladas em vídeo. Abaixo, segue o resultado.
A cláusula
Claire Parnet [1994]: Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na TV.
Mas atualmente ele acha sua doença tão parecida com a petite mort, da
canção de A. Souchon, que mudou de opinião. Mantive, porém, sua
declaração ["a cláusula"], feita em 1988, no início da filmagem:
Gilles Deleuze [1988]: Você escolheu um abecedário, me preveniu sobre
os temas, não conheço bem as questões, mas pude refletir um pouco
sobre os temas... Responder a uma questão, sem ter refletido, é para
mim algo inconcebível. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que
isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após
minha morte.
Então, já me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-André
Boutang, de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e
quase no estado de puro espírito, eu falo, falo ...após minha morte...
e, como se sabe, um puro espírito, basta ter feito a experiência da
mesa girante [do espiritismo], para saber que um puro espírito não dá
respostas muito profundas, nem muito inteligentes, é um pouco vago,
então está tudo certo, tudo certo para mim, vamos começar: A, B, C,
D... o que você quiser.
A de Animal
CP: Então começamos com A. A é Animal. Poderíamos considerar sua a
frase de W. C. Fields: "Um homem que não gosta nem de crianças, nem de
animais não pode ser totalmente ruim". Por enquanto, deixemos de lado
as crianças, sei que você não gosta muito de animais domésticos, e nem
prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos cachorros. Em
compensação, você tem um bestiário, ao longo de sua obra, que é
bastante repugnante, ou seja, além das feras, que são animais nobres,
você fala muito do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais
como esses, repugnantes, e além disso, que os animais lhe serviram
muito desde O anti-Édipo. Um conceito importante em sua obra é o devir-
animal. Qual é, então, sua relação com os animais?
GD: Os animais não são... O que você disse sobre minha relação com os
animais domésticos, não é o animal doméstico, domado, selvagem, o que
me preocupa. O problema é que os gatos, os cachorros, são animais
familiares, familiais, e é verdade que desses animais domados,
domésticos, eu não gosto. Em compensação, gosto de animais domésticos
não-familiares, não-familiais. Gosto, pois sou sensível a algo neles.
Aconteceu comigo o que acontece em muitas famílias. Não tinha gato,
nem cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que
não era maior que sua mãozinha. Ele o tinha encontrado, estávamos no
campo, em um palheiro, não sei bem onde, e a partir desse momento
fatal, sempre tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos?
Bem, não foi um calvário, eu suporto, o que me incomoda... não gosto
dos roçadores, um gato passa seu tempo se roçando, roçando em você,
não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo,
fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser
o grito mais estúpido. E há muitos gritos na Natureza! Há uma
variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino
animal. Suporto, em compensação, suporto mais, se não durar muito, o
grito, não sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva
para a lua, eu suporto mais.
CP: O uivo para a morte.
GD: Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando soube
que cachorros e gatos fraudavam a previdência social, minha antipatia
aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo é bem bobo, porque as pessoas que
gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm uma relação com eles
que não é humana. Por exemplo, as crianças, têm uma relação com eles
que não é humana, que é uma espécie de relação infantil ou... o
importante é ter uma relação animal com o animal. O que é ter uma
relação animal com o animal? Não é falar com ele... Em todo caso, o
que não suporto é a relação humana com o animal. Sei o que digo porque
moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros
para passear. O que ouço de minha janela é espantoso. É espantoso como
as pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a própria psicanálise. A
psicanálise está tão fixada nos animais familiares ou familiais, nos
animais da família, que qualquer tema animal... em um sonho, por
exemplo, é interpretado pela psicanálise como uma imagem do pai, da
mãe ou do filho, ou seja, o animal como membro da família. Acho isso
odioso, não suporto. Devemos pensar em duas obras primas de Douanier
Rousseau: o cachorro na carrocinha que é realmente o avô, o avô em
estado puro, e depois o cavalo de guerra, que é um bicho de verdade. A
questão é: que relação você tem com o animal? Se você tem uma relação
animal com o animal... Mas geralmente as pessoas que gostam dos
animais não têm uma relação humana com eles, mas uma relação animal.
Isso é muito bonito, mesmo os caçadores, e não gosto de caçadores,
enfim, mesmo eles têm uma relação surpreendente com o animal. Acho que
você me perguntou, também, sobre outros animais. É verdade que sou
fascinado por bichos como as aranhas, os carrapatos, os piolhos. É tão
importante quanto os cachorros e gatos. E é também uma relação com
animais, alguém que tem carrapatos, piolhos. O que quer dizer isto?
São relações bem ativas com os animais. O que me fascina no animal?
Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por muitos
animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a
primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É curioso, pois muita
gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou
seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos. Um
mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é isso que
emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de
coisas...
Essa história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos
animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses
mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona
muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O
carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só
ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele
tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele
pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada,
completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um
bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie
de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa
sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então,
quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com
menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se
pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele
extrai, seleciona três coisas.
CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?
GD: É isso que faz um mundo.
CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também,
alguém que tem um mundo?
GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para
ser um animal. O que me fascina completamente são as questões de
território e acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer
que é filosófico, com a idéia de território. Os animais de território,
há animais sem território, mas os animais de território são
prodigiosos, porque constituir um território, para mim, é quase o
nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu território,
todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histórias de glândulas
anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu
território. O que intervém na marcação é, também, uma série de
posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os
macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles
manifestam na fronteira do território... Cor, canto, postura, são as
três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas
animais são, às vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte
em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu
território ou quando voltam para ele, seu comportamento... O
território é o domínio do ter. É curioso que seja no ter, isto é,
minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de
Michaux. O território são as propriedades do animal, e sair do
território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o
reconhecem no território, mas não fora dele.
CP: Quais?
GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em
mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um
problema filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no
abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem palavras
bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço
questão de refletir sobre essa noção de território. E o território só
vale em relação a um movimento através do qual se sai dele. É preciso
reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então,
Félix e eu construímos um conceito de que gosto muito, o de
desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura, e o
que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosófico
só pode ser designado por uma palavra que ainda não existe. Mesmo se
se descobre, depois, um equivalente em outras línguas. Por exemplo,
depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish,
e outlandish, pronuncio mal, você corrige, outlandish é, exatamente, o
desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia,
antes de voltar aos animais, para a filosofia é surpreendente.
Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de
uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há
território sem um vetor de saída do território e não há saída do
território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um
esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece
nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio dos signos. Os
animais emitem signos, não param de emitir signos, produzem signos no
duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que
toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles
produzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso é um signo de
lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer,
como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os
que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais,
têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal
com o animal. É formidável.
CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o
animal da escrita e do escritor?
GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à
espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.
CP: Como o escritor?
GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente
que estamos à espreita. O animal é... observe as orelhas de um animal,
ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo.
Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo
atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você
faz a aproximação entre o escritor e o animal.
CP: Você a fez antes de mim.
GD: É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um
escritor escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido
a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor também
escreve pelos não-leitores, ou seja, "no lugar de" e não "para uso
de". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu
páginas que todo mundo conhece. "Escrevo pelos analfabetos, pelos
idiotas". Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os
idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam,
mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos
selvagens, escrevo no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por
que se diz uma coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos
idiotas, dos bichos". É isso que se faz, literalmente, quando se
escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. São
realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de
todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se
acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua
historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de
amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse
tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar,
realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia,
e o que isso quer dizer...
CP: É escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar
de". É o que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O
escritor é um bruxo, pois vive o animal como a única população frente
à qual é responsável".
GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples.
Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra
coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe,
porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite,
limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que
separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem
da música, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar
doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que
conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A
metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece um animal". Piar
doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo
dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que
sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como
bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os
vários gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou
seja, vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto
para morrer. Há um território para a morte também, há uma procura do
território da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava
se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para
morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém que força a linguagem
até um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito,
do canto, deve-se então dizer que o escritor é responsável pelos
animais que morrem, e ser responsável pelos animais que morrem,
responder por eles... escrever não para eles, não vou escrever para
meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é
levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a
linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar
nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que
separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite
que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado
dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito
humano, há relações animais com o animal. Seria bom se terminássemos
com o A.
B de Beber
CP: Vamos passar para o B.
CP: B é um pouco particular, é sobre a bebida. Você bebeu e parou de
beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o que era beber? Tinha
prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso
perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras.
Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há
equivalente com a comida. Há gulosos, há pessoas... comer sempre me
desagradou, não é para mim, mas a bebida é uma questão... Entendo que
não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas é
nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que quer dizer questão de
quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras, porque
eles sempre dizem: "Eu controlo, paro de beber quando quiser". Zombam
deles, porque não se entende o que querem dizer. Tenho lembranças bem
claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando
se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer
tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um alcoólatra
é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no
último copo. O que isto quer dizer? É um pouco como a fórmula de
Péguy, que é tão bela: não é a última ninféia que repete a primeira, é
a primeira ninféia que repete todas as outras e a última. Pois bem, o
primeiro copo repete o último, é o último que conta. O que quer dizer
o último copo para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã, se for um
alcoólatra da manhã, há todos os gêneros, se for um alcoólatra da
manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último copo. Não é o
primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um
alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte:
ele avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode agüentar, sem
desabar... Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o
último copo e todos os outros serão a sua maneira de passar, e de
atingir esse último. E o que quer dizer o último? Quer dizer: ele não
suporta beber mais naquele dia. É o último que lhe permitirá recomeçar
no dia seguinte, porque, se ele for até o último que excede seu poder,
é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder para
chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está acabado,
vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De
modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o
penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não procura o último copo,
procura o penúltimo copo. Não o último, pois o último o poria fora de
seu arranjo, e o penúltimo é o último antes do recomeço no dia
seguinte. O alcoólatra é aquele que diz e não pára de dizer: vamos...
é o que se ouve nos bares, é tão divertida a companhia de alcoólatras,
a gente não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o último, e
o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz: paro hoje
para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára de beber
totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux disse
tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não estão tão
separados. Há um momento em que isso se torna perigoso demais, porque,
aí também é uma crista, como quando eu dizia "a crista entre a
linguagem e o silêncio", ou a linguagem e a animalidade, é uma crista,
é um estreito desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer
tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for
um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício. Beber,
se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em
sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia
suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o
que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder
suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar,
se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito
simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo
forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo
caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é evidente que
quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se
torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais
interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se
pensava que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são
necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o
que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro
muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é... ele
pára. Eu tenho menos mérito, porque parei de beber por razões de
respiração, de saúde, etc., mas é evidente que se deve parar ou se
privar disso. A única justificação possível é se isso ajuda o
trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se
avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter se drogado, bebido muito
para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, você diz:
quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se
entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a
vida. Aí há a questão dos escritores de que se gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é algo forte
demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota,
que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar
em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... um dos
que mais admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo
tempo que é isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a
perceber algo grande demais para eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência da vida,
que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potência da
vida.
GD: O álcool não o fará sentir...
CP: ... que havia uma potência da vida forte demais para eles, e que
só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool para
eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem
razão, que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me ajudava
a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava,
depois percebi que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha
vontade de trabalhar se bebesse. Então se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores franceses que
confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há algo que faz parte
da escrita...
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita. Não sei
se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de visão, de
vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma
questão... De maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem, não é
esta a concepção francesa da literatura, mas note, houve também muitos
alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita dificuldade, os
que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua queda pela bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o
percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em um
apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma
maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem, terminamos
com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
C de Cultura
CP: Se se pode abusar um certo tempo do álcool, da cultura não se deve
ir além da dose. É até um pouco repugnante. Bem, terminamos com o
álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
GD: O que é?
CP: C de Cultura.
GD: Sim, por que não?
CP: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou só olha as
coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho
definido, preciso, que está fazendo, mas, ao mesmo tempo, você vai
todos os sábados a uma exposição, a um filme do grande campo cultural,
tem-se a impressão de que há uma espécie de esforço para a cultura,
que você sistematiza e que tem uma prática cultural, ou seja, que você
sai, faz um esforço, tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é
culto. Como explica tal paradoxo? Você não é culto?
GD: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um
intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão simples: é
que quando vejo alguém culto, fico assustado, não fico tão admirado,
admiro certas coisas, outras, não, mas fico assustado. A gente nota
alguém culto. É um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos
intelectuais, eles sabem tudo, bem, não sei, sabem tudo, estão a par
de tudo, sabem a história da Itália, da Renascença, sabem geografia do
Pólo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem
falar de tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem
intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber de
reserva. Pelo menos não tenho esse problema. Com minha morte, não se
precisará procurar o que tenho para publicar, nada, pois não tenho
reserva alguma. Não tenho nada, provisão alguma, nenhum saber de
provisão, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a
tarefa, esqueço. De modo que, se dez anos depois, sou forçado, isso me
alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no mesmo tema,
tenho de recomeçar do zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza
está em meu coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça,
senão... Por que não admiro essa cultura assustadora? Pessoas que
falam...
CP: É erudição ou opinião sobre tudo?
GD: Não é erudição, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na
História, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, é assustador,
ouvi nomes, então, como tenho muita admiração, posso dizer, gente como
Umberto Eco, é prodigioso, o que quer que lhe digam, pronto, é como se
apertassem em um botão, e ele sabe, além disso... Não posso dizer que
invejo isso. Fico assustado, mas não invejo. O que é a cultura? Ela
consiste em falar muito, não posso me impedir de... sobretudo agora
que não dou mais aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais,
falar é um pouco sujo. É um pouco sujo, a escrita é limpa. Escrever é
limpo e falar é sujo. É sujo porque é fazer charme. Nunca suportei
colóquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei
colóquios. Não viajo. Por que não? Porque... os intelectuais... eu
viajaria se... enfim, não. Aliás, não viajaria, minha saúde me proíbe,
mas as viagens dos intelectuais são uma palhaçada. Eles não viajam, se
deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vão para outro
para falar. E, mesmo no almoço, eles vão falar com os intelectuais do
lugar. Não vão parar de falar. Não suporto falar, falar, falar, não
suporto. Como me parece que a cultura está muito ligada à fala. Nesse
sentido, odeio a cultura, não consigo suportá-la.
CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois você
foi um grande professor e a solução...
GD: É diferente.
CP: Voltaremos a isso. A letra P está ligada a seu trabalho de
professor. Falaremos da sedução. Queria voltar a algo que você evitou,
que é seu esforço, a disciplina que você se impõe, mesmo não
precisando dela, para ver, por exemplo, nos últimos 15 dias, a
exposição de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Você vai com
freqüência, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma exposição de
pintura. Você não é erudito, não é culto, não tem admiração por
pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforço? É
prazer?
GD: Claro, é prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa história de
estar à espreita. Não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em
encontros. E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é
com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da
cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios,
essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas,
com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma
música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas
querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não
dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem
decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas.
Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc., não
estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será que há
matéria para encontro, um quadro, um filme, então é formidável. Dou um
exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair e de
ficar. Ficar na filosofia é também como sair da filosofia? Mas sair da
filosofia não quer dizer fazer outra coisa, por isso é preciso sair
permanecendo dentro. Não é fazer outra coisa, escrever um romance,
primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso não me diria
nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. É isso o que me
interessa.
CP: O que isso quer dizer?
GD: Dou um exemplo, como isso é para depois de minha morte, posso
deixar de ser modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande
filósofo chamado Leibniz e insistindo em uma noção que me parece
importante nele, mas que é muito importante para mim: a noção de
dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre essa noção, um
pouco estranha, de dobra. O que me acontece depois? Recebo cartas,
como sempre, há cartas insignificantes, mesmo se são encantadoras e
calorosas, e me toquem muito. São cartas que me dizem, muito bem...
são cartas de intelectuais que gostaram ou não do livro. E então
recebo duas cartas, dois tipos de cartas, em que esfrego os olhos...
Há cartas de pessoas que dizem: "Mas sua história de dobra, somos
nós". E percebo que são pessoas que fazem parte de uma associação que
agrupa 400 pessoas na França, hoje, e deve crescer. É a associação de
dobradores de papéis, eles têm uma revista, me enviam a revista e
dizem: "Concordamos totalmente, o que você faz é o que fazemos". Digo
para mim: isso eu ganhei. Recebo outra carta, e falam da mesma maneira
e dizem: "A dobra somos nós". É uma maravilha. Primeiro isso lembra
Platão, porque em Platão... os filósofos, para mim, não são pessoas
abstratas, são grandes escritores, grandes autores bem concretos. Em
Platão há uma história que me enche de alegria, e está ligada ao
início da filosofia, voltaremos a isso depois. O tema de Platão é: ele
dá uma definição, por exemplo, o que é o político? O político é o
pastor dos homens, e sobre isso há muita gente que diz: o político
somos nós, por exemplo, o pastor chega e diz: visto os homens, logo
sou o verdadeiro pastor dos homens. O açougueiro diz: alimento os
homens, sou o pastor dos homens. Os rivais chegam... Tive esta
experiência, os dobradores de papéis chegam e dizem: a dobra somos
nós. Os outros, que me enviaram o mesmo tipo de carta, é incrível,
foram os surfistas. À primeira vista não há relação alguma com os
dobradores de papéis. Os surfistas dizem: "concordamos totalmente,
pois, o que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da
natureza. Para nós, a natureza é um conjunto de dobras móveis. Nós nos
insinuamos na dobra da onda, habitar a dobra da onda é a nossa
tarefa". Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles falam disso de
modo admirável. Eles pensam, não se contentam em surfar, eles pensam o
que fazem. Voltaremos a falar disto se chegarmos ao esporte [sport],
ao S...
CP: Está longe. Partimos do encontro, são encontros, os dobradores de
papéis?
GD: São encontros. Quando digo sair da filosofia pela filosofia...
Sempre me aconteceu isso, são encontros, encontrei os dobradores de
papéis, não preciso vê-los, aliás, ficaríamos decepcionados,
provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. Não preciso vê-los, mas
tive um encontro com o surfe, com os dobradores de papéis,
literalmente, saí da filosofia pela filosofia, é isso um encontro.
Acho que os encontros... quando vou ver uma exposição, estou à
espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me
comova, quando vou ao cinema, não vou ao teatro, o teatro é longo
demais, disciplinado demais, é demais. E não me parece uma arte... a
não ser Bob Wilson e Carmelo Bene. Não acho que o teatro seja voltado
para nossa época, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas
sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de saúde, isso
liquida o teatro para mim. Uma exposição de pintura, ou o cinema...
Sempre tenho a impressão que posso ter o encontro com uma idéia.
CP: Mas o filme, por mera distração, não existe?
GD: Isso não é cultura.
CP: Não é cultura, mas não há distração?
GD: Minha distração é...
CP: Tudo está em seu trabalho.
GD: Não é um trabalho, é a espreita, estou à espreita de algo que
passa dizendo para mim... isso me perturba. É muito divertido.
CP: Mas não é Eddie Murphy que vai te perturbar?
GD: Não é...?
CP: Eddie Murphy é um...
GD: Quem é?
CP: Um ator cômico americano, cujos últimos filmes são verdadeiros
sucessos. Nunca vai ver...?
GD: Não conheço. Só vi Benny Hill na TV. Benny Hill me interessa, não
escolho, necessariamente, coisas muito boas, tenho razões para me
interessar.
CP: Mas quando sai, é para um encontro?
GD: Quando saio, se não há idéia para tirar daí, se não digo: havia
uma idéia... O que é um grande cineasta? Vale também para cineastas, o
que me toca na beleza, por exemplo, um grande como Minnelli ou como
Losey, o que me toca neles? Eles são perseguidos por idéias, uma
idéia...
CP: Está queimando a letra I.
GD: Idéia...
CP: Está queimando a letra I, pare logo.
GD: Paramos aí, mas é isso o que me parece ser um encontro. Temos
encontros com coisas, antes de os ter com pessoas.
CP: Nesse momento, para falar de um período preciso, que é o do
momento, você tem muitos encontros?
GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais quer? Não
são encontros com intelectuais. Ou então, se encontro um intelectual é
por outras razões, não porque gosto dele, é por aquilo que ele faz,
seu trabalho atual, seu charme, tudo isso. Temos encontros com o
charme, com o trabalho das pessoas, e não com as pessoas, não dou a
mínima para elas.
CP: Além disso eles podem roçar, como os gatos?
GD: Se só tiverem isso, o roçar, o latido, é terrível.
CP: Retomamos os períodos ricos e os períodos pobres da cultura. Você
acha que não estamos em um período tão rico, vejo você sempre irritado
diante da TV, dos programas literários, que não citaremos, embora no
momento em que isso for exibido os nomes serão outros, acha que é um
período rico ou um período pobre, o que vivemos?
GD: É pobre, e, ao mesmo tempo, não é angustiante. Me faz rir. Na
minha idade, digo para mim: não é a primeira vez que há períodos
pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade para me entusiasmar um
pouco. Vivi a Liberação. A Liberação foi um dos períodos mais ricos
que se possa imaginar. Descobria-se ou redescobria-se tudo, na
Liberação. Tinha havido a guerra, etc. Não era pouco. Descobria-se
tudo: o romance americano, Kafka, havia uma espécie de mundo da
descoberta, havia Sartre, não se pode imaginar o que foi,
intelectualmente, o que se descobria ou redescobria em pintura, etc.
CP: No cinema?
GD: É preciso entender coisas como a grande polêmica: deve-se queimar
Kafka? É inimaginável, hoje parece um pouco infantil, mas era uma
atmosfera criadora. Então conheci o antes de 68, que foi um período
muito rico até depois de 68, enquanto que, nesse entremeio havia
períodos pobres. São normais, períodos pobres. Não é a pobreza que é
incômoda, é a insolência ou a impudência daqueles que ocupam os
períodos pobres. Eles são mais maldosos do que as pessoas geniais que
se animam nos períodos ricos.
CP: São geniais ou obedientes, pois se fala da polêmica sobre Kafka na
Liberação... Vi fulano de tal dizer, contente e rindo, que nunca havia
lido Kafka.
GD: Claro, são contentes, quanto mais bobos, mais contentes. São os
que consideram, voltamos a isso, que literatura é contar uma história
pessoal. Se se acha isso, não é preciso ler Kafka. Não há necessidade
de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita bonitinha, se é, por
natureza, igual a Kafka. Não é trabalho. Como te explicar? Para falar
de coisas mais sérias que esses tolos: fui ver, há pouco tempo, um
filme...
CP: De Paradjanov.
GD: Não, esse é admirável, mas um filme emocionante, de um russo...
que fez seu filme há trinta anos, e ele só passou agora.
CP: La commissaire?
GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o filme
era muito bom, perfeito, mas eu pensava, com terror ou com uma espécie
de compaixão, que era um filme como os russos faziam antes da guerra.
CP: Do tempo de Eisenstein?
GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a montagem
paralela, sublime, etc., como se nada tivesse acontecido desde a
guerra, como se nada tivesse acontecido no cinema. Dizia para mim: é
forçoso, o filme é bom, mas estranho.
CP: Não muito bom.
GD: Por isso não era bom. Era alguém que trabalhava tão sozinho que...
filmava como há vinte anos. Não que fosse ruim, era muito bom,
prodigioso, há vinte anos... E tudo o que havia acontecido depois, ele
não soubera, crescera em um deserto, é terrível, atravessar um deserto
não é grande coisa, não é atravessar um período de deserto. O terrível
é nascer nele, crescer em um deserto, é horrível, suponho, pois deve-
se ter uma impressão de solidão.
CP: Para os que têm 18 anos agora?
GD: Sim, sobretudo porque... é esse o problema nos períodos pobres.
Quando as coisas desaparecem ninguém se dá conta, por uma razão
simples, quando alguma coisa desaparece, ela não faz falta. O período
staliniano fez desaparecer a literatura russa, mas os russos não se
deram conta, o grosso dos russos, o conjunto dos russos não se deu
conta, uma literatura que foi perturbadora em todo o século 19,
desaparece. Dizem: "agora há os dissidentes, etc.", mas no âmbito do
povo, do povo russo, sua literatura, sua pintura desapareceram, e
ninguém se deu conta. Para se dar conta do que acontece hoje, há, é
claro, novos jovens que são, com certeza, geniais. Suponhamos, a
expressão não é boa, os novos Beckett de hoje...
CP: Tive medo, pensei que fosse dizer os Novos Filósofos.
GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que não sejam publicados.
Afinal, por pouco Beckett não foi publicado. É evidente que não
faltaria nada. Por definição, um grande autor ou um gênio é alguém que
faz algo novo, se esse novo não aparece, isso não incomoda, não faz
falta a ninguém, já que não se tinha idéia disso. Se Proust, Kafka não
tivessem sido publicados, não se pode dizer que Kafka faria falta. Se
o outro tivesse queimado toda a obra de Kafka, ninguém poderia dizer:
Ah, como faz falta! Pois não se teria idéia do que desapareceu. Se os
novos Beckett são impedidos de ser publicados pelo sistema atual da
edição, não se poderá dizer: Ah, como fazem falta! Ouvi uma
declaração, que talvez seja a mais descarada que já ouvi em minha
vida. Não ouso dizer quem. É alguém ligado ao ramo editorial que, em
um jornal, atreveu-se a declarar: "Hoje não arriscamos mais cometer os
erros da Gallimard..."
CP: No tempo de Proust?
GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje...
CP: Os caçadores de cabeças...
GD: Acredita-se que se têm, hoje, os meios para encontrar os novos
Proust, e os novos Beckett. Significa que se teria um contador Geiger
e o novo Beckett, ou seja, alguém perfeitamente inimaginável, já que
não se sabe o que ele faria de novo, ele emitiria um som...
CP: Se o passassem sobre sua cabeça?
GD: O que define a crise hoje, pois há todas essas bobagens? Vejo a
crise hoje ligada a três coisas, mas ela não durará, sou muito
otimista, o que define um período de deserto é, primeiramente, que os
jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles sempre escreveram, acho
bom que escrevam. Mas quando começaram a escrever livros, eles se
deram conta de que passavam a outra forma, que não era a mesma coisa
que escrever seu artigo.
CP: Antes os escritores é que eram os jornalistas. Mallarmé podia
fazer jornalismo. O inverso não aconteceu.
GD: Agora é o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a forma-
livro, acha normal escrever um livro, como se fosse só um artigo. Isso
não é bom. A segunda razão é que se generalizou a idéia de que
qualquer um pode escrever, pois a escrita é vista como uma historinha
de cada um, contada a partir dos arquivos de família, sejam eles
constituídos de anotações ou guardados na memória. Todo mundo teve uma
história de amor, todo mundo teve uma avó doente, uma mãe que morria
de modo terrível. Dizem: isso dá um romance. Mas isso não dá um
romance de modo algum... A terceira razão é que, os verdadeiros
clientes mudaram, e percebe-se isso, exceto as pessoas... Vocês estão
a par, os clientes mudaram, quero dizer, quem são os clientes da
televisão? Não são mais os ouvintes, são os anunciantes. São eles os
verdadeiros clientes. Os ouvintes têm o que os anunciantes querem.
CP: Os telespectadores. Qual é a terceira razão?
GD: Os anunciantes são os verdadeiros clientes, eu dizia, na edição há
um risco de que os verdadeiros clientes dos editores não sejam os
leitores em potencial, que sejam os distribuidores, quando eles forem,
realmente, os clientes dos editores, o que acontecerá? O que interessa
aos distribuidores é a rotação rápida, quer dizer, coisas de grandes
mercados de rápida rotação, regime do best-seller, etc.; ou seja, que
toda a literatura, se ouso dizer, à la Beckett, toda a literatura
criadora será esmagada por natureza.
CP: Isso já existe, pré-formam-se as necessidades de um público.
GD: Sim, mas é isso que define o período de seca, modelo Pivot. É a
nulidade, é a literatura, é o desaparecimento de qualquer crítica em
nome da promoção comercial, mas quando digo: não é grave, quero dizer,
é evidente que haverá circuitos paralelos, ou um circuito onde haverá
um mercado negro, etc., não é possível que um povo viva... A Rússia
perdeu sua literatura, ela vai reconquistá-la, tudo se ajeita, os
períodos ricos sucedem aos períodos pobres. Ai dos pobres!
CP: Ai dos pobres? Sobre essa idéia de mercado paralelo ou negro, já
faz muito tempo que os sujeitos são pré-formados, ou seja, um ano vê-
se, claramente, nos livros publicados, a guerra, no ano seguinte é a
morte dos pais, no outro é a ligação com a natureza, mas nada parece
se formar. Como isso ressurge? Já viu ressurgir um período rico de um
pobre?
GD: Já.
CP: Você assistiu?
GD: Sim, depois da Liberação, a coisa não ia bem, e então houve 68.
Entre o grande período criador da Liberação e o início da Nouvelle
Vague...
CP: Quando foi? Em 60?
GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um período rico.
E isso se reformou em... É um pouco o que diz Nietzsche, alguém lança
uma flecha, uma flecha no espaço, ou então um período, uma
coletividade lança uma flecha e depois ela cai, depois alguém a pega e
a reenvia para outro lugar. A criação funciona assim, a literatura
passa sobre desertos.
D de Desejo
CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo.
Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se
deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois
vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em "Deleuze", que também
se escreve com D. Lê-se: "Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido
em Paris, em 1925".
GD: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: "Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu
aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo
psicanalítica". E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-
Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo,
eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos
colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo...
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo
naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi
uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-
entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande
ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque
se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não
tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa
tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As
pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito
muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples,
concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a
determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos
dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram
abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente,
objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo
partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente
simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um
conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das
relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem
desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de
dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo
uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem
que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado
a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo
não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com
dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma
mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é
evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um
contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não
apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que
não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo
sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um
conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o
álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer
dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho,
repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar.
Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi,
para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria:
é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um
conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...
CP: De uma mulher.
GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.
CP: De uma cor...
GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento,
construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é construtivismo.
O anti-Édipo, que tentava...
CP: Espere, eu queria...
GD: Sim?
CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser
dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que
surgiu em sua vida de escritor?
GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a
relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com
certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos
solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um
agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são
fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento
aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma
diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa,
um raio passa, ou não, um riachinho... É do campo do desejo. Mas um
desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo
construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele
está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.
CP: É um acaso se... porque o desejo é sentido, enfim, existe em um
conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você começa a
falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve com outra pessoa,
com Félix Guattari?
GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento novo
para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da mesma maneira,
para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma
hostilidade, uma reação contra as concepções dominantes do desejo, as
concepções psicanalíticas. Era preciso ser dois, foi preciso Félix,
vindo da psicanálise, eu me interessando por esses temas, era preciso
tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepção
construtiva, construtivista do desejo.
CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença entre o
construtivismo e a interpretação analítica?
GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é múltipla,
mas quanto ao problema do desejo, é... é que os psicanalistas falam do
desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são
padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da
castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de
maledicência sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer
em O anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente à
psicanálise. Esses três pontos são... isso por meu lado, acho que
Félix Guattari também não, não temos nada para mudar nesses três
pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente
não é um teatro, não é um lugar onde há Édipo e Hamlet que representam
sempre suas cenas. Não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O
inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica.
É o contrário da visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde
sempre se agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo
tema é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar,
de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se
olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o
que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e
sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo
do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a
história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos...
CP: ... o clima.
GD: ... as raças, os climas, é em cima disso que se delira. O mundo do
delírio é: "Sou um bicho, um negro!", Rimbaud. É: onde estão minhas
tribos? Como dispor minhas tribos? Sobreviver no deserto, etc. O
deserto é... O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz
isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois
de tantos anos, depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca
entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua
pequena família. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eu dizia: a
literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio
não é sobre o pai e a mãe. O terceiro ponto... Significa isso, o
desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em
agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. E a psicanálise nos
reduz sempre a um único fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe,
ora não sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que é múltiplo,
ignora o construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo:
falávamos de animal, há pouco. Para a psicanálise, o animal é uma
imagem do pai. Um cavalo é uma imagem do pai. É ignorar o mundo! Penso
no pequeno Hans. O pequeno Hans é uma criança sobre a qual Freud dá
sua opinião, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que
lhe dá chicotadas, e o cavalo que dá coices para todos os lados. Antes
do carro, era um espetáculo comum nas ruas, devia ser uma grande coisa
para uma criança. A primeira vez que um garoto via um cavalo caído na
rua e que um cocheiro meio bêbado tentava levantá-lo com chicotadas,
devia ser uma emoção, era a chegada da rua, a chegada na rua, o
acontecimento da rua, sangrento, tudo isso... E então ouvem-se os
psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas é na cabeça
deles que a coisa não vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que
cai e é batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. É um agenciamento
fantástico para um garoto, é perturbador até o fundo. Outro exemplo,
posso dizer... Falávamos de animal. O que é um animal? Mas não há um
animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em
matilhas, são matilhas. Há um caso que me alegra muito. É um texto que
adoro, de Jung, que rompeu com Freud, depois de uma longa colaboração.
Jung conta a Freud que teve um sonho, um sonho de ossuário, sonhou com
um ossuário. E Freud não compreende nada, literalmente, ele diz o
tempo todo: se sonhou com um osso, é a morte de alguém, quer dizer a
morte de alguém. E Jung não pára de lhe dizer: não estou falando de um
osso, sonhei com um ossuário... Freud não compreende. Não vê a
diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são
centenas de ossos, são mil, dez mil ossos. Isso é uma multiplicidade,
é um agenciamento, é... passeio em um ossuário, o que significa isso?
Por onde o desejo passa? Em um agenciamento é sempre um coletivo.
Coletivo, construtivismo, etc. É isso o desejo. Onde passa meu desejo
entre os mil crânios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na matilha?
Qual é minha posição na matilha? Sou exterior à matilha? Estou ao
lado, dentro, no centro dela? Tudo isso são fenômenos de desejo. É
isso o desejo.
CP: Como o O anti-Édipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo
vinha a calhar depois de 68, era toda uma reflexão... daqueles anos e
contra a psicanálise, que continuava seu negócio de pequena loja...
GD: Só o fato de dizer: o delírio delira as raças e as tribos, delira
os povos, delira a história e a geografia, me parece ter estado de
acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco de ar são a
todo esse ar fechado e malsão dos delírios pseudo-familiais. Vimos que
era isso, o desejo. Se começo a delirar, não é para delirar sobre
minha infância, aí também, sobre minha história privada. Delira-se...
O delírio é cósmico... Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre
as partículas, os elétrons e não sobre papai-mamãe... é evidente.
CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-
sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas
que punham em prática esse desejo e isso acabava em amores coletivos,
não tinham compreendido bem. Houve muitos loucos em Vincennes, como
vocês partiam de uma esquizo-análise para combater a psicanálise, todo
mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Víamos cenas
inverossímeis entre os estudantes. Queria que contasse casos
engraçados ou não desses contra-sensos sobre o desejo.
GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em
duas coisas, havia dois casos, que dá no mesmo. Havia os que pensavam
que o desejo era o espontaneísmo, e havia todo tipo de movimentos
espontâneos, o espontaneísmo.
CP: Os célebres maos-spontex...
GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para nós, não
era nem um nem outro, mas não tinha importância, pois, de qualquer
modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas que mesmo os
loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte do que
acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua
disciplina, tinham sua maneira de... faziam seus discursos, suas
intervenções, entravam em um agenciamento, tinham seu agenciamento,
mas entravam em agenciamentos. Tinham uma espécie de astúcia, de
compreensão, de grande benevolência, os loucos. Se quiser, na prática,
eram séries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o
contra-senso era dizer: o desejo é a espontaneidade. De modo que
éramos chamados de espontaneístas, ou então era a festa, mas não era
isso. Era... a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em
dizer para as pessoas: não vão ser psicanalizados, nunca interpretem,
experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham.
O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Félix, não que
ele pensasse diferentemente, pois era, talvez... não sei. Para mim, eu
manteria que havia quatro componentes de agenciamento. Por alto,
quatro, não prefiro quatro a seis... Um agenciamento remetia a estados
de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. Há
pouco, para beber... gosto de um bar, não gosto de outro, alguns
preferem certo bar, etc... Isso é um estado de coisas. Nas dimensões
do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu
estilo, há um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo,
há amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem
seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento
comporta estados de coisas e enunciados, estilos de enunciação. É
interessante, a História é feita disto, quando aparece um novo tipo de
enunciado? Por exemplo, na revolução russa, os enunciados do tipo
leninista, quando eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando
apareceram os primeiros enunciados ditos de 68? É bem complexo. Todo
agenciamento implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada
um com seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um
território. Entro numa sala que não conheço, procuro o território,
lugar onde me sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de
desterritorialização, o modo como saímos do território. Um
agenciamento tem quatro dimensões: estados de coisas, enunciações,
territórios, movimentos de desterritorialização. E é aí que o desejo
corre...
CP: Você não se sente responsável pelas pessoas que tomaram drogas?
Ou, lendo muito ao pé da letra O anti-Édipo, não é como Catão, que
incita os jovens a fazer bobagens?
GD: Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.
CP: E os efeitos de O anti-Édipo?
GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca,
acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas,
nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se você tem razão. Sempre
fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à
coisa minúscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele
beba, muito bem... Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, não
gosto de criticá-las. Acho que se deve ficar atento para o ponto em
que a coisa não funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem,
não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los ou ...
mas fazer tudo para que não virem trapos. No momento em que há risco,
eu não suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se
droga de tal modo que, não sei, de modo selvagem, de modo que digo
para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto. Sobretudo o caso de
um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável. Um
velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem
que se ferra por besteira, por imprudência, porque bebeu demais...
Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o
desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. É um
desfiladeiro estreito, não posso dizer que há princípios, a gente sai
fora como pode, a cada vez. É verdade que o papel das pessoas, nesse
momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los
não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de
virar trapo. É só o que quero.
CP: Mas sobre os efeitos de O anti-Édipo, houve efeitos?
GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento... que
um cara que desenvolvia... um início de esquizofrenia fosse colocado
em boas condições, não fosse jogado num hospital repressivo, tudo
isso... Ou então que alguém que não suportava mais, um alcoólatra,
onde ia mal, fazer com que ele parasse...
CP: Porque era um livro revolucionário, na medida em que parecia, para
os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma apologia da
permissividade, e dizer que tudo era desejo...
GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se lê esse livro,
ele sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição era: não se
tornem trapos. Quando nos opúnhamos..., não paramos de nos opor ao
processo esquizofrênico como o que ocorre num hospital, e para nós, o
terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E
quase diria que louvar o aspecto de valor da "viagem", daquilo que,
naquele momento, os anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo
esquizofrênico, era um modo de evitar, de conjurar a produção de
trapos de hospital, a produção dos esquizofrênicos, a fabricação de
esquizofrênicos.
CP: Você acha, para terminar com O anti-Édipo, que há ainda efeitos
desse livro, 16 anos depois?
GD: Sim, pois é um bom livro, pois há uma concepção do inconsciente. É
o único caso em que houve uma concepção do inconsciente desse tipo,
sobre os dois ou três pontos: as multiplicidades do inconsciente, o
delírio como delírio-mundo, e não delírio-família, o delírio cósmico,
das raças, das tribos, isso é bom. O inconsciente como máquina, como
fábrica e não como teatro. Não tenho nada a mudar nesses três pontos,
que continuam absolutamente novos, pois toda a psicanálise se
reconstituiu. Para mim, espero, é um livro que será redescoberto,
talvez. Rezo para que o redescubram.
E de Enfance [Infância]
CP: E de Enfance [Infância]. Lembranças distantes. Os primeiros anos
de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra.
CP: E de Enfance [Infância]. Você costuma dizer que começou sua vida
na Av. Wagram, pois nasceu no 17º distrito de Paris. Depois, foi morar
com sua mãe na R. Daubigny, no 17º distrito, e, agora, mora perto da
Place Clichy, bairro mais pobre, também no 17º, R. de Bizerte. Como
estará morto quando este filme for exibido, posso dar o seu endereço.
Primeiro, quero saber se a sua família é o que chamamos de burguesa e
de direita.
GD: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de fato
uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17°, um bairro muito bonito.
E durante a minha infância, vivi a crise antes da guerra. Uma das
lembranças que tenho da infância durante a crise era a quantidade de
apartamentos vazios. As pessoas estavam sem dinheiro mesmo e havia
apartamentos para alugar por toda a cidade. Meus pais tiveram de
deixar o apartamento chique do alto do 17º, perto do Arco do Triunfo,
e desceram, mas ainda era bom, perto do Boulevard Malesherbes. Era
numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois, quando eu voltei para Paris, já
mais velho, fui para a fronteira do 17º distrito, que é mais
proletário, na R. Nollet e R. Toussaint. Perto da casa onde morou
Verlaine, que também não era rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de
alguns anos, não sei onde estarei. Mas não deve melhorar em nada.
CP: Em Saint-Quen, talvez?
GD: É, pode ser. Mas a minha família era uma família burguesa. Não era
de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. Preciso me
situar, pois não tenho lembranças de infância. Não tenho lembranças
porque a memória é uma faculdade que deve afastar o passado em vez de
acioná-lo. É preciso muita memória para rejeitar o passado, porque não
é um arquivo. Então, tenho esta lembrança: havia aquelas placas nos
apartamentos onde estava escrito "Aluga-se". Eu vivi muito aquela
crise.
CP: Que anos eram estes?
GD: Não lembro os anos. Não sei, devia ser entre... Entre 1930-1935.
1930... Não me lembro mais.
CP: Você tinha 10 anos.
GD: As pessoas não tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da
preocupação com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no colégio dos
jesuítas, pois meus pais não tinham mais dinheiro. Eu estava destinado
aos jesuítas e acabei no liceu por causa da crise. Mas o outro
aspecto... Deixe-me ver... Havia outro aspecto da crise, mas não sei
mais. Não sei mais, mas não importa. E então, houve a guerra. Quando
digo que era uma família de direita... Eu me lembro muito bem, eles
não se recuperaram e é por isso que entendo melhor alguns patrões de
hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa
inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas deve
restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular
ficou marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me
lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos
eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O ódio que
Mendès-France carregou nas costas não foi nada perto do que Blum
carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reação causada pelas
férias remuneradas foi impressionante!
CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?
GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. Não é possível
entender como Pétain tomou o poder daquela forma sem conhecer o nível
de anti-semitismo da França e da burguesia francesa naquele momento. O
ódio das medidas sociais tomadas pelo governo de Leon Blum. Foi
impressionante! Imagine meu pai, que era meio "Cruz de Fogo"... Isso
era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta.
Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente
inculta. Mas meu pai era, como se costumava chamar, um homem muito
distinto, afável, distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta
violência contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. É
um mundo fácil de ser entendido em geral, mas que não se pode imaginar
em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o
regime da crise, a própria crise... Que crise era essa que ninguém
entendia?
CP: Qual era a profissão dele?
GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a
lembrança de duas atividades dele. Não sei se foi criação dele ou se
trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar os tetos.
Impermeabilização dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com apenas um
operário, um italiano. Ainda mais um estrangeiro... As coisas iam
muito mal. O negócio acabou falindo e ele foi parar em uma indústria
mais "séria" que fabricava balões. Aqueles balões... Aquelas coisas...
As aeronaves. Entende, não é? Mas foi num momento em que não serviam
mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos céus de Paris para
frear aviões alemães. Eram como pombos voadores. Quando os alemães se
apoderaram da fábrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais
sensatos e a transformaram em fábrica de botes infláveis, que teriam
mais serventia. Mas não fizeram balões, nem zepelins. Então, eu vi o
nascimento da guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem
das pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com
Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava aí. A guerra se
sucedeu à crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as pessoas mais
velhas do que eu devem ter vivido momentos terríveis. Quando os
alemães chegaram de fato, devastaram a Bélgica, entraram na França e
tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque era o lugar em que meus
pais sempre passavam as férias de verão. Eles já tinham voltado. Foram
e nos deixaram lá, o que era impensável, pois tínhamos uma mãe que
nunca havia nos deixado, etc...
Ficamos em uma pensão; nossa mãe tinha nos deixado com uma senhora que
era a dona desta pensão. E eu fui à escola durante um ano em
Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E os alemães
estavam chegando. Não, estou confundindo tudo. Isso foi no início da
guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, há pouco,
falei das férias remuneradas, eu me lembro que a chegada das férias
remuneradas à praia de Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso
poderia virar uma obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente
vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela
primeira vez na vida e é esplêndido! Era uma menina da região de
Limousin que estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se
existe alguma coisa inimaginável quando nunca se o viu, esta coisa é o
mar. A gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso
perde a força quando se vê o mar. Aquela menina ficou umas quatro ou
cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e não se cansava
de ver um espetáculo tão sublime, tão grandioso! Então, na praia de
Deauville, que sempre tinha sido exclusiva dos burgueses, como se
fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das férias
remuneradas... Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantástico.
Se o ódio entre as classes tem algum sentido são palavras como as que
dizia a minha mãe -- que, no entanto, era uma mulher fabulosa --, sobre
a impossibilidade de se freqüentar uma praia em que havia gente como
aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca esqueceram.
Maio de 68 não foi nada perto disso.
CP: Fale mais do medo que eles tinham.
GD: O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias
remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam
ameaçados. Os locais freqüentados eram como questões de território. Se
as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de
repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do
que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você
entende? Era indescritível!
CP: Era gente de outro mundo.
GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo
nas fábricas? Nunca esqueceram isso. Acho até que este medo é
hereditário. Não quero dizer que Maio de 68 não foi nada. É outra
história. Mas também não se esqueceram de 68. Enfim... Eu estava lá em
Deauville sem meus pais, e com meu irmão. Quando os alemães realmente
invadiram, foi aí que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente
medíocre na escola, não tinha interesse por nada, a não ser por uma
coleção de selos, que era a minha maior atividade e eu era um péssimo
aluno. Até que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As
pessoas que despertam sempre o são por causa de alguém em algum
momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara
jovem que me pareceu extraordinário porque falava muito bem. Para mim,
foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara que,
mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque ele tinha
um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, só
que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho
do sociólogo. Naquela época, ele era muito jovem e tinha uma cara
estranha. Era muito magro, muito alto... Na minha lembrança, ele era
alto. E ele só tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado. Não
tinha nascido assim, mas era assim, como um cíclope. Tinha cabelos
muito cacheados, como uma cabra... Aliás, mais do que um carneiro.
Quando fazia frio, ele ficava verde, roxo, tinha uma saúde
extremamente frágil, tanto que ele foi reformado no exército e
colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para
mim, foi uma revelação. Ele era cheio de entusiasmo. Não sei mais em
que ano eu estava, talvez 3º ou 4º ano ginasial, mas ele comunicava
aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que foi uma reviravolta para
mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire
e lia muito bem. E nós nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que
me impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava
para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele, literalmente.
Eu era seu discípulo. Tinha encontrado um mestre. Nós nos sentávamos
nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantástico, ele me lia Les
nourritures terrestres. Ele gritava, pois não havia ninguém na praia
no inverno. Ele gritava: "Les nourritures terrestres", e eu estava
sentado ao lado dele, com medo de alguém aparecer. Eu achava tudo
aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me
fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram
os principais. Eram as suas grandes paixões. E eu fui transformado,
absolutamente transformado. Mas logo começaram os comentários sobre
aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino que estava
sempre atrás dele. Iam sempre juntos à praia, etc. A senhora que me
hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsável
por mim na falta de meus pais e que queria me alertar sobre certas
relações. Eu não entendi nada. Não entendi, pois, se havia uma relação
pura, incontestável e aberta, era justamente a nossa. Só depois, eu
percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso.
Então, eu disse a ele: "Estou chateado, pois a senhora que me hospeda
disse..." Eu o chamava de "senhor" e ele me chamava de "você". "Ela
disse que não devo vê-lo, que não é normal, nem correto". E ele me
disse: "Não se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com
ela, explicar tudo e ela ficará tranqüila". Ele tinha me tornado
esperto o bastante para me deixar em dúvidas. Eu não estava tranqüilo.
Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha senhora não se
convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que
escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de lá
rápido porque ele era alguém extremamente suspeito. A tentativa dele
foi um fracasso total. Mas eis que os alemães chegaram. A guerra
estava começando. Os alemães chegaram e meu irmão e eu saímos de
bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A
fábrica tinha se mudado para lá, fugindo-se dos alemães. Fomos de
Deauville a Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o
famoso discurso infame de Pétain no albergue de uma aldeia. Meu irmão
e eu estávamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos?
Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o
filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto
de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso só para dizer
que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci bem melhor e
não tinha mais admiração por ele. Mas isso me mostrou que foi no
momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razão.
CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, já
que as férias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia.
Foi nesta época que Merleau-Ponty era professor lá, mas você entrou
numa turma em que não havia Merleau-Ponty. Seu professor chamava-se
Sr. Viale. Acho que era este o nome, não?
GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrança comovida. Foi por
acaso. Houve a distribuição dos alunos... Eu poderia ter tentado
passar para a turma de Merleau-Ponty, mas não tentei, não sei por quê.
Viale foi... É curioso, porque Halbwachs me fez sentir alguma coisa do
que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu
soube que era isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui
e ali. Em Filosofia, eu me lembro de quando soubemos da chacina de
Oradour. Tinha acontecido naquela época. É bom lembrar que eu estava
em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensíveis às questões
nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia
uma atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma
como foi anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de
17 anos... Não sei com que idade se passava a prova final. Talvez, 17,
18 anos ou 16, 17 anos.
CP: Normalmente, 18 anos.
GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava
baixo, já era velho. Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty,
tenho a lembrança da melancolia. Carnot era um grande liceu no qual
havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E havia o
olhar melancólico de Merleau-Ponty que observava as crianças brincando
e gritando. Uma grande melancolia. Era como se ele dissesse: "O que
estou fazendo aqui?" Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito,
estava no fim de sua carreira. Eu também me liguei muito a ele.
Ficamos muito ligados e, como morávamos perto um do outro, voltávamos
sempre juntos. Nós falávamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia
ou não faria nada.
CP: Logo nas primeiras aulas?
GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão
estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo
efeito do que para outros a descoberta de um personagem de ficção.
Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande
personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie Grandet. Quando eu
aprendi o que Platão chamava de "idéia", me parecia ter vida! Era
animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso.
CP: E você logo se tornou bom aluno? O melhor?
GD: Sim. Aí, eu não tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs,
tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. Até mesmo em Latim, eu era
bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um ótimo aluno.
CP: Queria que voltássemos a uma coisa. As turmas não eram politizadas
naquela época? Você disse que a sua turma era especial, pois havia Guy
Moquet, etc.
GD: Não era possível ser politizado durante a guerra. Certamente havia
rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistência. Mas quem estava na
Resistência se calava, a menos que fosse um cretino. Não se pode falar
em politização. Havia pessoas indiferentes e as favoráveis ao governo
de Vichy.
CP: Havia a Ação Francesa?
GD: Não era a Ação Francesa, era muito pior. Eram os "Vichyssois". Não
há comparação com a politização em épocas de paz, já que os elementos
realmente ativos eram os resistentes ou jovens com alguma relação com
a Resistência. Não tinha nada a ver com politização; era mais secreto.
CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que
simpatizavam com a Resistência?
GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo
assassinado pelos nazistas um ano depois.
CP: Mas vocês falavam a esse respeito?
GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicação imediata de
Oradour tinha a ver com comunicação secreta, com o telégrafo, pois a
notícia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas parisienses já
sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi uma das coisas
mais emocionantes para mim.
CP: Para fechar a infância, senão não terminamos nunca, a sua parece
ter tido pouca importância para você. Você não fala dela e nem é uma
referência. Temos a impressão de que a infância não é importante para
você.
GD: Sim, claro. É quase em função de tudo o que acabo de dizer. Acho
que a atividade de escrever não tem nada a ver com o problema pessoal
de cada um. Não disse que não se deve investir toda a sua alma. A
literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. Mas a vida é algo
mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida
pessoal do escritor é por natureza desagradável. É lamentável, pois o
impede de ver, sempre o remete para seu pequeno caso particular. Minha
infância nunca foi isso. Não é que eu tenha horror a ela! Mas o que me
importa, na verdade, é como já dizíamos: "Há o devir-animal que
envolve o homem e o devir-criança". Acho que escrever é um devir
alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever.
Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa.
Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa.
Escrever é devir. É devir o que bem entender, menos escritor. É fazer
tudo o que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste
caso, sim, quando é arquivo. Mas ele tem interesse em relação a outra
coisa. Se o arquivo existe é justamente porque há uma outra coisa. E,
através do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra
coisa. Mas a simples idéia de falar da minha infância -- não só porque
ela não tem interesse algum -- me parece o contrário de toda a
Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que
todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o
conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo
ontem.
CP: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.
GD: Sim, é Ossip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me
transtorna. E o papel do professor é este: comunicar e fazer com que
crianças apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por mim. Ele diz
que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos
familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memória não é amor, mas
hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o
passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil.
Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre
as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e
crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o
século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria
dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto,
tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a
gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi
só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos
embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma
linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que
escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida, dos idiotas
que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando
para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É
fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma
porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja -- o
que não é fácil, pois não basta gaguejar assim -- , se não se vai até
este ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite,
há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um
devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança,
mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo.
Os que se interessam pela sua própria infância que se danem e que
continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se há alguém que não
se interessa por sua própria infância, este alguém é Proust. A tarefa
do escritor não é vasculhar os arquivos familiares, não é se
interessar por sua própria infância. Ninguém se interessa por isso.
Ninguém digno de alguma coisa se interessa por sua infância. A tarefa
é outra: devir criança através do ato de escrever, ir em direção à
infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da
Literatura.
CP: E a criança nietzschiana?
GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia.
Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. Não consigo pensar em
outra fórmula além desta: escrever é devir, mas não é tornar-se
escritor, nem um memorialista. Nada disso. Não é porque vivi uma
história de amor que vou escrever um romance. É horrível pensar assim.
Não é apenas medíocre, é horrível!
CP: Há uma exceção à regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa,
escreveu um livro chamado Infância. Um momento de fraqueza?
GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute é uma escritora fabulosa, mas não
é um livro sobre a infância dela. É um livro no qual ela testemunha,
reinventa...
CP: Banquei o advogado do diabo.
GD: Eu sei, mas é um papel muito perigoso. Ela inventa a infância do
mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infância? São algumas
fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas. Pode ser o
que ela fez com as últimas palavras de ... De quem mesmo?
CP: Tchekov.
GD: As últimas palavras de Tchekov. Ela tirou daí. Depois, ela pega de
novo uma menina que ouviu alguém dizer: "Como vai?" e vai criar um
mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem. Claro que Nathalie
Sarraute não se interessa por sua própria infância!
CP: Tudo bem, mas mesmo assim...
GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, não.
CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um
treinamento precoce que o levou à Literatura? Você reprimiu a infância
e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que idade? É um
treinamento? Por outro lado, a infância sempre volta, mesmo que seja
de uma forma revoltante. É preciso treinar quase diariamente? Precisa
ter uma disciplina cotidiana?
GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infância, a infância...
Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim da boa. O que é
interessante? A relação com o pai, a mãe e as lembranças da infância
não me parecem interessantes. É interessante e rico para si próprio,
mas não para escrever. Há outros aspectos da infância. Falamos há
pouco do cavalo que morreu na rua, antes do surgimento do carro.
Encontrar a emoção da criança... Na verdade, é "uma" criança. A
criança que "eu" fui não quer dizer nada. Mas eu não sou apenas a
criança que fui, eu fui "uma" criança entre muitas outras. Eu fui "uma
criança qualquer". E foi assim que eu vi o que era interessante e não
como "eu era a tal criança". "Eu vi um cavalo morrer na rua antes que
surgissem os carros". Não estou falando por mim, mas por aqueles que
viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. É uma tarefa do tornar-se
escritor. Algum fator fez com que Dostoiévski o visse. Há uma página
inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre o cavalo que morre na rua.
Nijinski, o dançarino, o viu. Nietzsche também viu. Já estava velho
quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem!
CP: E você viu as manifestações da Frente Popular.
GD: Sim, eu vi estas manifestações, vi meu pai dividido entre sua
honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui "uma" criança. Eu sempre
insisti no fato de que não se entende o sentido do artigo indefinido.
"Uma" criança espancada, "um" cavalo chicoteado. Não quer dizer "eu".
O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
CP: São as multiplicidades. Falaremos disso.
GD: Sim, é a multiplicidade.
F de Fidelidade
CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um
mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet.
Vamos passar para a letra F.
GD: Vamos ao F.
CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já
que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias,
vocês se telefonam ou se vêem. É como um casal. Você é fiel às suas
amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie, a Jean-
Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos são muito importantes
para você. François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você
os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a
impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à amizade é
correta? Ou será o contrário?
GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa
com F.
CP: Sim, e o A já foi preenchido.
GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim,
é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em
comum. O que quer dizer "ter coisas em comum com alguém"? Vou dizer
banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir
de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-
linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não
entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: "Passe-me o
sal". Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto
totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo
tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim.
E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base
indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter
algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias,
sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma
hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de
charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há
uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor
absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso.
Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja
significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a
ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna
amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem
ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria
preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao
ouvir uma frase deste nível, pensa: "O que acabei de ouvir? Que
imundicie é essa?" Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar
voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há
frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza
que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido
de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce
a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe
convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.
CP: Decifrar signos.
GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e
a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm esta base:
ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se
passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência,
dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas...
A amizade é cômica.
CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como Bouvard e
Pecuchet, Mercier e Camier...
GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de Mercier e
Camier. Eu estou sempre cansado, não tenho boa saúde, Jean-Pierre é
hipocondríaco e nossas conversas são do tipo de Mercier e Camier. Um
diz ao outro: "Como está?" O outro responde: "Uma bela viola, sem
muito bolor". É uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a
diz. Ou: "Estou como uma rolha no balanço do mar". São boas frases.
Com Félix é diferente, não somos Mercier e Camier, estamos mais
próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que fizemos juntos,
mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas como:
"Temos a mesma marca de chapéu!" E volta a tentativa enciclopédica, a
de fazer um livro que aborde todos os saberes. Com outro amigo,
poderia ser uma réplica de o Gordo e o Magro. Não é que se deva imitar
estas grandes duplas, mas amizade é isso. Os grandes amigos são
Bouvard e Pécuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que
estes tenham brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma
espécie de mistério. Isso diz respeito direto à Filosofia. Porque na
palavra "filosofia" existe a palavra "amigo". Quero dizer que o
filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é
o "amigo da sabedoria". O que os gregos inventaram não foi a
sabedoria, mas a estranha idéia de "amigo da sabedoria". Afinal, o que
quer dizer "amigo da sabedoria"? Esse é que é o problema. O que é a
filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo
da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: "Ele tende
à sabedoria". Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e
que tipo de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os
gregos? O que quer dizer "amigo de"? Se interpretamos "amigo" como
aquele que "tende a", amigo é aquele que pretende ser sábio sem ser
sábio. Mas o que quer dizer "pretender ser sábio"? Quer dizer que há
outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um pretendente, é porque
há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.
CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um pretendente.
GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos inventaram?
Na minha opinião, na civilização grega, eles inventaram o fenômeno dos
pretendentes. Quer dizer que eles inventaram a idéia de que havia uma
rivalidade entre os homens livres em todas as áreas. Não havia esta
idéia de rivalidade entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É
por isso que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens
livres. Então, eles se processam mutuamente, os amigos também. O rapaz
ou a moça tem pretendentes. Os pretendentes de Penélope. Este é o
fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno grego é a
rivalidade dos homens livres. Isso explica "amigo" na Filosofia. Eles
pretendem, há uma rivalidade em direção a alguma coisa. A quê? Podemos
interpretar, tendo em vista a história da Filosofia. Para alguns, a
Filosofia está ligada ao mistério da amizade. Para outros, está ligada
ao mistério do noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues
[O noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto, sem
o primeiro amor. Mas como já dissemos, o primeiro amor é a repetição
do último, talvez seja o último amor. Talvez o casal tenha uma
importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que é a Filosofia
quando forem resolvidas as questões da noiva, do amigo, do que é o
amigo, etc... É isso que me parece interessante.
CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de...
GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação à
Filosofia, dão importância à amizade. Mas num sentido muito especial.
Eles não dizem que é preciso ter um amigo para ser filósofo; eles
consideram que a amizade é uma categoria ou uma condição do exercício
do pensamento. É isso que importa. Não é o amigo em si, mas a amizade
como categoria, como condição para pensar. Daí, a relação Mascolo-
Antelme, por exemplo. Daí, as declarações de Blanchot sobre a amizade.
Eu tenho a idéia de que... Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim,
amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me
impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo,
a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do
amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu
desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas
é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que
façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e comunhão entre
meus amigos. Com a noiva é a mesma coisa. Com tudo. Mão não se deve
achar que sejam acontecimentos ou casos particulares. Quando se fala
de "amizade", "noiva perdida", trata-se de saber em que condições o
pensamento pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a
amizade é zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se
pensar na amizade. Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta é a
condição do pensamento.
CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com Châtelet,
foi outra coisa. Mas você foi amigo de Foucault no final da guerra e
estudaram juntos. Mas vocês tinham uma amizade que não era a de uma
dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou Félix ou com Elie, Jerôme, já
que estamos falando dos outros. Vocês tinham uma amizade muito
profunda, mas parecia distante e era mais formal para quem via de
fora. Que amizade era essa, então?
GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente tivesse
se conhecido tarde. Foucault foi um grande arrependimento para mim.
Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o
percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala,
mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás,
nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro ar entrasse. Era
uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator
atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de
raios. Alguma coisa assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia há
pouco, sobre não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos
de coisas que nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: "O
que vai nos fazer rir hoje?". "O que nos faz rir no meio de todas
essas catástrofes?" É isso. Mas para mim, Foucault é a lembrança de
alguém que ilustra o que eu dizia sobre o charme de alguém, um
gesto... Os gestos de Foucault eram impressionantes. Tantos gestos...
Pareciam gestos metálicos, gestos de madeira seca. Eram gestos
estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas só têm charme em sua
loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das
pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não
sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são
pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o
pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-
la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos
nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de
alguém... Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de
constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme.
Ao G, pois!
G de Gauche [Esquerda]
CP: G! Neste caso, não é o ponto de demência que constitui seu charme
e sim algo muito sério: o fato de pertencer à esquerda. Isso o faz
rir, o que me deixa muito feliz. Como já vimos, você é de uma família
burguesa de direita e, a partir do final da guerra, você se tornou o
que se costuma chamar de um homem de esquerda. Com a Liberação, muitos
amigos seus e estudantes de Filosofia aderiram ou eram muito ligados
ao Partido Comunista.
GD: Sim, todos passaram pelo PC, menos eu. Pelo menos é o que eu acho,
não tenho certeza.
CP: Mas como você escapou disso?
GD: Não é nada complicado. Todos os meus amigos passaram pelo PC. O
que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque
eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam
de forma interminável. Ser membro do PC era participar destas reuniões
o tempo todo. E era a época do "Apelo de Estocolmo". Pessoas cheias de
talento passavam o dia colhendo assinaturas para o "Apelo de
Estocolmo". Andavam pelas ruas com este "Apelo de Estocolmo", que já
nem sei mais o que era. Mas isso ocupou toda uma geração de
comunistas. Eu tinha problemas porque conhecia muitos historiadores
comunistas cheios de talento e achava que se eles fizessem a tese
deles seria muito mais importante para o partido, que, pelo menos,
teria um trabalho a mostrar em vez de usá-los para o "Apelo de
Estocolmo", um abaixo-assinado sobre a paz ou sei lá o quê. Não tinha
vontade de participar disso. E, como eu falava pouco e era tímido,
pedir uma assinatura para o "Apelo de Estocolmo" teria me colocado num
estado de pânico tal que ninguém assinaria nada. Ainda por cima, tinha-
se de vender o jornal L'Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não
tive vontade nenhuma de entrar para o partido.
CP: Sentia-se próximo do engajamento deles?
GD: Do partido? Não, isso não me dizia respeito. E foi o que me
salvou. Todas aquelas discussões sobre Stalin... O que hoje todo mundo
já sabe sobre os horrores de Stalin, sempre existiu. Que as revoluções
acabem mal... Acho muita graça! Afinal, de quem estão zombando? Quando
os Novos Filósofos descobriram que as revoluções acabam mal... Tem de
ser maluco! Descobriram isso com Stalin! Foi uma porta aberta para que
todo mundo descobrisse. Por exemplo, sobre a revolução argelina
disseram que ela fracassou porque atiraram em estudantes. Mas quem
pode acreditar que uma revolução possa ser bem-sucedida? Dizem que os
ingleses nunca fizeram uma revolução. Estão enganados! Atualmente,
vive-se uma mistificação incrível! Os ingleses fizeram uma revolução,
mataram o rei e o que eles tiveram? Cromwell! E o que é o romantismo
inglês? Uma longa meditação sobre o fracasso da revolução. Eles não
esperaram Glucksman para pensar sobre o fracasso da revolução
stalinista. Eles o tinham ali! E os americanos, dos quais nunca se
fala? Eles fracassaram em sua revolução muito mais do que os
bolcheviques! Os americanos, antes da Guerra da Independência... Eu
repito: antes da Guerra da Independência, eles se apresentavam como
melhores do que uma nova nação! Eles ultrapassaram as nações,
exatamente como Marx disse do proletário. Acabaram-se as nações! Eles
trouxeram a nova população, fizeram a verdadeira revolução, e,
exatamente como os marxistas contaram com a proletarização universal,
os americanos contavam com a imigração universal. São as duas fases
das lutas de classe. É absolutamente revolucionário! É a América de
Jefferson, de Thoreau, de Melville! Jefferson, Thoreau, Melville
representam uma América completamente revolucionária, que anuncia o
novo homem, exatamente como a revolução bolchevique anunciava o novo
homem! E ela fracassou! Todas as revoluções fracassaram, isso é
sabido! Hoje, fingem redescobrir isso. É loucura! E nisso todo mundo
se atola; é o revisionismo atual. Furet descobre que a revolução
francesa não foi tão boa assim. Ela também fracassou e todos sabem
disso! A revolução francesa nos deu Napoleão. São descobertas que não
comovem por sua novidade. A revolução inglesa deu em Cromwell. A
revolução americana deu em quê? Muito pior, não?
CP: O liberalismo.
GD: Deu em Reagan! Não me parece muito melhor do que os outros!
Atualmente, estamos em um estado de grande confusão. Mesmo que as
revoluções tenham fracassado, isso não impediu que as pessoas
deviessem revolucionárias. Duas coisas absolutamente diferentes são
misturadas. Há situações nas quais a única saída para o homem é devir
revolucionário. É o que falávamos sobre a confusão do devir e da
História. É essa a confusão dos historiadores. Eles nos falam do
futuro da revolução ou das revoluções. Mas esta não é a questão. Eles
podem ir lá para trás para mostrar que se o futuro é ruim é porque o
ruim já existia desde o início. Mas o problema concreto é: como e por
que as pessoas devêm revolucionárias? Felizmente, os historiadores não
puderam impedir isso. Os sul-africanos estão envolvidos em um devir
revolucionário. Os palestinos também. Se me disserem depois: "Você vai
ver quando eles triunfarem, quando eles vencerem...!" "Vai acabar
mal". Mas já não são mais os mesmos tipos de problemas, vai se criar
uma nova situação e novos devires revolucionários serão desencadeados.
Nas situações de tirania, de opressão, cabe aos homens devirem
revolucionários, pois não há outra coisa a ser feita. Quando nos
dizem: "Viu como deu errado?", não estamos falando da mesma coisa. É
como se falássemos idiomas completamente diferentes. O futuro da
História e o devir das pessoas não são a mesma coisa.
CP: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje em
dia? É o contrário do devir revolucionário, não?
GD: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte
de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento molenga daquele
período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer
"Direitos Humanos"? É totalmente vazio. É exatamente o que estava
tentando dizer há pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em
erguer um objeto e dizer: "Eu desejo isto". Não se deseja a liberdade.
Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como, por
exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a situação
por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará muita coisa. Há
este enclave em outra república soviética, este enclave armênio. Uma
República Armênia. Esta é a situação. Primeira coisa. Há o massacre.
Aqueles turcos ou sei lá o quê...
CP: Os Azeris.
GD: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre dos
armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua
República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um terremoto.
Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram
pelas piores provas, vindas dos próprios homens e, mal chegam a um
local protegido, é a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me
falar de Direitos Humanos. É conversa para intelectuais odiosos,
intelectuais sem idéia. Notem que essas Declarações dos Direitos
Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as
sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de um
problema de Direitos Humanos. Qual é o problema? Eis um caso de
agenciamento. O desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que
se pode fazer para eliminar este enclave ou para que se possa viver
neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada a ver com
Direitos Humanos, e sim com organização de território. Suponho que
Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer para que
este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o cercam? Não é
uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim de
jurisprudência. Todas as abominações que o homem sofreu são casos e
não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis. Pode
haver casos que se assemelhem, mas é uma questão de jurisprudência. O
problema armênio é um problema típico de jurisprudência
extraordinariamente complexo. O que fazer para salvar os armênios e
para que eles próprios se salvem desta situação louca em que, ainda
por cima, ocorre um terremoto? Terremoto este que também tem seus
motivos: construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são
casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se
revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça não
existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a
jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se contentam
em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis mentais! Trata-
se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de
inventar as jurisprudências em que, para cada caso, tal coisa não será
mais possível. É muito diferente. Vou dar um exemplo de que gosto
muito, pois é o único meio de fazer com que se entenda o que é a
jurisprudência. As pessoas não entendem nada! Nem todas... Eu me
lembro da época em que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava
nos táxis. Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que
proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois havia
motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado... Eu sempre fui
um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse feito Filosofia,
teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos. Teria feito
jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos
da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso. Mas eu estava falando
dos táxis. Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e
processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do
julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do
mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi
foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi,
ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário
que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como
se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar
em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi
assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o
locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi
em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de
apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-
se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se
trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E
lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência. O exemplo da
Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos... Ao invocá-los, quer
dizer que os turcos não têm o direito de massacrar os armênios. Sim,
não podem. E aí? O que se faz com esta constatação? São um bando de
retardados. Ou devem ser um bando de hipócritas. Este pensamento dos
Direitos Humanos é filosoficamente nulo. A criação do Direito não são
os Direitos Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência.
Portanto, é lutar pela jurisprudência.
CP: Quero voltar a uma coisa...
GD: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar o
direito.
CP: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos. Este
respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de 1968 e uma
negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois não foi comunista e
ainda o tem como referência. E você foi uma das raras pessoas a evocar
Maio de 68 sem dizer que foi uma mera bagunça. O mundo mudou. Gostaria
que falasse mais sobre Maio de 68.
GD: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há muita
gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos, ninguém renegou
68.
CP: Sim, mas são nossos amigos.
GD: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não rejeitaram Maio
de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a intrusão do devir.
Quiseram atribuir este fato ao reino do imaginário. Não é nada
imaginário, é uma baforada de realidade em seu estado mais puro. De
repente, chega a realidade. E as pessoas não entenderam e perguntavam:
"O que é isso?" Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade.
Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir.
Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns historiadores não
entenderam bem, pois acredito tanto na diferença entre História e
devir. Foi um devir revolucionário, sem futuro de revolução. Alguns
podem zombar disso. Ou zombam depois que passou. O que tomou as
pessoas foram fenômenos de puro devir. Mesmo os devires-animal, mesmo
os devires-criança, mesmo os devires-mulher dos homens, mesmo os
devires-homem das mulheres... Tudo isso faz parte de uma área tão
particular na qual estamos desde o início de nossas questões. O que é
exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.
CP: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?
GD: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia... Prefiro que me
pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que devir-
revolucionário.
CP: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de homem de
esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de
esquerda para você?
GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se
espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não
é um governo de esquerda. Não é que não existam diferenças nos
governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas
exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a
esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o
que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas
formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é
a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um
endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em
que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada
vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é
privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em
como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que
isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso
dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para
que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É
perceber... Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós.
Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam
pelo mundo, depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a
França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de
percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...
GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal.
Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode
durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não
pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome
da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar
pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem
ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser
reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus.
Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com
que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é saber que os problemas do
Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É
de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma.
Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser,
ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não
parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto
esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe - até
quando se vota, não se trata apenas da maior quantidade que vota em
favor de determinada coisa - a existência de um padrão. No Ocidente, o
padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra
Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá
obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este
padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas
posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que
muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão
é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta
maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a
este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são
minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas
têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o
têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devir-criança.
Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários.
CP: Só os homens não têm devir homem.
GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto
não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o
conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é
ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a
minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É
por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à
democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas
bem conhecidas.
H de História da Filosofia
CP: H de História da Filosofia. Costumam dizer que, em sua obra, há
uma 1ª etapa dedicada à História da Filosofia. A partir de 1952,
escreveu um estudo sobre David Hume. Depois, seguiram-se livros sobre
Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza. Quem não o conhecia bem, ficou
muito impressionado com Lógica do sentido, Diferença e repetição, O
anti-Édipo, Mil platôs. Como se houvesse um Mr. Hyde adormecido no Dr.
Jekyll. Quando todos explicavam Marx, você mergulhou em Nietzsche, e
quando todos liam Reich, você se voltou para Spinoza, com a famosa
pergunta: "O que pode um corpo?". Hoje, em 1988, você volta a Leibniz.
Do que gostava ou ainda gosta na História da Filosofia?
GD: É complicado. Porque isso envolve a própria Filosofia. Suponho que
muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito abstrata e só para
os "entendidos". Tenho tão viva em mim a idéia de que a Filosofia não
tem nada a ver com "entendidos", de que não é uma especialidade, ou o
é, mas só na medida em que a pintura ou a música também o são, que
procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a Filosofia
é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já
que ela nem consiste mais em falar de idéias abstratas, mas em formar
idéias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da
Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da
pintura. Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato
ou paisagem. "Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?"
Eles davam muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e
paisagem não são a mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a
história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do
retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico
de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato
mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade
que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato
faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que me
levam a... Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é
porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de
enorme respeito, de medo e pânico... Não só respeito, mas medo e
pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É
particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar
apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao
revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se
fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles,
usavam cores mortas. Cores... Sim, cores de terra, sem nenhum brilho.
Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há
de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam
ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja,
de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles
ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a
cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles
chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão
para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à
insensatez, à loucura. Portanto, são necessários muitos anos, antes de
ousar tocar em algo assim. Não é que eu seja particularmente modesto,
mas eu acho que seria muito chocante se existissem filósofos que
dissessem assim: "Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a minha
filosofia. Tenho a minha filosofia". São falas de um retardado! "Fazer
a sua filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de entrar na
Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar a
"cor" filosófica, que é o conceito. Antes de saber e de conseguir
criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a história da
Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso fazer retratos por muito
tempo. Tem de fazer retratos. É como se um romancista dissesse: "Eu
escrevo romances, mas, para não comprometer a minha inspiração, eu
nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço". Já ouvi um jovem
romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como dizer que não é
preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é preciso trabalhar muito,
antes de abordar alguma coisa. Acho que a Filosofia tem um papel que
não é apenas preparatório, mas que vale por si mesmo. É a arte do
retrato na medida em que nos permite abordar alguma coisa. E aí é que
vem o mistério. É preciso explicar melhor. Você teria de me obrigar a
explicar através de alguma pergunta. Ou eu posso continuar assim... O
que acontece quando se faz história da Filosofia? Tem outra coisa a me
perguntar a este respeito?
CP: Sabemos qual é a utilidade da história da Filosofia para você.
Mas, para as pessoas de modo geral? Já que você não quer falar da
especialização da Filosofia e que a Filosofia se dirige também aos não-
filósofos.
GD: Isso me parece muito simples. Só se pode entender o que é a
filosofia, a que ponto ela não é uma coisa abstrata, da mesma forma
que um quadro ou uma obra musical não são absolutamente abstratos, só
através da história da Filosofia, com a condição de concebê-la
corretamente. Afinal, o que é... Há uma coisa que me parece certa: um
filósofo não é uma pessoa que contempla e também não é alguém que
reflete. Um filósofo é alguém que cria. Só que ele cria um tipo de
coisa muito especial, ele cria conceitos. Os conceitos não nascem
prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados. É
preciso criá-los, fabricá-los. Haveria mil perguntas só neste ponto.
Estamos perdidos, pois são tantas questões. Para que serve? Por que
criar conceitos? O que é um conceito? Mas vamos deixar isso para lá
por enquanto. Por exemplo, se eu criar um livro sobre Platão. As
pessoas sabem que Platão criou um conceito que não existia antes dele
e que é geralmente traduzido como a "Idéia". Idéia com um I maiúsculo.
E o que Platão chama de Idéia é bem diferente do que outro filósofo
chama de Idéia. É um conceito platônico, tanto que se alguém emprega a
palavra Idéia em um sentido parecido, responderão: "É um filósofo
platônico". Mas concretamente o que é? Não se deve perguntar de outra
forma, ou é melhor não fazer Filosofia. Tem de se perguntar como se se
tratasse de um cachorro! O que é uma Idéia? Eu posso definir um
cachorro. E uma Idéia para Platão? Neste momento, já estou fazendo
história da Filosofia. Eu tentarei explicar às pessoas, é essa a
tarefa de um professor... Acho que o que ele chama de "Idéia" é uma
coisa que não seria outra coisa. Ou seja, que seria apenas o que ela
é. Isso também pode parecer abstrato. Há pouco, dizia que não se deve
ser abstrato. E algo que só é o que ele é, é abstrato. Então, vamos
pegar um caso que não seja de Platão. Uma mãe. Uma mamãe. É uma mãe,
mas ela não é apenas uma mãe. Por exemplo, ela é esposa e ela também é
filha de uma mãe. Suponhamos uma mãe que seja apenas mãe. Pouco
importa se isso existe ou não. Por exemplo, será que a Virgem Maria,
que Platão não conhecia, era uma mãe que só era mãe? Mas pouco importa
se isso existe ou não? Uma mãe que não seria outra coisa além de mãe,
que não seria filha de outra mãe, é isso que devemos chamar de "idéia
de mãe". Uma coisa que é só o que ela é. É o que Platão quis dizer
quando disse: "Só a Justiça é justa". Porque só a Justiça não é outra
coisa além de justa. A gente vê que, no fundo, é muito simples. Claro
que Platão não parou só nisso, mas seu ponto de partida foi: "Suponham-
se tais entidades que sejam apenas o que elas são, iremos chamá-las de
Idéias". Portanto, ele criou um verdadeiro conceito, este conceito não
existia antes. A idéia da coisa pura. É a pureza que define a idéia.
Mas por que isso parece abstrato? Por quê? Se nos entregamos à leitura
de Platão é por aí que tudo se torna tão concreto! Ele não diz isso
por acaso, não criou este conceito de Idéia por acaso. Ele se encontra
em uma determinada situação em que, aconteça o que acontecer, em uma
situação muito concreta, o que quer que aconteça ou o que quer que
seja dado, há pretendentes. Há pessoas que dizem: "Para tal coisa, eu
sou o melhor". Por exemplo, ele dá uma definição do político. E ele
diz: "A primeira definição do político, como ponto de partida, seria o
pastor dos homens". É aquele que cuida dos homens. Mas aí, chega um
monte de gente dizendo: "Então, eu sou o político. Eu sou o pastor dos
homens". Ou seja, o comerciante pode ter dito isso, o pastor que
alimenta, o médico que trata, todos eles podem dizer: "Eu sou o
verdadeiro pastor". Em outras palavras, há rivais. Agora, está
começando a ficar mais concreto. Eu digo: um filósofo cria conceitos.
Por exemplo, a Idéia, a coisa enquanto pura. O leitor não entende bem
do que se trata, nem a necessidade de criar um conceito assim. Mas se
ele continua ou reflete sobre a leitura, ele percebe que é pelo
seguinte motivo: há uma série de rivais que pretendem esta coisa, são
pretendentes e que o problema platoniano não tem nada a ver com o que
é a Idéia, -- do contrário, seria abstrato -- mas é como selecionar os
pretendentes, como descobrir em meio aos pretendentes qual deles é o
bom. E é a Idéia, a coisa em seu estado puro, que permitirá esta
seleção e selecionará aquele que mais se aproxima. Isso nos permite
avançar um pouco, pois eu diria que todo conceito -- por exemplo, o de
Idéia -- remete a um problema. Neste caso, o problema é como selecionar
os pretendentes. Quando se faz Filosofia de forma abstrata, nem se
percebe o problema. Mas quando se atinge o problema, por que ele não é
dito pelo filósofo? Ele está bem presente em sua obra, está
escancarado, de certa forma. Não se pode fazer tudo de uma vez. O
filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além
disso, expor os problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só
se podem encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E
se não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é
abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. É por isso que,
em Platão, há constantemente estes pretendentes, estes rivais! Está
ficando cada vez mais óbvio. Por que é que isso ocorre na cidade
grega? Por que é que foi Platão quem inventou este problema? O
problema é como selecionar os pretendentes e o conceito... a filosofia
é isso: problema e conceito. O conceito é a Idéia, que deveria dar os
meios para selecionar os pretendentes. Não importa como. Por que este
problema, este conceito, se formou em um meio grego?
É que isso começa com os gregos, é um problema tipicamente grego, é
problema da cidade, e da cidade democrática, mesmo se Platão não
aceita isso. É um problema da cidade democrática. É em uma cidade
democrática que, por exemplo, uma magistratura é objeto de pretensões.
Há pretendentes, pretendo determinada função. Em uma formação
imperial, como há, na época grega, em uma formação imperial, há
funcionários nomeados pelo grande imperador. Não há essa rivalidade. A
cidade ateniense é uma rivalidade dos pretendentes. Já com Ulisses, os
pretendentes de Penélope. Há todo um meio que se pode chamar de
"problema grego". É uma civilização... onde o enfrentamento dos rivais
aparece sempre, por isso eles inventam a ginástica, inventam os Jogos
Olímpicos. Inventam, são processualistas, ninguém é tão processualista
quanto um grego, mas o procedimento é a mesma coisa, os processos são
os pretendentes. Entende? A filosofia... Haverá também pretendentes, a
luta de Platão contra os sofistas. Segundo ele, os sofistas são
pretendentes a algo a que não têm direito. O que vai definir o direito
ou o não-direito de um pretendente? É um problema muito... é tão
divertido quanto um romance. Conhecemos grandes romances onde há
pretendentes que se enfrentam diante de um tribunal. É outra coisa.
Mas, na filosofia, há os dois: a criação de um conceito e esta criação
se faz em função de um problema. Se não se achou o problema, não se
compreende a filosofia, e ela permanece abstrata. Dou um exemplo, as
pessoas, em geral, não vêem a que problema isso responde. Não vêem os
problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos, e fazer
a história da filosofia é restaurar esses problemas e assim descobrir
a novidade dos conceitos. A má história da filosofia enfileira os
conceitos como se fossem óbvios, como se não fossem criados, e há uma
ignorância total dos problemas aos quais... Dou um último exemplo
rápido. Dou outro exemplo que não tem nada a ver, só para
diversificar.
Muito tempo depois, há um filósofo chamado Leibniz, que faz e inventa
um conceito bem extraordinário, a que chamará de "mônada", e escolhe
uma palavra técnica, complicada: "mônada".
E, nos conceitos, há sempre algo um pouco louco... Essa mãe que só
seria mãe, em outro caso, a idéia pura. Há algo um pouco louco. Pois
bem, a mônada leibniziana designa um sujeito, alguém, você ou eu,
enquanto alguém que exprime a totalidade do mundo. E ao exprimir a
totalidade do mundo, ela só exprime, claramente, uma pequena região do
mundo: seu território. Já vimos, já falamos do território. Seu
território, ou o que Leibniz chama seu "departamento". Portanto, uma
unidade subjetiva que exprime o mundo inteiro, mas só exprime
claramente uma região, um departamento do mundo, é o que ele chama uma
mônada. Aí também é um conceito, ele o cria, esse conceito não existia
antes dele, pergunta-se: mas por quê? Porque ele o cria, é muito
bonito, mas por que fazê-lo, por que dizer isso e não outra coisa? É
preciso encontrar o problema, não que ele o esconda, mas se não o
procuramos um pouco, não o encontraremos. É esse o charme de ler
filosofia. Tem tanto charme e é tão divertido quanto ler um romance,
ou olhar quadros. É prodigioso. O que percebemos quando lemos? Ele não
criou o conceito de mônada por prazer, mas por outras razões, ele
coloca um problema, a saber, que tudo no mundo só existe dobrado. Por
isso escrevi um livro sobre ele que se chama A dobra. Ele vive o mundo
como um conjunto de coisas dobradas umas nas outras. Podemos recuar:
por que ele vive o mundo dessa maneira? O que se passa? Como para
Platão, talvez a resposta seja: na época, será que as coisas se
dobravam mais do que agora? Não temos tempo! O que conta é essa idéia
de um mundo dobrado, e tudo é dobra de dobra, nunca se chega a algo
completamente desdobrado. A matéria é feita de redobras sobre si
mesma, e as coisas do espírito, as percepções, os sentimentos são
dobrados na alma. É precisamente porque as percepções, os sentimentos,
as idéias estão dobrados em uma alma, que ele constrói esse conceito
de uma alma que exprime o mundo inteiro, ou seja, no qual o mundo
inteiro se encontra dobrado. Podemos quase dizer: o que é um mau
filósofo e o que é um grande filósofo? Um mau filósofo é alguém que
não inventa conceitos, e se serve de idéias prontas, emite opiniões. E
aí ele não faz filosofia, ele diz: "É isso o que penso". Conhecemos
muitos, ainda hoje, mas em todos os tempos houve opiniões. Ele não
inventa conceito, não coloca, no verdadeiro sentido da palavra
problema, nenhum problema. Fazer história da filosofia é um longo
aprendizado, em que se aprende, em que se é aprendiz, nesse duplo
campo: a constituição dos problemas, a criação dos conceitos. O que é
que mata, o que faz com que o pensamento possa ser idiota, débil,
etc.? As pessoas falam, mas nunca se sabe de que problema elas falam.
Não só não criam conceitos, elas emitem opiniões, mas além disso,
nunca se sabe de que problema elas falam. Ou seja, conhecemos, a
rigor, as questões, mas se digo: "Deus existe?", não é um problema.
Não disse o problema, onde ele está? Por que coloco tal questão? Que
problema está por detrás disso? As pessoas querem colocar a questão:
"acredito ou não em Deus?" Mas ninguém liga se acreditam ou não em
Deus, o que conta é: por que dizem isso, a que problema isso responde?
E que conceito de Deus elas vão fabricar. Se você não tiver nem
conceito nem problema, você fica na besteira, não faz filosofia. Isso
mostra o quanto a filosofia é divertida, e a história da filosofia, já
que é isso fazer história da filosofia! Não é muito diferente do que
tem de fazer quando está em frente a um quadro ou uma obra musical.
CP: Voltamos a Gauguin e Van Gogh, já que evocou seus medos antes de
abordar a cor. O que aconteceu quando você passou da história da
filosofia para sua própria filosofia?
GD: Aconteceu o seguinte: provavelmente a história da filosofia tinha
me ensinado coisas, ou seja, me sentia mais capaz de abordar o que é a
cor em filosofia. Mas por que isso se coloca? Por que a filosofia não
pára? Por que não pára, por que há ainda filosofia hoje? Porque sempre
há lugar para criar conceitos. É a publicidade que se apodera dessa
noção de conceito. Ela cria conceitos, com os computadores. Há toda
uma linguagem que foi roubada da filosofia.
CP: A comunicação.
GD: A comunicação. Deve-se ser criativo, criar conceitos. Mas o que
chamam "conceito", "criar" é tão cômico, que não há como insistir.
Continua a ser tarefa da filosofia. Nunca me senti tocado por pessoas
que dizem: "a morte da filosofia", "ultrapassar a filosofia", são
filósofos que dizem coisas tão complicadas. Isso nunca me disse
respeito porque me pergunto: "O que isso quer dizer?" Enquanto houver
necessidade de criar conceitos, haverá filosofia, é esta sua
definição. Os conceitos não estão prontos, é preciso criá-los. E os
criamos em função de problemas. Os problemas evoluem. Pode-se, é
claro, ser platônico, ser leibniziano, ainda hoje, em 1989, pode-se
tudo isso, pode-se ser kantiano. O que significa isto? Quer dizer que
se estima que alguns problemas, não todos, colocados por Platão
continuam válidos, com certas transformações, então se é platônico, e
se utilizam conceitos platônicos. Ainda que hoje se coloquem problemas
de outra natureza, não há caso em que não haja um ou vários grandes
filósofos que tenham algo a nos dizer sobre os problemas transformados
de hoje. Mas fazer filosofia é criar novos conceitos em função dos
problemas que se colocam hoje. O último aspecto dessa longa questão
seria, é evidente: bem, mas o que é a evolução dos problemas? O que a
assegura? Posso sempre dizer: forças históricas, sociais. Sim, claro,
mas há algo mais profundo. É misterioso. E não teríamos tempo, mas
creio em uma espécie de devir do pensamento, de evolução do pensamento
que faz com que não apenas não coloquemos os mesmos problemas, mas com
que não os coloquemos do mesmo modo. Um problema pode ser colocado de
vários modos sucessivos, e há um apelo urgente, como uma grande
corrente de ar, que faz apelo à necessidade de sempre criar, recriar
novos conceitos. Há uma história do pensamento que não se reduz à
influência sociológica ou... Há um devir do pensamento, que é algo
misterioso, que seria preciso definir, que faz com que, talvez, não se
pense hoje da mesma maneira que há cem anos. Processos de pensamento,
elipses de pensamento, o pensamento tem sua história. Há uma história
do pensamento puro. Fazer filosofia, para mim, é exatamente isso. A
filosofia só teve, sempre, uma função. Ela não precisa ser
ultrapassada, pois tem sua função. Queria dizer alguma coisa?
CP: Como um problema evolui através dos tempos?
GD: Não sei. Deve variar.
CP: Já que o pensamento evolui...
GD: Deve variar conforme cada caso. No século 17, na maioria dos
grandes filósofos... qual é a preocupação negativa deles? É impedir o
erro. Trata-se de conjurar os perigos do erro. Em outros termos, o
negativo do pensamento é que o espírito se engana, evitar que ele se
engane. Como evitar o erro? Depois, há um deslocamento bastante lento,
e no século 18 começa a surgir um problema diferente. Poderia parecer
o mesmo, mas não é: é denunciar não mais o erro, mas denunciar as
ilusões. A idéia de que a mente cai no erro, e está rodeada de
ilusões, e mais: que ela própria produz ilusões. Não apenas cai em
erros, mas produz ilusões, é todo o movimento do século 18, dos
filósofos do século 18, a denúncia, a superstição, etc. Poderia
parecer com a situação do século 17, mas, na verdade, o problema que
começa a surgir é inteiramente novo. Pode-se dizer, também aí há
razões sociais, etc., mas há também uma história secreta do pensamento
que seria apaixonante fazer, a questão já não é como evitar cair no
erro, mas como chegar a dissipar as ilusões pelas quais o espírito
está rodeado. E, no século 19, digo coisas simples, rudimentares de
propósito. No século 19, o que acontece? É como se algo se deslocasse,
e até mesmo se rompesse completamente, mas é, cada vez mais, como
evitar, o quê? A ilusão, não. É que os homens, como criaturas
espirituais, não param de dizer besteiras. Não é a mesma coisa que uma
ilusão. Não é cair em uma ilusão. É como conjurar a besteira. Isso
aparece claramente em pessoas no limiar da filosofia. Flaubert estava
no limiar da filosofia, o problema da besteira, Baudelaire, o problema
da besteira, tudo isso. Já não é o mesmo que a ilusão. Pode-se dizer,
está ligado a evoluções sociais, por exemplo, a evolução burguesa no
século 19, que faz do problema da besteira um problema urgente. Mas há
algo mais profundo nessas evoluções, nessa história dos problemas que
o pensamento enfrenta, e quando se coloca um problema, novos conceitos
aparecem. De modo que, se se compreende a filosofia desse modo,
criação de conceitos, constituições de problemas, os problemas estando
mais ou menos escondidos, é preciso redescobri-los. Percebe-se que a
filosofia nada tem a ver com o verdadeiro e o falso. A filosofia não é
procurar a verdade. Procurar a verdade não quer dizer nada. Trata-se
de criar conceitos, o que isso quer dizer? E constituir um problema?
Não se trata de verdade ou falsidade, trata-se de sentido! Um problema
tem de ter um sentido. Há problemas que não têm sentido, outros que o
têm. Fazer filosofia é constituir problemas que têm um sentido e criar
os conceitos que nos fazem avançar na compreensão e na solução do
problema.
CP: Voltemos a duas questões que lhe concernem mais. Quando você refez
a história da filosofia com Leibniz, no ano passado, foi o mesmo que
você fez há vinte anos, antes de produzir sua própria filosofia? Foi
da mesma maneira?
GD: Não, de modo algum. Pois antes eu me servia, realmente, da
filosofia, e da história da filosofia, como um modo de... como uma
espécie de aprendizado indispensável, onde procurava quais eram os
conceitos dos outros, de grandes filósofos, e a que problemas eles
respondiam. Enquanto que agora, no livro que escrevi sobre Leibniz,
não há vaidade no que digo, misturei problemas do século 20, que podem
ser os meus, com problemas de Leibniz. Dito que estou convencido da
atualidade dos filósofos. Fazer como um grande filósofo, o que isso
quer dizer? Fazer como ele não é, necessariamente, ser seu discípulo.
Fazer como ele é prolongar sua tarefa, é criar conceitos que têm
relação com os que ele criou e colocar problemas em relação e em
evolução com os que ele criou. Creio que, ao fazer Leibniz, eu estava
mais nessa via, enquanto que em meus primeiros livros de história da
filosofia, estava no estágio pré-cor.
CP: Você declarou, sobre Spinoza, e pode-se aplicar a Nietzsche, que
eles o ligavam à parte escondida e maldita da história da filosofia. O
que quis dizer com isso?
GD: Teremos oportunidade de voltar a isso. Para mim, essa parte
escondida consiste em pensadores que recusaram qualquer
transcendência. Seria preciso definir, voltaremos a falar talvez da
transcendência, são autores que recusam os universais, ou seja, a
idéia de conceito que têm valor universal, e toda transcendência, ou
seja, toda instância que ultrapassa a terra e os homens. São autores
da imanência.
CP: Seus livros sobre Nietzsche ou Spinoza fizeram época, você é
conhecido por eles. No entanto, não se pode dizer que você é
nietzschiano ou spinozista, como se pode dizer de um platônico ou de
um nietzschiano. Você atravessou tudo isso, isso lhe servia de
aprendizado e você já era deleuziano. Não se pode dizer que você é
spinozista!
GD: Você me faz um grande elogio. Se for verdade, fico muito feliz.
CP: Você se sentia spinozista?
GD: Sempre desejei, bem ou mal, posso ter fracassado, mas acho que
tentei colocar problemas por minha conta e criar conceitos por minha
conta. No limite, sonharia com uma quantificação da filosofia. Cada
filósofo seria afetado por um número mágico, segundo o número de
conceitos que realmente criou, remetendo a problemas, etc. Haveria
números mágicos, Descartes, Hegel, Leibniz. Seria interessante. Não
ouso me colocar aí, mas eu teria, talvez, um pequeno número mágico, ou
seja, criado alguns conceitos em função de problemas. Simplesmente,
digo para mim: minha honra é que, seja qual for o gênero de conceito
que tentei criar, posso dizer a que problemas ele respondeu. Senão
seria conversa fiada. Acho que acabamos esse ponto.
CP: Para terminar, a última questão. É um pouco provocativo. Em 68, ou
mesmo antes, quando todo mundo explicava Marx, lia Reich, não havia
provocação de sua parte, voltar-se para Nietzsche, suspeito de
fascismo, naqueles anos, e falar de Spinoza e do corpo, quando só se
falava de Reich? Sua história da filosofia não funcionava como uma
pequena provocação? Não havia provocação?
GD: Não. Isso está ligado ao que acabamos de dizer. É quase a mesma
questão, porque o que eu procurava, mesmo o que procurava com Félix,
era uma espécie de dimensão realmente imanente do inconsciente. Por
exemplo, toda a psicanálise está cheia de elementos transcendentais: a
lei, o pai, a mãe, tudo isso. Enquanto que um campo de imanência, que
permitisse definir o inconsciente, isso é o campo... Talvez Spinoza
pudesse ir mais longe do que ninguém, talvez Nietzsche pudesse ir mais
longe do que ninguém. Parece-me que talvez não fosse tanto provocação,
era que Spinoza e Nietzsche formam, em filosofia, talvez, a maior
liberação do pensamento, quase no sentido de um explosivo. E talvez os
conceitos, os conceitos mais insólitos, porque os problemas deles eram
problemas um pouco malditos, que não se ousava colocar, na época de
Spinoza, em todo caso, com certeza, mas mesmo na época de Nietzsche.
Problemas que não se ousa colocar muito, problemas picantes.
I de Idéia
CP: I de Idéia. O que é ter uma idéia? Demonstração com o cinema e
Vincent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.
GD: Estamos na letra K.
CP: Não, em I. Estamos em I de idéia. Não é mais a idéia platônica que
acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário de teorias, você
sempre foi um apaixonado pelas idéias dos filósofos, pelas idéias dos
pensadores no cinema, ou seja, pelos diretores e pelas idéias dos
artistas na pintura. Você sempre deu preferência à idéia, em vez de
explicações e comentários. A sua e a dos outros. Por que, para você, a
idéia preside tudo?
GD: É verdade. A idéia no sentido em que a usamos, pois não se trata
mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter
uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há pessoas extremamente
interessantes que passaram a vida inteira sem ter uma idéia. Pode-se
ter uma idéia em qualquer área. Não sei onde não se deve ter idéias.
Mas é raro ter uma idéia. Não acontece todos os dias. Um pintor tem
tantas idéias quanto um filósofo, mas não se trata do mesmo tipo de
idéias. Pensando nas diferentes atividades humanas, seria bom saber
sob que forma se apresenta uma idéia em determinados casos? Em
Filosofia, acabamos de ver isso. A idéia, em Filosofia, se apresenta
na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma
descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta criação
em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra musical. Os outros
têm idéias... Fico impressionado com os diretores de cinema. Há muitos
diretores que nunca tiveram uma idéia. As idéias são uma obsessão,
elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas
formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito
simples, penso em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não
cobre tudo, mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que
ele é uma pessoa que se pergunta o que quer dizer: "As pessoas
sonham". Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas
sonham, sim, mas Minnelli faz uma pergunta muito estranha que lhe é
muito particular: "O que quer dizer estar preso num sonho de alguém?"
Passa pela comédia, tragédia, pelo abominável, etc. O que quer dizer
estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas terríveis
por sermos prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às
vezes, Minnelli nos traz um sonho: "O que é estar preso no pesadelo da
guerra?" E o resultado foi o admirável Os cavaleiros do Apocalipse. E
ele não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli, e,
sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer "estar preso num
pesadelo"? Estar preso no sonho de uma menina resulta nos famosos
musicais em que Fred Astaire ou Gene Kelly, não sei ao certo, escapa
das tigresas e panteras negras. Isso é estar no sonho de alguém. É uma
coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma idéia. No entanto, não é um
conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria Filosofia e
não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões, três
coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu
trabalho futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender
melhor isso. Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o
que podemos chamar de "perceptos". Os perceptos fazem parte do mundo
da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria
perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção?
Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de
Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder
construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles
que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e
percepções que vai além daquele que a sente. Vou dar alguns exemplos.
Há páginas de Tolstoi que descrevem o que um pintor mal saberia
descrever. Ou páginas de Tchekov que, de outra maneira, descrevem o
calor da estepe. Há um grande complexo de sensações, pois há sensações
visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca.
Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical
em relação àquele que as sentiu. Tolstoi também descreve atmosferas.
As grandes páginas de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem
chegar a isso. Há um grande romancista americano que quase disse isso.
Ele não é muito conhecido na França, e gosto muito dele. É Thomas
Wolfe. Ele descreve o seguinte: "Alguém sai de manhã, sente o ar
fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão torrado, etc., um passarinho
passa voando... Há um complexo de sensações. O que acontece quando
morre aquele que sentiu tudo isso? Ou quando ele faz outra coisa? O
que acontece?"
Isso me parece a questão da arte. A arte dá uma resposta para isso:
dar uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que não
é mais visto como sentido por alguém ou que será sentido por um
personagem de romance, ou seja, um personagem fictício. É isso que vai
gerar a ficção. E o que faz um pintor? Ele faz apenas isso também, ele
dá consistência a perceptos. Ele tira perceptos das percepções. Há uma
frase de Cézanne que me toca muito. Um pintor não faz outra coisa. Há
uma frase que muito me impressiona.
Pode-se dizer que os impressionistas distorcem a percepção. Um
conceito filosófico ao pé da letra é de rachar a cabeça, porque é o
hábito de pensar que é novo. As pessoas não estão acostumadas a pensar
assim. É de rachar a cabeça! De certa forma, um percepto torce os
nervos e podemos dizer que os impressionistas inventaram perceptos.
Mas Cézanne disse uma frase que acho muito bonita: "É preciso tornar o
impressionismo durável". Quer dizer que o motivo ainda não adquiriu
independência. Trata-se de torná-lo durável e, para isso, são
necessários novos métodos. Ele não quis dizer que se deve conservar o
quadro, e sim que o percepto adquire uma autonomia ainda maior. Para
tal, precisará de uma nova técnica. E há um terceiro tipo de coisa e
muito ligada às outras duas. É o que se deve chamar de afectos. Não há
perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de
percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente.
Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam
daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa
por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande
criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima
de nossa compreensão? É possível.
Mas o que quero dizer é que as três estão ligadas. É uma questão de
acentuar as coisas. Quando se pega um conceito filosófico, este
conceito faz com que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de
videntes, pelo menos aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos
filósofos mais videntes que existe. Nietzsche também faz ver. E eles
também são fantásticos "lançadores de afectos". É por isso que me vem
logo à mente a idéia de uma música destes filósofos. Assim como a
música faz ver coisas estranhas. As vezes, ela nos faz ver cores, mas
cores que não existem fora da música. E os perceptos também. Todos
estão muito ligados. Eu sonho com uma espécie de circulação entre uns
e outros, entre os conceitos filosóficos, os perceptos pictóricos, os
afectos musicais. E não é de se espantar que existam repercussões. Por
mais independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram
constantemente.
CP: Essas idéias dos pintores, artistas e filósofos são o contrário de
se ter uma idéia, são uma idéia da percepção, do afecto e da razão.
Por que você... Na vida, a gente pode ver um filme ou ler um livro que
não tem uma idéia nenhuma. Mas isso o chateia muito, não lhe
interessa, acha chato. Para você, não interessa ver ou ler alguma
coisa que pode ser divertida se não existe uma idéia. Se não tem
idéia.
GD: No sentido em que acabo de definir a idéia, não sei como seria
possível. Se me mostrar um quadro que não tem percepto nenhum, onde há
apenas uma vaca representada com uma certa semelhança, mas sem
percepto de vaca, onde a vaca não seja elevada ao grau de percepto,
não há interesse. Se me faz ouvir uma música sem afecto, eu nem
entenderia o que é. Se me mostrar um filme ou um livro de filosofia
idiota, não vejo prazer algum nisso.
CP: Mas não é um livro de filosofia idiota, pode ser humorístico, que
contenha humor.
GD: Um livro humorístico pode estar cheio de idéias. Tudo depende do
que chama de humorístico. Nunca ninguém me fez rir tanto quanto
Beckett ou Kafka. Sou muito sensível ao humor. Acho que é extremamente
engraçado. Não gosto tanto dos comediantes na TV.
CP: Menos Benny Hill, que tem uma idéia cômica.
GD: Sim, se ele tiver uma idéia. Mesmo nesta área, os grandes
burlescos americanos têm algumas idéias.
CP: Para fechar esta questão mais pessoal, já lhe aconteceu de sentar-
se para escrever sem ter idéia do que vai fazer? Se não tem idéia, o
que acontece?
GD: Se eu não tenho uma idéia, não me sento para escrever. O que pode
acontecer é que a idéia não esteja precisa, que ela me escape, que eu
tenha buracos de memória. Eu tive e tenho esta dolorosa experiência,
sim. As coisas não fluem. Idéias não nascem prontas. É preciso fazê-
las e há momentos terríveis em que se entra em desespero achando que
não se é capaz.
CP: É a expressão ou a idéia que faltam? São as duas coisas?
GD: É impossível diferenciá-las. Será que tenho a idéia e não consigo
expressá-la ou não tenho idéia alguma? É tão parecido. Se não consigo
expressá-la, não tenho idéia. Ou me falta uma parte da idéia, pois ela
não chega inteira. Ela vem de partes diferentes, de vários horizontes.
Se falta-lhe um pedaço, ela é inutilizável.
J de Joie [Alegria]
CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois
é um conceito de Spinoza, que tornou a alegria um conceito de
resistência e vida. "Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria
para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da má-
consciência, da culpa e de todos os afectos tristes que padres, juízes
e psicanalistas exploram". Entende-se perfeitamente do que você gosta
nisso tudo. Gostaria que distinguisse a alegria da tristeza e
definisse o que é a distinção de Spinoza. Você descobriu alguma coisa
no dia em que leu isso?
GD: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados de
afectos em Spinoza. Vou simplificar muito, mas quero dizer que a
alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente alegria
quando preenche, quando efetua uma de suas potências. Voltemos aos
nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor.
Entro um pouco na cor.
Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma potência é
isso, efetuar uma potência. Mas o que é equívoco é a palavra
"potência". E o que é a tristeza? É quando estou separado de uma
potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado.
"Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias... não era
permitido, etc." É aí que ocorre a tristeza. Qualquer tristeza resulta
de um poder sobre mim.
CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.
GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o que
diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso especificar que não
existem potências ruins. O que é ruim não é... O ruim é o menor grau
de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir
alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua
potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes maus. E talvez
todo poder seja mau por natureza. Não, talvez seja muito fácil dizer
isso. Mas mostra bem a idéia da ... A confusão entre poder e potência
é arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão
submissas, separa-as do que elas podem fazer. Tanto que foi deste
ponto que partiu Spinoza. Como você citou: "A tristeza está ligada aos
padres, aos tiranos..."
CP: Aos juízes.
GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles podem, que
proíbem as efetuações de potência. Curiosamente, há pouco, você falou
da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste exemplo, vê-se esta
questão muito importante. Há textos de Nietzsche que poderiam parecer
preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da forma como
propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os textos em que fala
do povo judeu, o que Nietzsche critica nele? O que fez com que, em
seguida, dissessem que Nietszche era um anti-semita. É interessante,
pois o que ele repreende no povo judeu, em condições específicas, é o
fato deste povo ter inventado um personagem que não existia antes: o
padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos judeus
na forma de um ataque. O ataque é contra o povo que inventou o padre.
Segundo ele, nas outras formações sociais, existem feiticeiros,
escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre. Eles
inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande força
filosófica, não deixou de admirar o que detesta, ele disse: "Mas é
incrível ter inventado o padre. É uma coisa prodigiosa". Em seguida,
fez a ligação direta dos judeus com os cristãos. Só não é o mesmo tipo
de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no
mesmo caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a
filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a
ter inventado, criado o conceito de padre. E, a partir daí, trouxe um
problema fundamental que é: em que consiste o poder sacerdotal? Qual é
a diferença entre o poder sacerdotal e o poder real? Estas são
questões ainda muito atuais. Pouco antes de sua morte, Foucault tinha
encontrado a mesma coisa, só que com seus próprios meios. Aí,
poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia. Foucault
também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que,
ao mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma
história do pensamento. E o que é este poder de padre e em que está
ligado à tristeza? Segundo Nietzsche, o padre se define desta forma:
ele inventou a idéia de que os homens estão num estado de dívida
infinita. Eles têm uma dívida infinita. Antes, havia histórias de
dívida, mas Nietzsche precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos
deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram bem depois de Nietzsche que,
nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não funcionava
tanto através da troca, como se pensava, mas por partes de dívidas:
uma tribo tinha uma dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de
dívidas finitas: eles recebiam e devolviam. A diferença com a troca é
que havia a realidade do tempo. Era uma restituição diferida. É
importante! A dívida precede a troca. São questões filosóficas: a
permuta, a dívida, a dívida que precede a troca. É um grande conceito
filosófico. Digo filosófico porque Nietzsche disse antes dos
etnólogos. Mas enquanto as dívidas têm este regime finito, o homem
pode se libertar. O padre judeu invoca, pois, em virtude de uma
Aliança, a idéia de uma dívida infinita do povo judeu para com Deus, e
os cristãos retomam esta idéia de outra forma, a idéia de dívida
infinita ligada a do pecado original. O personagem do padre é muito
curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que a Filosofia
seja atéia, mas, no caso de Spinoza que já tinha esboçado uma análise
do padre, do padre judeu no Tratado Teológico-Político, pode acontecer
que conceitos filosóficos sejam verdadeiros personagens. É por isso
que a Filosofia é tão concreta. Fazer o conceito do padre é como algum
artista faria o quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre
trazido por Spinoza, por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma
linhagem apaixonante. Eu também gostaria de entrar nesta linha e ver
que poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona mais, mas quem o
substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral. Em que
ele se define? Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas
eles têm em comum o fato de manterem-se no poder através das paixões
tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo: "Arrependam-se em nome
da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita". Por esse
caminho, eles têm poder! O poder é sempre um obstáculo diante da
efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se
aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste.
Sim, existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação das
potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O tufão é uma
potência. Alegra-se na alma, mas não por derrubar casas, mas
simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre pelo que somos, por
ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de si mesmo, isto
não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o prazer da
conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista não consiste em
servir pessoas. A conquista é, para o pintor, conquistar a cor. Isso
sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que isso não
termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista
uma potência, ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela
acaba não suportando. Van Gogh!
CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que escapou da dívida
infinita, por que se queixa da manhã à noite e é um defensor do
lamento e da elegia?
GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela
é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia.
É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita sobre a elegia.
Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o lamento do
profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que
se lamenta e diz: "Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz
para ser escolhido por Deus?" Neste sentido, ele é o contrário do
padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O que significa: "É
grande demais para mim". Eis o que é a queixa: "O que está acontecendo
comigo é grande demais para mim". Aceitando, pois, o lamento, o que
nem sempre se vê, pois não é só "Ai, ai, que dor!", mas também pode
ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que está querendo dizer. A
velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade,
querendo dizer: "Que potência está se apoderando da minha perna e que
é grande demais para que eu a suporte?" Se formos procurar na
História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de tudo, a
fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os
grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas
prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que não
tem mais um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é
interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se queixa.
Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na
queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma
oração. Os queixumes populares, tudo... A queixa do profeta, a de um
tema que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O
hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco
são bonitas: "Por que tenho um fígado? Por que tenho um baço?" Não é o
"Ai, como dói!", e sim "Por que tenho órgãos?" Por que isso, por que
aquilo... O lamento é sublime! O queixume popular, o lamento do
assassino, que é cantado pelo povo... São os excluídos sociais que
estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado
Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a
elegia chinesa é, acima de tudo, animada por aquele que não tem mais
estatuto social, um escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto,
por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um
estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem
estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a
geração dos negros na América com a abolição da escravidão. Quando
houve a abolição ou então na Rússia, não tinham previsto um estatuto
social para eles e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se
eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É
neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma
espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse
filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A
carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte!
Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me
toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas. Pessoas
querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie de...
A queixa é a mesma coisa: "não tenha pena de mim, disso cuido eu". Mas
ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de algo
ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de
todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque
seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência
de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-
se escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a
alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência, sim, mas
a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua uma potência,
coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao
pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo Literatura quando digo
que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura
do que fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as
relações com a cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder,
é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na
felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é
detalhe.
CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!
GD: Aí tem menos graça.
CP: Sinto que esta vai ser rápida.
K de Kant
CP: De todos os filósofos que você estudou, Kant parece ser o mais
distante do seu pensamento. Mas você diz que todos os autores que
estudou tem algo em comum. Há alguma coisa em comum entre Kant e
Spinoza?
GD: Eu prefiro, se me permite, a primeira parte da pergunta. Por que
estudei Kant já que ele não tem nada em comum com Spinoza, nem com
Nietzsche, apesar de este último ter lido muito Kant? Não temos a
mesma concepção de filosofia. Mas por que, mesmo assim, Kant me
fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de sinuosidades. Um dos
motivos é o fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que nunca
fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de tribunais,
talvez sob a influência da Revolução Francesa. Mas até então tentamos
falar de conceitos como se fossem personagens. Antes de Kant, no
século 18, que o precedeu, apresentou-se um novo tipo de filósofo, o
investigador. Investigação. Investigação sobre o entendimento humano,
investigação sobre isso e aquilo. O filósofo era visto como um
investigador. Ainda mais cedo, no século 17, Leibniz foi, sem dúvida,
o último representante desta tendência. Ele era visto como um
advogado, ele defendia uma causa. E Leibniz pretendia ser o advogado
de Deus! Como se Deus tivesse algo a ser repreendido. Leibniz escreveu
um maravilhoso opúsculo sobre a causa de Deus. Era a causa jurídica de
Deus, a causa de Deus defendida. Há um encadeamento de personagens: o
advogado, o investigador e, com Kant, houve a chegada do tribunal, do
tribunal da razão. As coisas eram julgadas em função de um tribunal da
razão. E as faculdades, no sentido do entendimento, a imaginação, o
conhecimento e a moral eram medidas em função deste tribunal. É claro
que através de um determinado método prodigioso criado por Kant que
chamaram de "método crítico", que é o método propriamente kantiano.
Todo este aspecto me deixa horrorizado, mas é um horror fascinado
também, pois é genial ao mesmo tempo. Dentre os inúmeros conceitos que
Kant inventou, está o do tribunal da razão que é inseparável do método
crítico. Meu sonho não é esse. Este é um tribunal do juízo. É o
sistema do juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo
baseado na razão, e não em Deus. Não abordamos este problema, mas
posso fazê-lo agora, assim não precisaremos voltar a este assunto.
Podemos procurar entender... Há um mistério nisso tudo. Podemos tentar
entender por que alguém em particular, eu ou você, estaríamos ligados
ou nos reconhecemos em determinado tipo de problema e não em outro? O
que é a afinidade de alguém com um tipo de problema? Parecem-me os
maiores mistérios do pensamento. Nós nos consagramos a problemas. E
não é qualquer problema, isso também vale para os cientistas. A
afinidade de alguém para determinado problema e não para outro. E uma
filosofia é um conjunto de problemas com consistência própria, mas não
pretende cobrir todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado aos
problemas que procuram meios para acabar com o sistema do juízo e
colocar outra coisa no lugar. Dentre os grandes nomes dos que buscam
isso, você tinha razão em falar de oposição, estão Spinoza, Nietzsche
e, em Literatura, há Lawrence, e guardo um dos maiores para o final:
Artaud. Todos para acabar com o juízo de Deus. Isso é muito
importante, não é loucura: acabar com o sistema do juízo. Todas estas
coisas fariam com que eu não tivesse tanto... Mas, por baixo disso
tudo, e, como sempre, é preciso buscar os problemas que se escondem
sob os conceitos. E Kant traz problemas impressionantes, são
maravilhas. Ele foi o primeiro a ter feito uma inversão de conceitos
impressionante. É por isso que tanto me entristece quando vejo
ensinarem aos jovens, mesmo no nível de vestibular, uma filosofia tão
abstrata sem tentar fazer com que participem de problemas, que são
fantásticos e muito interessantes. Posso dizer que até Kant o tempo
derivava do movimento. Ele era secundário em relação ao movimento. Ele
era considerado como número ou medida do movimento. O que fez Kant?
Não importa como, pois há criação de um conceito. Em tudo o que digo,
só tem isso! Estamos sempre avançando no tema "o que é um conceito".
Ele criou um conceito porque inverteu a subordinação. Para ele, é o
movimento que depende do tempo. De repente, o tempo muda de natureza,
deixa de ser circular. Porque quando o tempo está subordinado ao
movimento, por razões longas demais para explicar agora, é o grande
movimento periódico, é o movimento de rotação periódica dos astros.
Portanto, o movimento é circular. Mas quando o tempo se liberta do
movimento e que este passa a depender do tempo, o tempo se torna uma
linha reta. Sempre me faz pensar na frase de Borges, apesar de ele ter
alguma coisa a ver com Kant: "O labirinto mais terrível do que um
labirinto circular é um labirinto em linha reta". Isso é uma
maravilha, mas é Kant! É ele que destaca o tempo. Além do mais, estas
histórias de tribunal que medem o papel de cada faculdade em função de
tal finalidade... Até que, no final de sua vida, ele foi um dos raros
a ter escrito já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica da
faculdade do juízo. Ele chega à idéia de que é preciso que as
faculdades se relacionem desordenadamente, que se oponham e se
reconciliem, mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as
medidas que justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o
sublime em que as faculdades entram em discordância, em acordos
discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos discordantes,
deste labirinto em linha reta, sua inversão da relação. Toda a
filosofia moderna veio daí, de que não era mais o tempo que provinha
do movimento e, sim, o contrário. É uma criação de conceitos
fantásticos. E toda a concepção do sublime com os acordos discordantes
das faculdades me tocam profundamente. É claro que ele é um grande
filósofo. Um grande filósofo. Ele tem um embasamento que me
entusiasma, mas o que está construído em cima disso não me toca em
nada. Não estou julgando. É apenas um sistema de juízo que gostaria de
ver acabado. Mas não julgo.
CP: E a vida de Kant?
GD: A vida de Kant... Isso não estava previsto!
CP: Há outro aspecto que poderia ter lhe interessado em Kant que é
relativo a Thomas de Quincey, aquela fantástica vida regrada por
hábitos, aquele passeio matinal... A vida do filósofo como se pode
imaginar popularmente. Algo muito particular no qual também podemos
imaginar você, com esta vida mais regrada. O hábito sendo muito
importante.
GD: Acho que...
CP: Na vida de trabalho.
GD: Entendo o que quer dizer. O texto de Quincey a entusiasma e a mim
também, é uma obra-prima. Mas diria que isso pertence a todos os
filósofos. Eles não têm os mesmos hábitos, mas são criaturas com
hábitos. Pode parecer que eles não saibam... Mas é preciso que sejam
criaturas com hábitos. Acho que Spinoza não tinha uma vida muito cheia
de imprevistos. Ele tinha a vidinha dele, com as lentes dele, polindo
as lentes. Ele recebia algumas visitas, etc. Ganhava a vida polindo
lentes. Não era uma vida agitada, a não ser pelos acontecimentos
políticos. Kant também passou por fatos políticos intensos. Tudo o que
dizem sobre aparelhos que Kant inventava para levantar as calças ou as
meias, etc. faz dele um personagem com muito charme. Mas todos os
filósofos são um pouco, como diz Nietzsche, castos, pobres, etc. Mas
ele acrescenta: "Mas tentem adivinhar para que serve isso?" Para que
serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant tinha seu passeio
diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante este passeio
diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os filósofos são seres com
hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito é a contemplação de
alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra, "hábito" é contemplar.
O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos...
Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio
para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este
seria um hábito.
CP: Agora, L de Literatura.
GD: Vamos ao L?
L de Literatura
CP: L de Literatura. Um filósofo cria conceitos e um romancista cria
personagens. Mas os grandes personagens de romance são pensadores.
Elementar, meu caro Watson! L de Literatura.
GD: Chegamos ao L.
CP: Já?
GD: Sim!
CP: A Literatura povoa seus livros de filosofia e a sua vida. Você lê
e relê muitos livros de literatura, do que chamam de "Grande
Literatura". Sempre tratou os grandes escritores como pensadores.
Entre Kant e Nietzsche, você escreveu Proust e os signos, que é um
livro famoso. Lewis Caroll, Émile Zola, Masoch, Kafka, a Literatura
inglesa e americana... Parece que é mais através da Literatura do que
da história da filosofia que você inaugura um novo pensamento.
Gostaria de saber se você sempre leu muito.
GD: Sim. Houve uma época em que li muito mais filosofia, pois fazia
parte da minha profissão, do meu aprendizado, e não tinha muito tempo
para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada
vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que
sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista
bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner também é
muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se explica
em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já percebeu.
É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito, ao mesmo
tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado aos
perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma
comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo
que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão
muito simples: os grandes personagens da Literatura são grandes
pensadores. Eu acabo de reler vários livros de Melville. Está claro
que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby é um pensador. É
um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um pensador. Eles nos
fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária tanto traça
conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso é certo.
Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao mesmo tempo.
Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e perceber e em
criar personagens! Imagine o que é criar personagens! É uma coisa
impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas acontece que estes
transmitem muito, porque o conceito, sob alguns aspectos, é um
personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito. Pelo menos,
eu acho. O que há de comum entre as duas atividades, a grande
filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham em favor da
vida. É o que chamei de potência há pouco. É por isso que os grandes
autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o
caso de Victor Hugo. Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois
alguns tinham uma saúde excelente. Mas por que existem literatos com
saúde fraca? São os mesmos pelos quais passa uma enxurrada de vida. É
justamente por isso. Em relação à saúde fraca de Spinoza ou à de
Lawrence, o que os unia? Era quase o que eu dizia sobre a queixa: eles
viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram
algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os
arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado?
Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há
coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar. Que
coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são
perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável.
É isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um
conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada.
CP: Você se considera um escritor em Filosofia? Um escritor
literariamente falando?
GD: Não sei se me considero um grande escritor em Filosofia, mas sei
que todo grande filósofo é um grande escritor.
CP: Não há uma nostalgia da obra romanesca quando se é um grande
filósofo?
GD: Não, porque é como se dissesse a um pintor: "Por que não faz
música?" Pode-se conceber um filósofo que também escreva romances.
Sartre tentou fazer isso. Não foi nenhum... Para mim, Sartre não era
um romancista, mas ele tentou. Será que houve outros grandes filósofos
que escreveram romances importantes? Nenhum que eu conheça. Mas sei de
filósofos que criaram personagens. Isso já aconteceu. Platão criou
personagens. Nietzsche criou personagens, como Zaratustra. Aí estão os
tais cruzamentos dos quais estamos sempre falando. A criação de
Zaratustra, tanto poética quanto literariamente, foi um grande
sucesso, assim como os personagens de Platão. São pontos em que não se
sabe mais o que é conceito e o que é personagem. Estes talvez sejam os
momentos mais bonitos.
CP: E seu amor por autores menores, como Villiers de I'Isle-Adam ou
Restif de la Bretonne? Sempre cultivou este afecto?
GD: É muito estranho ouvir dizer que Villiers de I'Isle-Adam é um
autor menor. Vamos à pergunta. Respondendo a esta pergunta... É uma
coisa vergonhosa, uma vergonha mesmo. Quando era muito jovem, eu tinha
a seguinte atitude: gostava de ler a obra completa de um autor. Assim,
eu acabava me apegando, não por autores menores -- mas muitas vezes
coincidia --, por autores que tinham escrito muito pouco. Isso porque
Victor Hugo me parecia grande demais, me parecia tão inacessível que
eu chegava ao ponto de dizer que Victor Hugo era ruim, mas que Paul-
Louis Courier era... Eu conhecia perfeitamente Paul-Louis Courier. Ele
tinha escrito muito pouco. Eu tinha esta preferência por autores
chamados "menores". Villiers de I'Isle-Adam não era um autor menor.
CP: Não, é um autor fabuloso, mas menor em relação aos grandes da
época.
GD: Joubert! Eu conhecia a obra de Joubert perfeitamente. Além do
mais, o que era vergonhoso, me dava um certo prestígio conhecer
autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Eram manias... Levei muito
tempo para aprender que Victor Hugo era grandioso e que a imensidão da
obra não era pejorativa. Meu amor por autores menores... Mas é verdade
que a Literatura russa não consiste apenas em Dostoiévski e Tolstoi.
Quem ousa chamar Leskov de autor menor? Há coisas muito
impressionantes na obra de Leskov. Autores como ele são geniais. Não
tenho muita coisa a dizer sobre isso, mas esta busca por autores
menores já acabou. O que eu gosto muito é de encontrar em um autor
pouco conhecido alguma coisa que me parece um conceito ou um
personagem extraordinário. Isso sim! Mas não é uma busca sistemática.
CP: Fora Proust, que é um grande livro seu sobre um autor, a
Literatura está tão presente na sua filosofia que ela é uma
referência. Mas você nunca dedicou um livro à Literatura, um livro de
pensamento sobre a Literatura.
GD: Não tive tempo, mas vou fazê-lo. Vou fazê-lo porque tenho vontade.
CP: De crítica?
GD: Sim, sim... Sobre o problema... Sobre o que significa escrever na
Literatura. Para mim. Com tudo o que tenho pela frente, vamos ver se
tenho tempo.
CP: Queria fazer uma última pergunta. Você lê e relê os clássicos, mas
parece que conhece pouco os autores contemporâneos ou que não gosta de
descobrir a Literatura contemporânea. Você prefere ler ou reler um
grande autor a ver o que está sendo lançado ou o que é contemporâneo.
GD: Não é que não goste. Entendo o que quer dizer e vou responder
muito rápido. Não é que eu não goste. É por ser uma atividade especial
e muito difícil. Precisa ter uma formação. Em uma produção
contemporânea é muito difícil ter gosto. É exatamente como quem
conhece novos pintores. É algo que se aprende. Admiro muito as pessoas
que freqüentam galerias e dizem ou sentem que naquele trabalho existe
de fato um pintor. Eu não sou capaz disso. Preciso de tempo. Para você
ter uma idéia, eu precisei de cinco anos para entender a novidade de
Robbe-Grillet. Beckett, eu vi logo! Quando falavam de Robbe-Grillet,
eu era tão burro quanto os mais burros falando de Robbe-Grillet. Não
entendia nada! Precisei de cinco anos. Não sou um descobridor. Em
filosofia, eu me sinto mais confiante, sou sensível aos novos tons e
também ao que é repetição de coisas já ditas mil vezes! Nos romances,
sou muito sensível e seguro o suficiente para reconhecer o que já foi
dito ou não tem interesse algum, mas saber se é novo... Uma vez, eu
senti isso. Foi com Farrachi. Descobri do meu modo alguém que me
pareceu ser um ótimo romancista jovem, que é Armand Farrachi. Para
esta pergunta que você me fez é totalmente pertinente, mas eu lhe
respondo dizendo que não se deve achar que se possa sem experiência
julgar o que se faz. Mas o que eu prefiro e acontece com freqüência --
e muito me alegra -- é quando o que eu faço tem alguma repercussão no
trabalho de um jovem escritor ou pintor. Não quero dizer que, por
isso, ele ou eu somos bons. Não é isso. Mas é assim que tenho algum
tipo de encontro com o que se faz atualmente. A minha insuficiência
radical relativa ao julgamento é compensada por estes encontros com
pessoas que fazem coisas que batem com o que eu faço e vice-versa.
CP: Na pintura e no cinema, estes encontros são favoráveis, pois você
vai até lá. Mas não imagino você entrando numa livraria à procura de
livros lançados nos últimos meses.
GD: Sim, é verdade. Talvez esteja ligado ao fato de que a Literatura
não anda bem hoje em dia. Não é uma idéia só minha, nem preconcebida.
Está evidente para todos. É uma literatura tão corrompida pelo sistema
de distribuição, prêmios, etc. que nem vale a pena.
CP: Então, vamos para a letra M.
M de Maladie [Doença]
GD: Doença.
CP: Logo após terminar o manuscrito de Diferença e repetição em 1968,
você foi hospitalizado por causa de uma gravíssima tuberculose. Você,
que falou sobre o fato de Nietzsche e Spinoza e os grandes pensadores
terem saúde fraca, foi obrigado a conviver desde 1968 com a doença.
Você sabia que a tuberculose estava aí há muito tempo? Ou sabia que
seu mal estava aí há muito tempo?
GD: O mal, sim. Sabia que eu tinha algum mal há muito tempo. Mas acho
que sou como a maioria das pessoas, não tinha muita vontade de saber o
que era. E, como a maioria, estava certo de que era um câncer. Então,
não tinha pressa de saber. Eu não sabia que era tuberculose até o
momento em que comecei a cuspir sangue. Sou um filho da tuberculose,
mas foi num momento em que esta doença não apresentava mais perigo
algum, pois já havia os antibióticos. Se tivesse sido dez ou três anos
antes, teria sido bem mais grave. Se tivesse sido alguns anos antes,
eu não teria sobrevivido. Mas não houve problema algum. Além do mais,
é uma doença que não comporta dor. Posso dizer que estive muito
doente, mas é um grande privilégio ter uma doença sem sofrimento, que
é curável, sem dor... Quase não é uma doença. É uma doença, sim, é
verdade. Mas, antes, eu nunca fui um homem saudável. Sempre me cansei
facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se alguém que se
propõe, -- nem estou falando do sucesso desta empreitada -- mas alguém
que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar, saber
se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. Não é que se esteja
à escuta de sua própria vida, mas pensar é para mim estar à escuta da
vida. Não é o que acontece com si próprio. Estar à escuta da vida é
muito mais do que pensar em sua própria saúde. Mas acho que uma saúde
fraca favorece este tipo de escuta. Há pouco, disse que grandes
autores como Lawrence ou Spinoza viram alguma coisa grande, tão grande
que era demais para eles. É verdade que não se pode pensar sem estar
em uma área que exceda um pouco as suas forças, que o torne mais
frágil. Eu sempre tive uma saúde fraca e isso ficou mais claro a
partir do momento em que fui tuberculoso. Aí, eu adquiri todos os
direitos de uma saúde fraca. Sim, é como você diz.
CP: Mas a sua relação com médicos e medicamentos mudou a partir daí.
Você teve que ir a médicos e tomar remédios regularmente, o que foi
uma obrigação! Ainda mais você que não gosta muito de médicos.
GD: Não é uma questão pessoal, pois eu conheci muitos médicos
encantadores. Mas é um tipo de poder ou a forma como eles manipulam
este poder que me parecem detestáveis. Voltamos ao que já falei. É
como se a metade das letras comportasse o todo. A maneira como
manipulam o seu poder é detestável. Como médicos, eles são
detestáveis. Tenho um profundo ódio, não pela pessoa dos médicos que,
em geral, são encantadores, mas pelo poder médico e pela maneira como
usam este poder. Mas uma coisa me deixou feliz e, ao mesmo tempo, é o
que os chateia. Os médicos trabalham cada vez mais com aparelhos e
testes, em geral muito desagradáveis para o paciente e que parecem não
ter interesse algum, a não ser o de confirmar o diagnóstico. Mas se
são médicos talentosos, estes já sabem o diagnóstico e estas provas
cruéis só vêm reforçá-lo. Eles fazem uso destas provas de uma forma
inadmissível. O que me deixou feliz foi que, sempre que eu tive de
passar por um daqueles aparelhos, meu fôlego era fraco demais para ser
registrado pela máquina. E quando tiveram de me fazer um... Não sei
mais como se chama, mas é um exame do coração que não conseguiram
fazer.
CP: Uma ecografia.
GD: Sim, é isso, e tive de passar por este aparelho aí. A minha
alegria foi vê-los furiosos naquele momento. Acho que eles odeiam o
pobre paciente neste momento. Eles aceitam errar o diagnóstico, mas
não aceitam que alguém não possa ser visto pela máquina. Além do mais,
eles são muito incultos. Eles são muito... Como diria? Quando eles se
metem na cultura, é uma catástrofe. A classe médica é uma gente
estranha. O que me consola é que ganham muito dinheiro, mas não têm
tempo para gastá-lo ou aproveitá-lo, pois levam uma vida extremamente
difícil. É verdade que os médicos não me atraem muito. É claro que
isso independe da personalidade deles, mas quando exercem a sua
função, tratam as pessoas como cães. Aí, há de fato uma luta de
classes, pois se o paciente é rico, eles já são bem mais educados.
Menos em cirurgia, que é um caso à parte. Mas os médicos precisariam
de uma reforma, pois há de fato um problema.
CP: E os remédios que precisa tomar o tempo todo?
GD: Até que eu gosto. Remédios não me aborrecem. Mas cansam, claro.
CP: Mas não é uma chatice tomar remédios?
GD: Quando são muitos, como atualmente, sim. Aquele monte de remédios
de manhã cedo parece uma besteira. Mas eu também sinto que é muito
útil. Eu sempre fui a favor dos remédios, até na área de psiquiatria.
Sempre fui a favor da farmácia.
CP: E este cansaço do qual falou, que está ligado à doença, e que já
existia antes da doença, me faz pensar no texto de Blanchot sobre o
cansaço na amizade. O cansaço ocupa grande parte de sua vida. Às
vezes, parece que o usa como desculpa para o que o está chateando.
Você usa o cansaço. O cansaço lhe é útil.
GD: Eu acho o seguinte... Voltamos ao tema da potência. O que é
realizar um pouco de potência, fazer o que se pode, fazer o que está
na minha potência? É uma noção bem complexa, pois o que nos torna
impotentes, como uma saúde fraca ou uma doença..., precisa-se saber
como utilizá-las para, por meio delas, recuperar um pouco da potência.
É claro que a doença deve servir para alguma coisa, como todo o resto.
Não estou falando apenas em relação à vida, na qual ela deve dar um
sensação. Para mim, a doença não é uma inimiga, pois não é uma coisa
que dá a sensação da morte, e sim, que aguça a sensação da vida. Não é
no sentido de: "Ah, como gostaria de viver e quando estiver curado,
vou começar a viver!" Não é nada disso. Não há nada de mais abjeto no
mundo do que um bon vivant. Ao contrário, os grandes vivos são pessoas
de saúde muito fraca. Voltando à questão da doença, ela aguça uma
visão da vida, uma sensação da vida. Quando falo em visão da vida, em
vida ou em ver a vida, é ser tomado por ela. A doença aguça e dá uma
visão da vida. A vida em toda a sua potência, em toda a sua beleza!
Estou seguro disso. Mas como ter benefícios secundários da doença? É
muito simples. É preciso usá-la para ser mais livre. Tem de usá-la,
senão é muito chato, pois a gente se estafa e isso não deve acontecer.
Estafar-se trabalhando para realizar alguma potência vale a pena, mas
estafar-se socialmente, eu não entendo. Não entendo um médico
estressado porque tem clientes demais. Tirar partido da doença é se
libertar das coisas das quais não se liberta na vida normal. Por
exemplo, eu nunca gostei de viajar. Nunca pude, nem soube viajar.
Respeito os que viajam, mas o fato de ter uma saúde tão frágil me dava
muita segurança para recusar qualquer viagem. Sempre foi muito difícil
deitar-me muito tarde. A minha saúde não me permitia deitar tarde
demais. Não estou falando em relação aos amigos, mas às tarefas
sociais. A doença me libera muito. É ótima neste sentido.
CP: Você vê esta fadiga como a doença?
GD: A fadiga é outra coisa. Para mim é: "Hoje, fiz o que pude". A
fadiga é biológica. O dia acabou, pronto. Ele pode durar mais por
razões sociais, mas a fadiga é a formulação biológica do fim do dia.
Não dá para tirar mais nada de você. Visto desta forma, não é um
sentimento desagradável. É desagradável se não se faz nada. Aí, é
angustiante. Do contrário, é bom. Eu sempre fui sensível aos estados
suaves. Estas fadigas suaves. Gosto deste estado quando ele vem no
final de alguma coisa. Isso deveria ter um nome em música. Não sei
como chamariam isso. É uma coda. A fadiga é uma coda.
CP: Gostaria de que falássemos de sua relação com a comida.
GD: A velhice... A velhice, não. A comida?
CP: Sim, porque você gosta de comidas que parecem lhe dar força e
vitalidade, como miolo, lagosta, etc. Mas tem uma relação particular
com a comida. Não gosta muito de comer.
GD: Sim, para mim, comer é uma coisa... Se eu tentasse definir a
qualidade de comer seria muito chato. Para mim, comer é a coisa mais
chata do mundo. Beber, sim! Mas a letra B já passou. Beber é
extremamente interessante. Comer nunca me interessou e acho
chatíssimo. Comer sozinho é terrível. Comer acompanhado muda tudo, mas
não transforma a comida, só me permite suportar comer, mesmo que eu
não diga nada, e faz com que seja menos chato. Comer sozinho... Muita
gente é assim. Aliás, a maioria das pessoas admite que comer é uma
tarefa abominável. Mas é claro que tenho os meus pratos prediletos.
Mas são especiais, pois causam um nojo universal. Mas, afinal, eu bem
que suporto o queijo dos outros.
CP: Você não gosta de queijo.
GD: Dentre as pessoas que não suportam queijo, eu sou um dos raros a
ser tolerante, pois não expulso aquele que come queijo. Sempre
suportei este gosto que me parece igual ao canibalismo. Parece-me o
horror absoluto. Quando me perguntam de que é composta a minha
refeição predileta, que seria uma festa para mim, eu sempre falo de
três coisas que me parecem sublimes e, no entanto, são nojentas:
língua, miolo e tutano. São coisas muito ricas e seria difícil engolir
tudo isso. Mas há alguns restaurantes em Paris que servem tutano. Mas,
depois, não posso comer mais nada, pois servem uma grande quantidade.
Aliás, é fascinante. O miolo e a língua... Se eu tentasse relacionar
com o que dissemos, há uma espécie de trindade. Poderíamos dizer -- e
seria anedótico -- que o cérebro é Deus, é o Pai. Que o tutano é o
Filho, já que está ligado às vértebras, que são pequenos crânios, e
Deus é o crânio. Pequenos crânios, vértebras... Portanto, o tutano é
Jesus. E a língua é o Espírito Santo, que é a própria potência da
língua. Eu também poderia arriscar assim: o miolo é o conceito, o
tutano é o afecto e a língua é o percepto. Não me pergunte por quê,
mas sinto que são trindades. É, esta seria uma refeição fantástica
para mim. Não sei se já tive os três ao mesmo tempo. Talvez em algum
aniversário. Alguns amigos teriam feito uma refeição destas para mim.
Uma festa!
CP: Mas não pode comer as três coisas...
GD: Seria demais!
CP: ... pois fala de sua velhice todos os dias.
GD: A velhice! Alguém soube falar da velhice. Foi Raymond Devos.
Muitas outras coisas foram ditas, mas ele disse o melhor para mim.
Acho que a velhice é uma idade esplêndida. Claro que há algumas
chateações, tudo fica mais lento, nos tornamos lentos. O pior é quando
alguém lhe diz: "Mas não é tão velho assim!" Não entende o que é uma
queixa. Estou me queixando dizendo "Ah, estou velho!". Ou seja, invoco
as potências da velhice. E aí, alguém me diz, com a intenção de me
consolar: "Não está tão velho assim". Eu daria uma bengalada nele!
Logo quando estou em plena queixa da minha velhice, não venham me
dizer: "Até que não é tão velho assim". Pelo contrário, deviam dizer:
"Está velho mesmo!" Mas é uma alegria pura. Fora esta lentidão, de
onde vem esta alegria? O que é terrível na velhice? Não é brincadeira.
É a dor e a miséria. Não é a velhice em si. O que é patético, o que
torna a velhice algo triste são as pessoas pobres que não têm dinheiro
para viver, nem um mínimo de saúde necessário e que sofrem. Isso é que
é terrível. E não a velhice! A velhice não é um mal em si. Com
dinheiro suficiente e um mínimo de saúde, é formidável. E por que é
formidável? Primeiro, porque, na velhice, sabe-se que chegou lá. O que
é muito! Não é um sentimento de triunfo, mas chegou lá. Chegou lá em
um mundo cheio de guerras, de vírus malditos e tudo o mais. Mas
conseguiu atravessar tudo isso, os vírus, as guerras e todas estas
porcarias. Esta é a hora em que só há uma coisa: ser! O velho é alguém
que é. Ponto final. Podem dizer que é um velho rabugento, etc. Mas ele
é. Ele adquiriu o direito de ser. Afinal, um velho pode dizer que tem
projetos. É verdade e não é. São projetos, mas não da forma como
alguém de 30 anos tem projetos. Espero escrever estes dois livros, um
sobre a Literatura e outro sobre a Filosofia. Mas, mesmo assim, estou
livre de qualquer projeto. Estou livre de projetos. Quando se é velho,
deixa-se de ser suscetível. Não há mais suscetibilidades, não há mais
decepções fundamentais. Estamos muito mais desinteressados. Amamos as
pessoas de fato pelo que elas são. Acho que afina a percepção. Vejo
coisas que não via antes, percebo elegâncias às quais eu não era
sensível. Agora, eu as vejo melhor, porque olho para alguém pelo que
ele é, quase como se eu quisesse carregar comigo uma imagem dele, um
percepto ou tirar da pessoa um percepto. Tudo isto torna a velhice uma
arte. Os dias passam numa velocidade impressionante com a escansão, a
fadiga. A fadiga não é uma doença, é outra história. E também não é a
morte. Eu repito: é um sinal de que o dia acabou. Com a velhice,
existem algumas angústias, mas basta evitá-las. Elas são fáceis de
serem esconjuradas. Elas são como os lobisomens ou os vampiros, é só
não estar na frente de um. Gosto desta idéia. Não se deve estar
sozinho à noite quando começa a esfriar, pois somos lentos demais para
poder fugir. Então, são coisas a evitar. A grande maravilha é que as
pessoas deixam a gente de lado, a sociedade deixa a gente de lado. Ser
deixado de lado pela sociedade é uma alegria tamanha! Não que a
sociedade tenha me importunado muito, mas quem não tem a minha idade
ou não está aposentado não sabe a alegria que é ser deixado de lado
pela sociedade. Os velhos que eu ouço se lamentando são aqueles que
não queriam ser velhos, que não suportam a aposentadoria. Não sei por
quê. Que leiam romances! Pelo menos, descobririam alguma coisa. Eles
não suportam. Eu não acredito, com exceção de alguns casos japoneses,
naqueles aposentados que não conseguem encontrar alguma ocupação. É
uma maravilha ser deixado de lado. Basta sacudir-se um pouco para que
tudo caia. Caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira. E
o que resta à sua volta? Só as pessoas que ama e que o suportam e o
amam também. O resto deixou você de lado. Estou falando de mim. Mas
fica muito difícil quando querem trazê-lo de volta. Não suporto isso.
Eu só conheço a sociedade através do aviso de chegada da aposentadoria
todo mês. Do contrário, sei que sou um desconhecido para a sociedade.
O problema é quando alguém acredita que eu ainda faço parte dela e que
me pede uma entrevista. No nosso caso atual, é diferente, pois faz
parte de um sonho de velhice. Mas quando alguém quer me entrevistar,
tenho vontade de dizer: "Tá maluco? Você não sabia que sou um velho e
fui deixado de lado pela sociedade?" Mas é bom. Acho que estão
confundindo as coisas: o problema não é a velhice, mas a miséria e o
sofrimento. Mas quando se é velho, miserável e sofredor, aí, não há
palavras para dizer o que é. Mas um velho simplesmente, que é apenas
velho, é o ser.
CP: Mas como está doente, cansado e velho, fazendo a devida distinção
entre as três coisas, deve ser difícil para aqueles que o cercam e que
não estão doentes, cansados, nem velhos como você. Para seus filhos e
sua mulher?
GD: Meus filhos... Meus filhos, não há muito problema. Poderia haver
algum problema se eles fossem menores, mas como já são grandes, vivem
a sua vida e eu não dependo deles, não há problema algum, a não ser
problemas afetivos quando eles pensam: "Ele parece cansado mesmo". Mas
acho que não há um problema grave com os filhos. E com Fanny, acho que
também não é um problema. Mesmo se para ela... Não sei... É difícil
imaginar o que teria feito a pessoa que ama se tivesse vivido outra
vida. Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela certamente não
viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que não
teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação
literária muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances
esplêndidos que valem por mil viagens? Claro que há problemas, mas
estão acima da minha compreensão.
CP: Para terminar, quando fala de seus projetos, como o livro sobre a
Literatura e o seu último livro O que é a Filosofia?, o que há de
divertido em abordá-los estando velho? Você disse que talvez não os
realizasse, mas que era divertido.
GD: É uma coisa maravilhosa, sabe? Primeiro, há uma evolução. Quando
se é velho, a idéia do que deseja fazer fica cada vez mais pura, no
sentido de que fica cada vez mais refinada. É exatamente como as
famosas linhas de um desenhista japonês. Linhas muito puras. Parece
não ter nada, só uma linha muito fina. Eu só posso conceber isso como
o projeto de um velho. Algo que seja tão puro, tão nada, mas, ao mesmo
tempo, seja tudo, seja tão maravilhoso! Para conseguir alcançar esta
sobriedade, só depois de muito tempo de vida. O que é a filosofia?
Acho muito divertido, na minha idade, a idéia de sair em busca do que
é a Filosofia, de ter a sensação de que sei e de que sou o único a
saber. Se eu morrer atropelado amanhã, ninguém vai saber o que é a
Filosofia. São coisas muito agradáveis para mim. Mas eu poderia ter
escrito um livro sobre o que é a Filosofia há 30 anos. Eu sei que
teria sido muito... Teria sido um livro muito...
CP: Pesado?
GD: Muito diferente do que aquele que concebo agora, em que busco uma
certa sobriedade. Poderia ser bom, como poderia não ser. Mas sei que é
agora que devo concebê-lo. Antes, eu não saberia. Agora, acho que sou
capaz. Mas, de qualquer forma, não seria...
N de Neurologia
CP: N de Neurologia. Um pensamento é um produto da mente e um
mecanismo cerebral. Demonstração. Então, N é neurologia e cérebro.
GD: Neurologia e cérebro... A neurologia é muito difícil.
CP: Seremos breves.
GD: É verdade que a neurologia sempre me fascinou, mas por quê? É o
que acontece na cabeça de alguém ao ter uma idéia. Prefiro quando
alguém tem uma idéia, senão é como um flipperama. O que acontece? Como
se dá a comunicação dentro da cabeça? Antes de falar de comunicação,
como ela acontece dentro da cabeça? Ou então na cabeça de um idiota.
Quem tem uma idéia e um idiota são a mesma coisa. Eles não procedem
por caminhos pré-traçados, por associações já feitas. O que acontece?
Se soubéssemos, acho que entenderíamos tudo. Isso me interessa. Por
exemplo, as soluções têm de ser muito variadas, quer dizer, duas
extremidades nervosas no cérebro podem entrar em contato. É isso que
chamamos de processos elétricos nas sinapses. Há outros casos bem mais
complexos, talvez, que são descontínuos, nos quais há uma falha a
saltar. Acho que o cérebro é cheio de fendas, que há saltos que
obedecem a um regime probabilista, que há relações de probabilidade
entre dois encadeamentos, que é algo muito mais incerto, muito
incerto. As comunicações dentro de um mesmo cérebro são
fundamentalmente incertas, submetidas a leis de probabilidade. O que
faz com que eu pense em algo? Você dirá: "Ele não está dizendo nada de
novo, é a associação de idéias". Seria quase necessário se perguntar
se, quando um conceito é dado... Ou um quadro, uma obra de arte é
contemplada, olhada... Teríamos de tentar fazer o mapa cerebral
correspondente. Quais seriam as comunicações contínuas, as
comunicações descontínuas de um ponto a outro. Há uma coisa que chamou
muito a minha atenção. Assim chegamos onde você queria. O que me
impressionou foi uma história... algo de que os físicos se utilizam
muito sob o nome de "transformação do padeiro". Pega-se um quadrado de
massa, faz-se um retângulo, dobra-se, estica-se novamente etc. São
feitas transformações. Ao final de x transformações, dois pontos
contíguos, sem dúvida, estarão muito distantes. Não há pontos
distantes que, após x transformações, não sejam contíguos. Eu me
pergunto: ao procurarmos algo na cabeça, será que não acontecem
misturas desse tipo? Será que não há dois pontos que, num dado
momento, num estágio do pensamento, eu não sei como aproximar e que,
ao final dessa transformação, estão um do lado do outro? Eu quase
chegaria a dizer que, entre um conceito e uma obra de arte, ou seja,
entre um produto da mente e um mecanismo cerebral, há semelhanças que
são muito comoventes. Acho que a questão "como pensamos?" ou "o que
significa pensar?" diz respeito, ao mesmo tempo, ao pensamento e ao
cérebro, tudo misturado. Acredito mais no futuro da biologia molecular
ou do cérebro do que no futuro da informática ou de todas as teorias
da comunicação.
CP: Você sempre abriu espaço para a psiquiatria do século 19, que se
ocupava muito de neurologia e ciência do cérebro em comparação com a
psicanálise. Você manteve essa prioridade da psiquiatria sobre a
psicanálise justamente devido à sua atenção à neurologia?
GD: Sim, sem dúvida.
CP: E isso continua?
GD: É o que eu estava dizendo. A farmacologia também tem relações
com... A farmacologia e sua ação possível sobre o cérebro e as
estruturas cerebrais que poderíamos encontrar em nível molecular nos
casos de esquizofrenia, tudo isso me parece um futuro mais seguro do
que a psiquiatria espiritualista.
CP: Essa é uma questão de método. Não é segredo, é uma questão aberta
às ciências. Você é um autodidata. Quando você lê uma revista de
neurobiologia, ou uma revista científica, você não é muito bom em
matemática, ao contrário dos filósofos que você estudou. Bergson era
formado em matemática, Spinoza era bom em matemática, Leibniz também.
Como você faz para ler quando tem uma idéia, precisa de algo que lhe
interessa e que você não necessariamente entende tudo? Como você faz?
GD: Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias leituras
de uma mesma coisa e acredito piamente que não é preciso ser filósofo
para ler filosofia. A filosofia é suscetível, ou melhor, precisa de
duas leituras ao mesmo tempo. É absolutamente necessário que haja uma
leitura não-filosófica da filosofia, senão não haveria beleza na
filosofia. Ou seja, não-especialistas lêem filosofia e a leitura não-
filosófica da filosofia não carece de nada, possui sua suficiência. É
simplesmente uma leitura. Isso talvez não valha para todos os
filósofos. Vejo com dificuldade uma leitura não-filosófica de Kant,
por exemplo. Mas um camponês pode ler Spinoza. Não me parece
impossível que um comerciante leia Spinoza.
CP: Nietzsche.
GD: Nietzsche mais ainda. Todos os filósofos de que gosto são assim.
Acredito que não haja necessidade de compreensão. É como se a
compreensão fosse um nível de leitura. É como se você me dissesse que,
para apreciar Gauguin ou um grande quadro, é preciso conhecê-lo
profundamente. O conhecimento profundo é melhor, mas também há emoções
extremamente autênticas, extremamente puras e violentas na ignorância
total da pintura. É claro que alguém pode ficar abalado com um quadro
e não saber nada a seu respeito. Podemos ficar muito emocionados com a
música ou com uma certa obra musical sem saber uma palavra. Eu, por
exemplo, fico emocionado com LuluWozzeck. Nem falo do Concerto em
memória de um anjo, que acredito que seja o que mais me emociona no
mundo. Sei que seria ainda melhor ter uma percepção competente, mas
digo que tudo que é importante no campo mental é suscetível a uma
dupla leitura, desde que não façamos essa dupla leitura casualmente
enquanto autodidatas. É algo que fazemos a partir de problemas vindos
de outro lugar. É como filósofo que tenho uma percepção não-musical da
música, que talvez seja para mim extraordinariamente comovente. Da
mesma forma, é como músico, pintor etc. que alguém pode ter uma
leitura não-filosófica da filosofia. Não ter essa segunda leitura, que
não é exatamente a segunda, não ter duas leituras simultâneas... São
como as duas asas de um pássaro, não é muito bom não ter as duas
leituras simultâneas. Até um filósofo tem de aprender a ler um grande
filósofo não-filosoficamente. O exemplo típico para mim é mais uma vez
Spinoza. Ter um livro de bolso de Spinoza e lê-lo assim... Para mim,
tem-se tanta emoção quanto numa obra musical. De certa forma, a
questão não é mais compreender. Nos meus cursos, nos cursos que dei,
era evidente que as pessoas compreendiam uma parte e não compreendiam
outra. Um livro é assim para todos: compreendemos uma parte, outra,
não. Volto à sua pergunta sobre a ciência. Acho que é verdade, o que
faz que, de certo modo, estejamos no limite da própria ignorância. É
aí que temos de nos posicionar. Temos de nos posicionar no limite do
próprio saber ou da própria ignorância para ter algo a dizer. Se
espero saber o que vou escrever, e se espero saber, literalmente, do
que estou falando, o que eu disser não terá nenhum interesse. Se não
me arrisco e falo com ar de sábio do que não sei, também não haverá
nenhum interesse. Mas estou falando da fronteira que separa o saber do
não-saber. É aí que temos de nos posicionar para ter algo a dizer.
Quanto à ciência, para mim é a mesma coisa. E a confirmação para mim é
que sempre tive relações surpreendentes. Eles nunca me consideraram um
cientista, acham que não entendo muita coisa, mas me dizem:
"Funciona". Quer dizer, alguns me disseram: "Funciona". Quando eu
uso... Seria necessário... Sou sensível aos ecos, não sei como chamar
isso. Vou tentar dar um exemplo bastante simples. Um pintor do qual
gosto muito é Delaunay. O que Delaunay faz? Se eu tentar resumir em
fórmulas, o que Delaunay faz? Ele percebe uma idéia prodigiosa. Isso
nos faz voltar ao início: o que é ter uma idéia? Qual é a idéia de
Delaunay? A sua idéia é que a luz sozinha forma figuras, há figuras de
luz. É algo muito novo. Talvez, muito antes, tivessem já tido essa
idéia. O que aparece com Delaunay é a criação de figuras formadas pela
luz, figuras de luz. Ele pinta figuras de luz e não os aspectos
assumidos pela luz ao encontrar um objeto, o que seria muito
diferente. É assim que ele se afasta de todos os objetos. Sua pintura
não tem mais objetos. Li coisas muito bonitas que ele disse. Ao julgar
severamente o cubismo, ele disse: "Cézanne tinha conseguido quebrar o
objeto, quebrar a compoteira, e os cubistas ficam tentando colá-la".
Portanto, o importante é eliminar o objeto, substituir as figuras
rígidas, geométricas, com figuras de luz pura. Essa é uma coisa:
evento pictórico e evento Delaunay. Não sei as datas, mas isso não
importa. Há uma maneira ou um aspecto da relatividade, da teoria da
relatividade. Conheço só um pouco, não preciso muito disso. Não
precisamos saber grande coisa. Ser autodidata é que é perigoso, mas
não precisamos saber grande coisa. Sei apenas que um dos aspectos da
relatividade é exatamente que, em vez de submeter as linhas
geométricas... Não. Em vez de submeter as linhas de luz, as linhas
seguidas pela luz, às linhas geométricas, a partir da experiência de
Michaelson, acontece o inverso. São as linhas de luz que vão
condicionar as linhas geométricas. Entendo que, cientificamente, é uma
inversão considerável. Isso mudou tudo, pois a linha de luz não tem a
constância da linha geométrica. Tudo mudou. Não digo que tenha sido
tudo, que o aspecto da relatividade tenha sido o mais importante da
experiência de Michaelson. Não vou dizer que Delaunay tenha aplicado a
relatividade. Eu celebraria o encontro entre uma tentativa pictórica e
uma tentativa científica, as quais devem ter alguma relação. Eu estava
dizendo a mesma coisa. Por exemplo: não conheço muito bem os espaços
reimannianos, não conheço os detalhes. Conheço apenas o necessário
para saber que se trata de um espaço construído pedaço por pedaço e
cujas ligações das partes não são predeterminadas. Mas, por razões
totalmente diferentes, preciso de um conceito de espaço que é
construído por ligações que não são predeterminadas. Eu preciso disso.
Não vou passar cinco anos tentando entender Riemann, pois, ao final
desses cinco anos, não terei avançado no meu conceito filosófico. Vou
ao cinema, vejo um espaço estranho, que todos conhecem como o espaço
dos filmes de Bresson, onde o espaço é raramente global, é construído
pedaço por pedaço. Vemos um pedaço de espaço, um pedaço de cela. Em O
condenado à morte, a cela, do que me lembro, nunca é vista inteira,
apesar de ser um pequeno espaço. Não falo da estação de Lyon em
Pickpocket, onde pequenos pedaços de espaço se ligam. Essa ligação não
é predeterminada, e é por isso que será manual. Daí a importância das
mãos para Bresson. É a mão que vai... De fato, em Pickepocket, é a
velocidade na qual os objetos roubados são passados que vai determinar
a ligação de pequenos espaços. Não vou dizer que Bresson aplica um
espaço riemanniano. Digo que pode haver um encontro entre um conceito
filosófico, uma noção científica e um percepto estético. É perfeito.
Digo que sei apenas o necessário de ciência para avaliar encontros. Se
eu soubesse mais, faria ciência e não filosofia. Portanto, falo do que
não sei, mas falo do que não sei em função do que sei. E, se tudo isso
tem a ver com tato, sei lá, não devemos mistificar, não devemos
parecer que sabemos quando não sabemos. Assim como eu tive encontro
com pintores... Foi o dia mais bonito da minha vida. Tive um certo
encontro, não um encontro físico, mas, no que escrevo, tive encontros
com pintores. O maior deles foi com Hantaï. Hantaï me disse: "Sim, há
alguma coisa". Não foi em nível de elogio. Hantaï não é do tipo que
vai me fazer elogios. Não nos conhecemos, mas havia algo. O que foi
meu encontro com Carmelo Bene? Nunca fiz ou entendi de teatro. Tenho
de crer que havia algo. Há pessoas de ciência com quem isso também
funciona. Conheço matemáticos que, quando gentilmente lêem meu
trabalho, dizem: "Para nós, isso funciona". É um pouco chato porque
parece que estou fazendo um elogio a mim mesmo, mas é para responder à
pergunta. Para mim, a questão não é se eu sei muita ciência ou não, ou
se sou capaz de aprender muita ciência. O importante é não falar
besteira, é estabelecer os ecos, esses fenômenos de eco entre um
conceito, um percepto, uma função, já que as ciências não procedem com
conceitos, mas com funções. Quanto a isso, preciso dos espaços de
Riemann. Sim, sei que isso existe, não sei bem o que é, mas isso me
basta.
O de Ópera
CP: O de Ópera. Acabamos de saber que Ópera é um tema um pouco... É um
tema um pouco de brincadeira porque exceto WozzeckLulu, de Berg, a
ópera não faz parte dos seus interesses. Você pode falar de novo sobre
a exceção feita a Berg, mas ao contrário de Foucault ou de Châtelet,
que gostavam muito da ópera italiana, você nunca escutou muita música
nem ópera. O que lhe interessa mais é a canção popular. A canção
popular e, mais especificamente, Edith Piaf. Você é apaixonado por
Edith Piaf. Fale um pouco disso.
GD: Você foi um pouco severa. Primeiro, escutei muita música numa
certa época, há muito tempo. Depois, parei porque pensei: "Não é
possível. Isto é um abismo, toma tempo demais". É preciso ter tempo, e
eu não tenho. Tenho muito a fazer. Não estou falando de obrigações
sociais. Tenho vontade de fazer, escrever algumas coisas e não tenho
tempo para ouvir música ou para ouvir bastante.
CP: Châtelet, por exemplo, trabalhava ouvindo ópera.
GD: Bem, isso é um método. Eu não poderia fazer isso. Ele ouvia ópera.
Não sei se ele fazia isso enquanto trabalhava. Talvez quando recebia
alguém, assim cobria o que lhe diziam quando ele já estava cheio. Mas
esse não é o meu caso. No máximo seria o que eu entendo... Preferiria
que você me perguntasse, que você transformasse a pergunta em: o que
faz com que haja uma comunhão entre uma canção popular e uma obra-
prima musical? Isso me fascina. Acho que Edith Piaf foi uma grande
cantora, ela tinha uma voz extraordinária e, além disso, ela tinha a
característica de sair do tom e de recuperar a nota fora de tom, uma
espécie de sistema em desequilíbrio no qual sempre recuperamos algo.
Esse me parece o caso de todos os estilos. Gosto muito porque é o que
me pergunto sobre tudo em relação à música popular. Eu sempre me
pergunto: "O que isso tem de novo?". Sobre tudo, sobre todas as
produções a primeira pergunta a ser feita é: "O que isso tem de
novo?". Se já foi feito 10 ou 100 vezes, pode ser muito bem feito, mas
compreendo perfeitamente quando Robbe-Grillet diz: "Balzac é
evidentemente um grande gênio, mas qual é o interesse hoje de fazer
romances como os que Balzac fazia?". Isso mancha os romances de Balzac
porque... Isso serve para tudo. O que me tocava em Edith Piaf era no
que ela inovava em relação à geração anterior, em relação a Fréhel e à
outra grande... Damian. Em relação a Fréhel e a Damian. As inovações
que ela trouxe, como ela inovou até no traje das cantoras. Eu era
extremamente sensível à voz de Piaf. Nos cantores mais modernos, é
necessário pensar, para entender o que vou dizer, em Trénet. Qual foi
a inovação das canções de Trénet? Literalmente, nunca tínhamos ouvido
aquele modo de cantar. Insisto muito nesse ponto porque para a
filosofia, a pintura, tudo, para a arte, seja a música popular ou o
resto, ou para o esporte... Veremos quando falarmos sobre esporte que
é a mesma coisa. O que há de novo? Se interpretarmos isso em termos de
moda, é exatamente o contrário. O novo não está na moda, que talvez
estará, mas que não está na moda porque é inesperado. Por definição, é
inesperado. É algo que surpreende as pessoas. Quando Trénet começou a
cantar, dissemos: "É um louco". Hoje, ele não é mais considerado
louco, mas ficou marcado para sempre que ele era um louco. Edith Piaf
me parecia grandiosa.
CP: Você também gostou muito de Claude François.
GD: Claude François, porque pensei ter visto, com razão ou não, que
ele também trazia algo de novo. Há muitos, não quero citar nomes. É
muito triste porque cantaram assim centenas, milhares de vezes. Além
disso, eles não têm voz nenhuma e não buscam nada. É a mesma coisa
inovar e buscar algo. O que Edith Piaf buscava? Tudo o que posso dizer
sobre a saúde frágil e a grande vida... O que ela viu, a força da vida
é o que acabou com ela. Ela é o próprio exemplo. Poderíamos citar
Edith Piaf em tudo o que já dissemos. Quanto a Claude François, ele
buscava algo. Ele buscava um tipo novo de espetáculo, um espetáculo
musical. Ele inventou essa espécie de canção dançada, que implica
obviamente em playback. Azar ou não. Assim, ele pôde fazer pesquisas
sonoras. Até o fim, ele não estava satisfeito porque suas letras eram
idiotas e isso é importante numa canção. As letras eram fracas. Ele
não parou de tentar mudar as letras para chegar a letras melhores,
como a de Alexandrie Alexandra, que era uma boa canção. Hoje, não sei
quem... Mas, quando ligamos a TV... É o direito do aposentado. Quando
estou cansado, posso ligar a TV. Quanto mais canais temos, mais eles
se parecem e são de uma nulidade radical. O regime da concorrência...
Fazer concorrência, seja no que for, é produzir a mesma nulidade
eterna. Isso é a concorrência. Saber o que fará o espectador assistir
este canal e não aquele é espantoso. Não podemos mais chamar isso de
canto porque a voz não existe mais, não há a mínima voz. Mas, enfim,
não vamos reclamar. O que me toca é um campo comum e, contudo,
tratado, pela canção popular e pela música, de duas maneiras
respectivamente diferentes. E do que se trata? Acho que aí fizemos um
bom trabalho, Félix e eu, pois se me perguntassem: "Que conceito
filosófico você produziu, já que você fala sobre criar conceitos?"
Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para
mim, o ritornelo é esse ponto comum. De que se trata? Digamos que o
ritornelo é uma pequena ária. Quando é que digo tra-la-lá? Agora estou
fazendo filosofia... Eu me pergunto: "Quando é que cantarolo?"
Cantarolo em três ocasiões: quando dou uma volta pelo meu território e
tiro o pó dos móveis. O rádio está ao fundo. Ou seja, quando estou na
minha casa. Cantarolo quando não estou em casa e estou voltando para
casa ao anoitecer, na hora da angústia. Procuro meu caminho e me
encorajo cantarolando. Estou a caminho de casa. E cantarolo ao me
despedir e levo no meu coração... Tudo isso é canção popular: "Vou
embora e levo no coração..." Quando saio da minha casa, mas para ir
aonde? Em outros termos, para mim, o ritornelo está totalmente ligado
- e isso me remete ao A de Animal - ao problema do território, da
saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da
desterritorialização. Volto para o meu território, que eu conheço, ou
então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território.
Você vai perguntar: "O que isso tem a ver com a música?" É preciso
progredir ao criar um conceito, por isso uso a imagem do cérebro.
Neste momento, estou pensando num lied. O que é um lied? Um liedlied.
Seja em Schumann ou em Schubert, é fundamentalmente isso. Eu acho que
isso que é o afecto. Quando eu disse "A música é a história dos
devires e da potência do devir", estava falando de algo assim. Pode
ser genial ou medíocre. O que é então a verdadeira grande música?
Parece-me uma operação "artista da música". Eles partem do ritornelo.
Estou falando dos músicos mais abstratos. Entendo que cada um tem seu
próprio tipo de ritornelo. Eles partem de pequenas árias e ritornelos.
É preciso ver Vinteuil e Proust. Três notas, depois, duas. Há um
pequeno ritornelo na base de todo Vinteuil, na base do septeto. É um
ritornelo. Temos de achá-lo sob a música. É algo prodigioso. O que
acontece? Um grande músico não coloca um ritornelo depois do outro,
mas ele funde ritornelos num ritornelo mais profundo. São todos os
ritornelos, quase territórios, um território e outro, que vão se
organizar no interior de um imenso ritornelo, que é um ritornelo
cósmico. Tudo o que Stockhausen conta sobre a música e o cosmo, toda
essa maneira de retomar temas que eram correntes na Idade Média e no
Renascimento... Sou a favor dessa idéia de que a música está ligada ao
cosmo de uma maneira... Um músico que admiro muito e que me emociona é
Mahler. O que são os Cantos da terra? Não podemos dizer melhor. E
perpetuamente, como elemento de gênese, temos um pequeno ritornelo, às
vezes, baseado em dois sinos de vacas. Em Mahler, é muito comovente a
maneira como todos esses ritornelos, que já são obras musicais
geniais, ritornelos de taverna, de pastores etc., se compõem numa
espécie de grande ritornelo que será o Canto da terra. Mais um exemplo
seria Bartok, que, para mim, evidentemente, é um grande músico, um
grande gênio. O modo como os ritornelos locais, os ritornelos de
minorias nacionais são retomados numa obra que não acabamos de
explorar... Acho que a música é... Para uni-la à pintura, é exatamente
a mesma coisa. Klee disse: "O pintor não representa o visível, ele
torna visível". Aí subentendem-se "as forças que não são visíveis". É
a mesma coisa com o músico. Ele torna audíveis forças que não são
audíveis, que não são... Ele não representa o que é audível, mas torna
audível o que não o é, as forças... Ele torna audível a música da
terra, ele torna audível ou a inventa. Quase como o filósofo, que
torna pensáveis forças que não são pensáveis, que têm uma natureza
bruta, uma natureza brutal. É essa comunhão de pequenos ritornelos com
o grande ritornelo que, para mim, parece definir a música. Para mim,
seria isso. Esse é o seu poder. O poder de levar para um nível
cósmico. É como se as estrelas começassem a cantar uma pequena ária de
sinos de vacas, uma pequena ária de pastor. É o inverso, os sinos de
vacas são de repente elevados ao estado de ruído celeste ou de ruído
infernal. É isso que...
CP: Mesmo assim, tenho a impressão, não sei por quê, com tudo o que
você me disse e toda essa erudição musical, que o que você procura na
música é algo visual. O que lhe interessa é o visual, muito mais...
Entendo até que ponto o audível está ligado às forças cósmicas como o
visual. Você não vai a concertos, não escuta música, mas vai a
exposições ao menos uma vez por semana e tem uma prática.
GD: É questão de possibilidade e de tempo. Só posso dar uma resposta.
Uma única coisa me interessa na literatura: o estilo. O estilo é algo
puramente auditivo. É puramente auditivo. Eu não faria a distinção que
você faz entre visual... É verdade que raramente vou a concertos,
porque é mais difícil reservar um lugar. Tudo isso faz parte da vida
prática. Numa galeria, numa exposição de pintura, não precisamos
reservar lugar. Sempre que vou a um concerto, acho longo demais porque
sou pouco receptivo, mas sempre tive emoções. Acho, mas não tenho
certeza, que você está enganada. Acho que você está errada. Não é
verdade. Sei que a música me proporciona emoções. Só que é ainda mais
difícil. Falar de música é ainda mais difícil do que falar de pintura.
É quase o ápice falar de música.
CP: Muitos filósofos falaram de música.
GD: Mas o estilo é sonoro e não visual. Nesse nível, só me interessa a
sonoridade.
CP: A música está ligada à filosofia, ou seja, muitos filósofos, sem
mencionar Jankélévitch, falaram sobre música.
GD: Sim, é verdade.
CP: Além de Merleau-Ponty, poucos falaram de pintura.
GD: Você acha que foram poucos? Não sei.
CP: Não tenho certeza, mas Barthes falou de música, Jankélévitch
também.
GD: Ele falou bem.
CP: Foucault falou.
GD: Quem?
CP: Foucault.
GD: Foucault não falou muito de música. Era um segredo seu. Sua
relação com a música era um segredo.
CP: Mas ele esteve muito ligado a músicos.
GD: Tudo isso eram segredos. Ele não falava...
CP: Sim, mas ele ia a Bayreuth, era íntimo do mundo musical, mesmo
sendo um segredo. E a exceção Berg, como sugere Pierre-André...
GD: Isso me faz lembrar... Isso faz parte também... Por que você se
dedica a algo? Não sei por quê. Descobri ao mesmo tempo que as peças
para orquestra de... Está vendo o que é ser velho e não se lembrar dos
nomes? As peças para orquestra do seu mestre.
CP: Schönberg.
GD: De Schönberg. Lembro-me de que, naquele momento, não faz tanto
tempo, eu podia escutar as peças para orquestras quinze vezes
seguidas. Quinze vezes seguidas, e eu conhecia os momentos que me
comoviam. Foi no mesmo momento que encontrei Berg e ele me fazia... Eu
podia escutá-lo o dia todo. Por quê? Acho que tinha a ver com a
relação com a terra. Só fui conhecer Mahler muito depois. É a música e
a terra. Retomar isso nos músicos mais antigos... A música e a terra
estão muito presentes. Mas o fato de a música estar relacionada à
terra na época de Berg e Mahler foi comovente para mim. Tornar sonoros
os poderes da terra. Era isso, Wozzeck é, para mim, um grande texto
porque é a música da terra. É uma grande obra.
CP: E os dois gritos? Você gostava dos gritos de Marie.
GD: Para mim, há uma forte relação entre o canto e o grito. Toda essa
escola soube reapresentar o problema. Os dois gritos... Não me canso
do grito. O grito horizontal que toca a terra em Wozzeck e o grito
vertical, totalmente vertical da condessa. Era condessa ou baronesa?
Não sei mais.
CP: Condessa.
GD: Da condessa em Lulu. São dois ápices do grito, mas a relação
entre... Tudo isso me interessa porque, em filosofia, há cantos e
gritos. Os conceitos são verdadeiros cantos em filosofia. E também há
gritos na filosofia. Há gritos repentinos. Aristóteles: "É preciso
parar". Ou um outro que dirá: "Nunca vou parar". Spinoza: "O que um
corpo pode fazer? Nem sabemos". Esses são gritos. Mas a relação grito/
canto ou conceito/afecto é parecida. Gosto disso, é algo que me toca.
P de Professor
CP: Então, P é de Professor. Hoje, você tem 64 anos e, durante quase
40 anos, você foi professor, primeiro do ensino médio, depois, na
universidade. Este ano é o primeiro sem aulas. Você sente falta das
aulas? Você disse que dava aula com paixão. Você sente falta de dar
aula hoje?
GD: Não, absolutamente. É verdade que foi a minha vida, que foi uma
parte muito importante da minha vida. Eu gostava muito de dar aula,
mas, quando me aposentei, foi uma alegria porque eu já não tinha tanta
vontade de dar aula. A questão das aulas é muito simples. Acho que as
aulas têm equivalentes em outras áreas. Uma aula é algo que é muito
preparado. Parece muito com outras atividades. Se você quer 5 minutos,
10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação. Para ter
esse momento de... Se não temos... Eu vi que, quanto mais fazia
isso... Sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter
esses momentos de inspiração. Com o passar do tempo, percebi que
precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma
inspiração cada vez menor.
Então, estava na hora... Não me sinto privado porque gostei de dar
aula, mas era algo de que eu precisava menos. Resta-me escrever, o que
comporta outros problemas. Não me arrependo. Mas gostei profundamente
de dar aulas.
CP: Preparar muito significava quanto tempo de preparação?
GD: Tenho de refletir. Como tudo, são ensaios. Uma aula é ensaiada. É
como no teatro e nas cançonetas, há ensaios. Se não tivermos ensaiado
o bastante, não estaremos inspirados. Uma aula quer dizer momentos de
inspiração, senão não quer dizer nada.
CP: Você não ensaiava diante do espelho, não é?
GD: Não, cada atividade tem seus modos de inspiração. Mas não há outra
palavra a não ser pôr algo na cabeça e conseguir achar interessante o
que é dito. Se o orador não acha interessante o que está dizendo...
Nem sempre achamos interessante o que dizemos. E não é vaidade, não é
se achar interessante ou fascinante. É preciso achar a matéria da qual
tratamos, a matéria que abraçamos, fascinante. Às vezes, temos de nos
açoitar. Não que seja desinteressante, a questão não é essa. É
necessário chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo. O ensaio é
isso. Eu precisava menos disso. E as aulas são algo muito especial.
Uma aula é um cubo, ou seja, um espaço-tempo. Muitas coisas acontecem
numa aula. Nunca gostei de conferências porque se trata de um espaço-
tempo pequeno demais. Uma aula é algo que se estende de uma semana a
outra. É um espaço e uma temporalidade muito especiais. Há uma
seqüência. Não podemos recuperar o que não conseguimos fazer. Mas há
um desenvolvimento interior numa aula. E as pessoas mudam entre uma
semana e outra. O público de uma aula é algo fascinante.
CP: Vamos recomeçar do início. Você lecionou primeiro no ensino médio.
Você tem uma boa lembrança?
GD: Sim, mas isso não significa nada porque o ensino médio não era o
que é hoje. Penso nos jovens professores que ficam desanimados. Eu
lecionei no ensino médio durante a Liberação, não muito tempo depois.
Era totalmente diferente.
CP: Onde?
GD: Estive em duas cidades do interior. Gostei muito de uma e menos da
outra. Gostei muito de Amiens porque havia uma liberdade absoluta. Era
uma cidade muito livre. Orléans era uma cidade mais severa. Ainda era
a época em que o professor de filosofia era recebido com muita
complacência, perdoavam-lhe muitas coisas porque ele era uma espécie
de louco, de idiota da aldeia. Eu podia praticamente fazer tudo que
quisesse. Eu ensinava meus alunos a tocar serrote porque eu tocava e
todos achavam normal. Acho que, hoje, isso não seria mais possível...
GD: Pedagogicamente, queria explicar o quê com o serrote? Em que
momento ele entrava em cena?
GD: As curvas. O serrote, como você sabe, tem de ser curvado e obtemos
o som num ponto da curva. São curvas móveis que lhes interessavam
muito.
CP: Já era sobre a variação infinita.
GD: Mas eu não fazia só isso. Eu seguia o currículo, era muito
consciencioso.
CP: E foi aí que você conheceu Poperen?
GD: Sim, conheci bem Poperen. Ele viajava mais do que eu, ficava muito
pouco em Amiens. Ele tinha uma malinha e um despertador enorme porque
não gostava de relógios. Seu primeiro gesto era tirar o despertador.
Ele dava aula com o despertador. Ele era encantador.
CP: E quem eram seus amigos na sala dos professores?
GD: Eu gostava muito de ginástica. Eu gostava dos professores de
ginástica. Não me lembro muito bem. As salas dos professores nas
escolas devem ter mudado. Era algo de...
CP: Quando alunos, imaginamos a sala dos professores como algo
misterioso e solene.
GD: Não, é o momento em que... Há gente de todo tipo, solene,
brincalhona, de tudo. Eu não ia muito à sala.
CP: Depois de Amiens e Orléans, você deu aulas preparatórias em Louis-
le-Grand?
GD: Sim.
CP: E se lembra de bons alunos que não deram em grande coisa?
GD: Que deram ou não em grande coisa. Não me lembro bem... Sim, lembro-
me deles, eles se tornaram... Pelo que sei, se tornaram professores.
Nunca tive alunos que se tornaram ministros. Tive um que se tornou
policial. Não, nada de especial. Eles seguem seu caminho e são gente
boa.
CP: Depois, vieram os anos de Sorbonne. Parece que esses anos
correspondem a anos de história da filosofia. Depois, Vincennes, que
foi uma experiência determinante após a Sorbonne. Pulei Lyon depois da
Sorbonne. Você ficou contente por entrar para a universidade depois de
ter sido professor de ensino médio?
GD: Contente, não é bem assim nesse nível... Era uma carreira normal.
Se eu tivesse voltado ao ensino médio eu teria ficado... Não teria
sido dramático, anormal, uma derrota. Era normal. Não tive nenhum
problema. Não tenho nada a dizer.
CP: As aulas da faculdade são preparadas de outra maneira?
GD: Para mim, não.
CP: Para você, era igual?
GD: Totalmente. Sempre preparei aulas da mesma forma.
CP: A preparação era tão intensa na escola quanto na faculdade?
GD: Certamente. É preciso estar totalmente impregnado do assunto e
amar o assunto do qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso
ensaiar, preparar. É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o
ponto em que... É muito divertido, é preciso encontrar... É como uma
porta que não conseguimos atravessar em qualquer posição.
CP: Já que estamos falando de sua carreira universitária, fale-me da
sua tese. Quando você a defendeu?
GD: Eu a defendi... Acho que escrevi muitos livros antes para não fazê-
la. É uma reação comum. Eu trabalhava muito e pensava: "Tenho de fazer
minha tese. Tenho de fazer isso, que é urgente". Adiei ao máximo e,
finalmente, a apresentei em... Acho que foi uma das primeiras teses
defendidas depois de 68.
CP: 69?
GD: Sim, deve ter sido em 69. Foi uma das primeiras. Isso me
proporcionou uma situação privilegiada porque a banca só tinha uma
preocupação: evitar os bandos que ainda circulavam na Sorbonne. Eles
estavam com medo. Era a volta, o início da volta. Eles se perguntavam
o que ia acontecer. Lembro-me que o presidente da banca me disse: "Há
duas possibilidades: ou fazemos sua tese no térreo da Sorbonne. A
vantagem é que tem duas saídas. Se acontecer algo, a banca pode cair
fora. O único inconveniente é que, no térreo, os bandos circulam mais
facilmente. Ou então vamos para o 1º andar. A vantagem é que os bandos
sobem com menos freqüência, mas o inconveniente é só ter uma entrada e
uma saída. Se acontecer algo, como vamos sair?". Quando defendi minha
tese, nunca vi o olhar do presidente da banca, que estava fixo na
porta.
CP: Quem era?
GD: Para saber se tinha algum bando chegando.
CP: Quem foi o presidente da banca?
GD: Não vou dizer seu nome, é segredo.
CP: Posso fazer você dizer.
GD: Ele estava angustiado. E ele era muito simpático. Ele estava mais
emocionado do que eu. É raro a banca estar mais emocionada do que o
candidato, mas foram circunstâncias excepcionais.
CP: Você já era mais conhecido do que três quartos da banca.
GD: Não, eu não era muito conhecido.
CP: Foi Diferença e repetição?
GD: Sim.
CP: Você já era conhecido por seus trabalhos sobre Proust e Nietzsche.
Vamos falar de Vincennes, a menos que você tenha algo a dizer sobre
Lyon depois da Sorbonne.
GD: Não. Vincennes foi quase... Lá houve uma mudança, você tem razão,
não no que eu chamo de preparação e ensaio das aulas, nem no seu
estilo, mas, a partir de Vincennes, parei de ter um público de
estudantes. Esse foi o esplendor de Vincennes, a mudança. Não foi algo
geral em todas as faculdades, mas em Vincennes, ao menos em filosofia,
porque não era toda a universidade, havia um novo tipo de público,
completamente novo, que não era mais composto de estudantes, que
misturava todas as idades, pessoas de atividades muito diferentes,
inclusive doentes de hospitais psiquiátricos. Era o público talvez
mais variado e que encontrava uma unidade misteriosa em Vincennes. Ao
mesmo tempo, o mais variado e o mais coerente em função de Vincennes.
Vincennes dava uma unidade a esse público desarmônico. Para mim, era
um público... Depois, deveria ter sido transferido, mas construí minha
vida de professor em Vincennes. Se tivesse ido para outras faculdades,
não me reconheceria. Quando ia a outra faculdade, eu parecia viajar no
tempo, voltar ao século 19. Em Vincennes, eu falava na frente de
pessoas que eram uma mistura de tudo, jovens pintores, pacientes
psiquiátricos, músicos, drogados, jovens arquitetos, gente de muitos
países. Tudo isso variava de um ano para outro. Num ano, apareciam de
repente cinco ou seis australianos. No ano seguinte, não estavam mais
lá. Os japoneses eram uma constante, de 15 a 20 todos os anos. Os sul-
americanos, os negros, tudo isso é um público inestimável, é um
público fantástico.
CP: Pela primeira vez, era dirigido aos não-filósofos. Quer dizer,
essa prática...
GD: Acho que era filosofia plena, dirigida tanto a filósofos quanto a
não-filósofos, exatamente como a pintura se dirige a pintores e a não-
pintores. A música não se dirige necessariamente a especialistas de
música. É a mesma música. É o mesmo Berg e o mesmo Beethoven que se
dirigem a quem não é especialista em música e também a músicos. Para
mim, a filosofia deve ser exatamente igual, dirigir-se tanto a não-
filósofos quanto a filósofos, sem mudar. Quando dirigimos a filosofia
a não-filósofos, não temos de simplificar. É como na música. Não
simplificamos Beethoven para os não-especialistas. É a mesma coisa com
a filosofia. Para mim, a filosofia sempre teve uma dupla audição: uma
audição não-filosófica e uma filosófica. Se não houver as duas ao
mesmo tempo, não há nada. Senão a filosofia não valeria nada.
CP: Explique uma sutileza: há não-filósofos em conferências, mas você
odeia conferências.
GD: Odeio as conferências porque são artificiais e por causa do antes
e do depois. Adoro aulas, é uma maneira de falar, mas odeio falar.
Para mim, falar é uma atividade... E nas conferências, temos de falar
antes, depois etc. Não há a pureza de uma aula. E as conferências têm
um lado circense. As aulas também, mas é um circo que me faz rir e que
é mais profundo. As conferências têm um lado artificial. As pessoas
vão para... Nem eu sei bem por quê. O fato é que não gosto de
conferências. Não gosto de dar conferências. É tenso demais, difícil,
angustiante demais, não sei. Conferências não me parecem muito
interessantes.
CP: Vamos voltar ao querido público variado de Vincennes. Nos anos de
Vincennes, havia loucos e drogados que faziam intervenções selvagens,
que tomavam a palavra. Isso parece nunca ter incomodado você. Todas as
intervenções aconteciam no meio da aula, que permanecia magistral, e
nenhuma intervenção tinha valor de objeção para você. Ou seja, sua
aula sempre foi magistral.
GD: Sim. Precisamos inventar outro termo. O termo "aula magistral" é o
usado nas universidades. Temos de buscar outro termo. Acho que existem
duas concepções de aula: uma concepção segundo a qual uma aula tem
como objetivo obter reações imediatas de um público sob forma de
perguntas e interrupções. É uma corrente, uma concepção de aula. E há
a concepção dita magistral, do professor que fala. Não é uma questão
de preferência, não tenho escolha. Sempre usei a segunda, a concepção
dita magistral. É preciso achar outro termo porque... Digamos que é
mais uma concepção musical. Para mim, uma aula é... Não interrompemos
a música, seja ela boa ou ruim. Interrompemos se ela é muito ruim. Não
interrompemos a música, mas podemos muito bem interromper palavras. O
que significa uma concepção musical de aula? Acho que são duas coisas,
na minha experiência, sem dizer que essa é a melhor concepção. É o meu
modo de ver as coisas. Conhecendo um público, o que foi meu público,
penso: "Sempre tem alguém que não entende na hora. E há o que chamamos
de efeito retardado". Também é como na música. Na hora, você não
entende um movimento, mas, três minutos depois, aquilo se torna claro
porque algo aconteceu nesse ínterim. Uma aula pode ter efeito
retardado. Podemos não entender nada na hora e, dez minutos depois,
tudo se esclarece. Há um efeito retroativo. Se ele já interrompeu... É
por isso que as interrupções e perguntas me parecem tolas. Você
pergunta porque não entende, mas basta esperar.
CP: Você achava as interrupções tolas porque ninguém esperava?
GD: Sim. Há esse primeiro aspecto. Se você não entende algo, pode ser
que entenda depois. Os melhores alunos perguntam uma semana mais
tarde. No final, eu tinha um sistema inventado por eles, não por mim:
eles me mandavam notas sobre a semana anterior. Eu gostava muito. Eles
diziam: "Temos de voltar a esse ponto". Eles haviam esperado. Eu não
voltava, não fazia diferença, mas havia essa comunicação. O segundo
ponto importante na minha concepção de aula... Eram aulas que duravam
duas horas e meia. Ninguém consegue escutar alguém por duas horas e
meia. Para mim, uma aula não tem como objetivo ser entendida
totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso
que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe
convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer
que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem
alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento
que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a
alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção. É
tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção, não há nada, não há
interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de
acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso
que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos
centros de interesse, que pulam de um para outro. Isso forma uma
espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.
CP: Isso quanto ao público, mas, para esse "concerto", você inventou
os termos " pop filosofia" e " pop filósofo".
GD: É o que eu queria dizer.
CP: Pode-se dizer que sua figura, como a de Foucault, era muito
especial, seu chapéu, suas unhas, sua voz. Você sabe que havia uma
certa mitificação dessa figura por parte dos alunos. Eles mitificaram
Foucault, assim como mitificaram a voz de Wahl. Você tem consciência
de que tem uma figura e uma voz singulares?
GD: Sim, sem dúvida. Sem dúvida, porque a voz, numa aula... Se a
filosofia, como já falamos... A filosofia mobiliza e trata de
conceitos. É normal que haja a vocalização dos conceitos numa aula,
assim como há um estilo de conceitos por escrito. Os filósofos não
escrevem sem elaborar um estilo. São como artistas, são artistas. Uma
aula implica vocalizações, implica até uma espécie de - eu falo mal
alemão - Sprechgesang. Evidentemente. Há mitificações, "Viu as unhas
dele?", etc. Faz parte de todos os professores. Desde o primário é
assim. O mais importante é a relação entre a voz e o conceito.
CP: Mas seu chapéu era como o vestidinho preto de Piaf. Era uma
postura muito precisa.
GD: Mas eu não o usava por isso. Se produzia esse efeito, ótimo.
CP: Faz parte do papel de professor?
GD: Se faz parte do papel de professor? Não. É um suplemento. O que
faz parte do papel do professor é o que eu disse sobre o ensaio
anterior e a inspiração. Esse é o papel do professor.
CP: Você nunca quis nem escola nem discípulos. Essa recusa de
discípulos é algo muito profundo em você?
GD: Eu não os recuso. Geralmente, uma recusa é recíproca. Ninguém quer
ser meu discípulo. Eu não quero ter nenhum. Uma escola é terrível por
uma simples razão: consome muito tempo, nos tornamos administradores.
Veja os filósofos que fazem escola. Os wittgenteinianos são uma
escola. Não é uma diversão. Os heideggerianos são uma escola. Isso
implica acertos de contas terríveis, exclusividades, organização do
tempo, toda uma administração. Uma escola é administrada. Assisti a
rivalidades entre os heideggerianos franceses, liderados por Beaufret,
e os heideggerianos belgas, liderados por Develin. Foi uma briga de
foice. Tudo isso é abominável. Isso não me interessa nem um pouco.
Mesmo no nível das ambições, ser chefe de uma escola... Lacan era
chefe de uma escola, mas é terrível, causa muitas preocupações. É
preciso ser maquiavélico para lidar com tudo isso. Eu detesto tudo
isso. A escola é o contrário do movimento. Dou um exemplo simples: o
surrealismo é uma escola. Acerto de contas, tribunais, exclusões etc.
Breton fez uma escola. Dada era um movimento. Se eu tivesse um ideal,
não digo que não consegui, seria participar de um movimento.
Participar de um movimento, sim. Mas ser o chefe de uma escola não me
parece um destino invejável. Um movimento no qual o ideal não seja ter
noções garantidas, assinadas e repetidas pelos discípulos. Para mim,
duas coisas são importantes: a relação que podemos ter com os
estudantes é ensinar que eles fiquem felizes com sua solidão. Eles
vivem dizendo: "Um pouco de comunicação. Nós nos sentimos sós, somos
todos solitários". Por isso eles querem escolas. Eles não poderão
fazer nada em relação à solidão. Temos de ensinar-lhes os benefícios
da sua solidão, reconciliá-los com sua solidão. Esse era o meu papel
de professor. O segundo aspecto é um pouco a mesma coisa. Não quero
lançar noções que façam escola. Quero lançar noções e conceitos que se
tornem correntes, que se tornem não exatamente ordinárias, mas que se
tornem idéias correntes, que possam ser manejadas de vários modos.
Isso só é possível se eu me dirigir a solitários que vão transformar
as noções ao seu modo, usá-las de acordo com suas necessidades. Tudo
isso são noções de movimento, não de escola.
CP: Você acha que, na universidade hoje, a era dos grandes professores
acabou?
GD: Não sei bem porque não faço mais parte disso. Saí em um momento
aterrorizador. Eu não entendia como os professores podiam dar aulas.
Eles tinham se tornado administradores. Quanto à universidade, a
política atual é muito clara. Isso tem a ver com a adoção de
disciplinas que nada têm a ver com disciplinas universitárias. Meu
sonho seria que as universidades continuassem a ser locais de pesquisa
e que, ao lado das universidades, se multiplicassem as escolas.
Escolas técnicas, onde aprendemos Contabilidade, Informática etc. Mas
a universidade só interviria na Informática e na Contabilidade no
nível da pesquisa. Haveria acordos entre uma escola e uma
universidade. A escola enviaria seus alunos para fazer cursos de
pesquisa. A partir do momento em que admitimos na universidade
matérias de escola, a universidade está acabada, não é mais um local
de pesquisa. Somos cada vez mais corroídos por problemas
administrativos. O número de reuniões nas universidades... Por isso
não sei como os professores conseguem preparar um curso. Suponho que
façam o mesmo todos os anos, ou que nem os façam mais. Talvez eu
esteja enganado, tomara que sim. A tendência parece ser o
desaparecimento da pesquisa, o aumento de disciplinas não inovadoras
na universidade, que não são disciplinas de pesquisa. É o que chamamos
de adaptação da universidade ao mercado de trabalho. Esse não é o
papel da universidade, mas das escolas.
Q de Questão
CP: Q de Questão. Há falsos problemas, às vezes, verdadeiros, isso já
sabemos. Mas também há questões verdadeiras e falsas. A filosofia
serve para propor questões e problemas e as questões são fabricadas.
Como você diz, o objetivo não é tanto responder, mas livrar-se dessas
questões. Livrar-se da história da filosofia é propor questões, mas
aqui, numa entrevista, não fazemos questões. Não são realmente
questões. Como eu e você vamos nos livrar disso? Vamos fazer uma
escolha forçada? Qual é a diferença entre uma pergunta na mídia e uma
pergunta em filosofia?
GD: É difícil dizer... Na mídia, na maior parte do tempo e nas
conversas correntes, não há questões, não há problemas. Há
interrogações. Se eu digo "Como vai você?", isso não é um problema,
mesmo se você estiver mal. Se eu digo "Que horas são?", isso não é um
problema. Tudo isso são interrogações. No nível da televisão habitual,
mesmo em programas muito sérios, temos interrogações. "O que você acha
disso?". Isso não é um problema. É uma interrogação, queremos a sua
opinião. É por isso que a TV não é muito interessante, é a opinião das
pessoas. Isso não me parece muito interessante. Se dizemos "Você
acredita em Deus?", isso é uma interrogação. Onde estão o problema e a
questão? Não existem. Se apresentássemos questões ou problemas num
programa de TV... Precisaria acontecer mais. Temos Océaniques, certo,
mas não é muito freqüente. Os programas políticos não discutem nenhum
problema, mas poderiam fazê-lo. Poderíamos perguntar sobre a questão
chinesa. Não perguntamos, convidamos especialistas da China que nos
dizem coisas que nós mesmos poderíamos ter dito sem saber nada sobre a
China. É surpreendente. Não faz parte de um domínio... Volto ao meu
exemplo porque ele é grande: Deus. Qual é o problema ou a questão
sobre Deus? Não é saber se você acredita ou não em Deus, isso não
interessa muita gente. O que queremos dizer com a palavra "Deus"? O
que isso quer dizer? Imagino as questões. Pode querer dizer: "Você
será julgado após a morte?". Por que isso é um problema? Porque
estabelece uma relação problemática entre Deus e o momento do
julgamento. Deus é um juiz? Isso é uma questão. Vamos supor que nos
falem de Pascal. Pascal tem um texto célebre, uma aposta: "Deus existe
ou não?" Apostamos e, lendo o texto de Pascal, percebemos que não se
trata bem disso. Por quê? Ele levanta uma outra questão. A questão de
Pascal não é se Deus existe ou não, que também não seria uma questão
muito interessante, mas sim qual é o melhor modo de existência; o modo
de existência de quem acredita que Deus existe ou o modo de existência
de quem não acredita? Apesar de a questão de Pascal não dizer respeito
à existência ou não de Deus, ela diz respeito à existência de quem
acredita ou não na existência de Deus. Pelas razões desenvolvidas por
Pascal, e que são as dele, mas que são muito claras, ele acha que quem
acredita que Deus existe tem uma existência melhor do que quem não
acredita. É o problema pascaliano. Aí há um problema, uma questão. Mas
já não é a questão de Deus. Há uma história subjacente das questões,
uma transformação das questões em outras. A frase de Nietzsche: "Deus
está morto". Não significa a mesma coisa que "Deus não existe". Se eu
digo "Deus está morto.", a que outra questão isso remete, que não é a
mesma de quando eu digo "Deus não existe."? Depois, vemos que a
Nietzsche não importa se Deus está morto. É uma outra questão que ele
levanta. Se Deus está morto, não há razão para o homem também não
estar morto. Temos de encontrar outra coisa que não o homem. Não lhe
interessa a morte de Deus, mas a chegada de outra coisa que não o
homem. Essa é a arte das questões e dos problemas. Acho que pode-se
fazer isto na televisão ou na mídia, mas seria um tipo de programa
muito especial, é essa história subjacente dos problemas e das
questões. Nas conversas correntes e na mídia, ficamos no nível das
interrogações. Basta ver, não sei... Podemos citar? Sim, é póstumo.
L'heure de vérité era só interrogações. "Sra. Veil, a senhora acredita
na Europa?" O que quer dizer acreditar na Europa? O interessante é...
Qual é o problema da Europa? Vou dizer qual é o problema da Europa,
assim farei uma previsão uma vez na vida. É a mesma coisa da China
atual. Todos pensam em preparar e uniformizar a Europa. Eles se
perguntam como uniformizar os seguros etc. Depois, aparece na Praça da
Concórdia um milhão de pessoas da Holanda, da Alemanha etc., e eles
não dominam o assunto. Então, eles chamam especialistas: "Por que há
holandeses na Praça da Concórdia?". "É porque fizemos...". Eles
ignoraram as questões quando tinham de levantá-las. É um pouco
confuso.
CP: Mas, durante anos, você leu jornal. Parece que você não lê mais
jornais. Há algo no nível da imprensa para que não se levantem mais
essas questões?
GD: Tenho menos tempo, sei lá.
CP: Eles o enojam?
GD: Ah, sim! Parece que aprendemos cada vez menos. Estou pronto, quero
aprender coisas. Não sabemos nada, não sabemos... Como os jornais
também não dizem nada... Não sei...
CP: Mas, assistindo ao telejornal... Ao assistir ao telejornal, que é
o único programa que você nunca perde, você tem sempre uma questão a
formular, que não foi formulada, esquecida pela mídia?
GD: Não sei. Não sei.
CP: Mas você acha que nunca as colocamos?
CP: As questões? Acho que não poderíamos colocá-las. No caso Touvier,
não poderíamos propor questões. Esse é um caso recente. Touvier foi
preso. Por que agora? Todo mundo pergunta por que ele foi protegido,
mas todos sabem que deve ter havido algo. Ele foi o chefe do serviço
de informação, devia ter informações sobre a conduta dos altos
dignitários da Igreja na época da guerra. Todos sabem do que ele
estava a par, mas ficou acertado que não levantaríamos questões. Isso
é o que chamamos de consenso. Um consenso é o acordo, a convenção com
a qual substituiremos as questões e os problemas por simples
interrogações. Interrogações do tipo "Como vai você?", ou seja...
"Esse convento o escondeu! Por quê?". Sabemos que essa não é a
questão. Todo mundo sabe... Vou dar outro exemplo recente. Os
renovadores da direita e os aparatos da direita. Todos sabem do que se
trata, os jornais dizem que... Eles não dizem uma palavra. Não sei...
Parece-me evidente que, entre os renovadores da direita, há um
problema muito interessante. São indivíduos não particularmente
jovens. Trata-se do seguinte: é uma tentativa da direita de abalar as
estruturas partidárias, que ainda estão centralizadas em Paris. Eles
querem uma independência das regiões. Isso é muito interessante. É
muito interessante, mas ninguém insiste nesse aspecto. Eles não querem
uma Europa de nações, mas de regiões, querem que uma verdadeira
unidade seja regional e inter-regional e não nacional e internacional.
Isso é um problema. E os socialistas, por sua vez, terão esse problema
entre tendências regionalistas e tendências... Mas as estruturas
partidárias, as federações de província nos sindicatos, quer dizer,
nos partidos, ainda são um método antigo. Tudo é trazido a Paris e o
peso é muito centralizado. Os renovadores de direita são um movimento
antijacobino que a esquerda também terá. Então, eu penso: "De fato,
eles deveriam falar sobre isso". Mas eles não o farão, se recusarão a
falar disso. Recusarão porque estarão se expondo. Eles sempre
responderão apenas a interrogações. As interrogações não são nada, são
apenas conversa, não têm interesse algum. As conversas e as discussões
nunca tiveram interesse algum. A TV, salvo casos excepcionais, está
condenada a discussões e interrogações. Isso não vale nada. Não é nem
mentiroso, é insignificante, não tem interesse algum.
CP: Sou menos otimista do que você, acho que Anne Sinclair não nota,
ela acha que faz boas perguntas, que não faz interrogações.
GD: Isso é problema dela. Ela deve estar satisfeita consigo mesma. Sem
dúvida, mas isso é problema dela.
CP: Você nunca aceita ir à televisão. Foucault e Serres foram. Trata-
se de uma retirada à la Beckett? Você odeia a televisão? Por que você
não aparece na televisão?
GD: Aqui, estou aparecendo. Minha razão para não ir é tudo o que
acabei de dizer. Não tenho vontade de conversar ou discutir com as
pessoas. Não suporto as interrogações. Isso não me interessa. Não
suporto discussões. Discutir algo se ninguém sabe de que problema se
trata... Volto à minha história sobre Deus. Trata-se da inexistência
de Deus ou da morte do homem? Da inexistência de Deus, de quem
acredita em Deus? Isso é muito cansativo. Cada um fala na sua vez... É
a domesticidade em estado puro e com um apresentador idiota ainda por
cima. Tenha piedade.
CP: O principal é que você está aqui hoje respondendo nossas
interrogações.
GD: A título póstumo.
R de Resistência
CP: R de Resistência e não de Religião.
GD: Sim.
CP: Como você disse recentemente numa conferência na FEMIS [École
Nationale Supérieure des Métiers de l'Image e du Son], "A filosofia
cria conceitos e, se criamos conceitos, resistimos". Os artistas, os
cineastas, os músicos, os matemáticos, os filósofos, toda essa gente
resiste. Mas resistem a que exatamente? Vamos ver caso por caso. A
filosofia cria conceitos. A ciência cria conceitos?
GD: É uma questão de terminologia, Claire. Se convencionarmos usar a
palavra "conceito" para a filosofia, as noções e idéias científicas
terão de ser designadas por outra palavra. Não dizemos que um artista
cria conceitos. Um pintor, um músico não cria conceitos, mas outra
coisa. Para a ciência, teríamos de encontrar outra palavra. Um
cientista é alguém que cria funções, digamos. Não digo que seja a
melhor palavra. Ele cria funções. Funções também são criadas. Criar
novas funções... Einstein, Gallois, os grandes matemáticos, mas não
apenas matemáticos, físicos, biólogos criam funções. E o que é
resistir? Criar é resistir... É mais claro para as artes. A ciência
está numa posição mais ambígua, mais ou menos como o cinema. Ela está
presa a problemas de programa, de capital. As partes resistem, mas...
Os grandes cientistas também são uma grande resistência. Quando penso
em Einstein, em muitos físicos, em muitos biólogos hoje, é claro
que... Eles resistem antes de tudo ao treinamento e à opinião
corrente, ou seja, a todo tipo de interrogação imbecil. Eles exigem
seu... Eles têm realmente a força para exigir seu próprio ritmo. Não
os faremos desistir de algo prematuramente, assim como não mudaremos
um artista. Ninguém tem direito de mudar um artista. Mas acho que tudo
isso, que a criação como resistência... Recentemente, li um autor que
me chamou a atenção. Acho que um dos motivos da arte e do pensamento é
uma certa vergonha de ser homem. Acho que o artista, o escritor, que
falou mais profundamente sobre isso foi Primo Levi. Ele soube falar
dessa vergonha de ser um homem num nível extremamente profundo, porque
foi logo após sua volta dos campos de extermínio. Ele sobreviveu
com... Ele disse: "Quando fui libertado, o que me dominava era a
vergonha de ser um homem". É uma frase ao mesmo tempo esplêndida e
bela e... Não é abstrata, é muito concreta a vergonha de ser um homem.
Mas ela não quer dizer... Associamos muita besteira. Não quer dizer
que somos todos assassinos. Não quer dizer que somos todos culpados
diante do nazismo. Primo Levi diz admiravelmente que isso não
significa que carrascos e vítimas são iguais. Não nos farão acreditar
nisso. Muitos dizem que todos somos culpados. Nada disso, não
confundamos carrascos e vítimas. A vergonha de ser homem não significa
que somos todos iguais, comprometidos etc. Acho que quer dizer muitas
coisas. É um sentimento complexo e não unificado. A vergonha de ser um
homem significa: como alguns homens puderam fazer isso, alguns homens
que não eu, como puderam fazer isso? E, em segundo lugar, como eu
compactuei? Não me tornei um carrasco, mas compactuei para sobreviver.
E uma certa vergonha por ter sobrevivido no lugar de alguns amigos que
não sobreviveram. É um sentimento muito complexo. Acho que, na base da
arte, há essa idéia ou esse sentimento muito vivo, uma certa vergonha
de ser homem que faz com que a arte consista em liberar a vida que o
homem aprisionou. O homem não pára de aprisionar a vida, de matar a
vida. A vergonha de ser homem... O artista é quem libera uma vida
potente, uma vida mais do que pessoal. Não é a vida dele.
CP: Volto ao artista e à resistência. Quer dizer que essa vergonha de
ser um homem... A arte liberta a vida dessa prisão, dessa prisão de
vergonha. É muito diferente da sublimação. A arte não é... É realmente
uma resistência.
GD: É uma liberação da vida, uma libertação da vida. E não são coisas
abstratas. O que é um grande personagem de romance? Um grande
personagem de romance não é tirado da realidade e exagerado. Charlus
não é Montesquieu. Não é Montesquieu exagerado pela imaginação genial
de Proust. São potências de vida fantásticas. Por pior que a coisa
fique, um personagem de romance integrou em si... É uma espécie de
gigante. É uma espécie de gigante, uma exageração da vida. Não é uma
exageração da arte. A arte é a produção dessas exagerações. Só a sua
existência já é uma resistência. Ou, como dizíamos, no nosso primeiro
tema, na letra A, sempre escrevemos pelos animais, ou seja, no seu
lugar. Os animais não escreveriam, porque não sabem escrever. Liberar
a vida das prisões que o homem.... E isso é resistir. Isso é resistir,
não sei. Vemos isso claramente no que fazem os artistas. Quer dizer,
não há arte que não seja uma liberação de uma força de vida. Não há
arte da morte.
CP: Às vezes, a arte não basta. Primo Levi se suicidou muito tempo
depois.
GD: Ele se suicidou como pessoa. Ele não pôde agüentar. Ele suicidou
sua vida pessoal. Há 4 páginas, 12 ou 100 páginas de Primo Levi, que
sempre serão uma resistência eterna ao que aconteceu. Quando falo de
vergonha de ser um homem, não é nem no sentido grandioso de Primo
Levi. Se ousamos dizer algo assim... Para cada um de nós, na nossa
vida cotidiana, há acontecimentos minúsculos que nos inspiram a
vergonha de ser um homem. Assistimos a uma cena na qual alguém é
vulgar demais. Não vamos fazer uma cena. Ficamos incomodados por ele.
Ficamos incomodados por nós porque parecemos suportar. Assumimos uma
espécie de compromisso. E se protestássemos dizendo: "O que você disse
é ignóbil", faríamos um drama. Estamos encurralados. Então, sentimos
essa vergonha. Não se compara a Auschwitz, mas, mesmo nesse nível
minúsculo, há uma pequena vergonha de ser um homem. Se não sentimos
essa vergonha, não há razão para fazer arte. Não posso dizer mais do
que isso.
CP: Mas, quando você cria, quando você é um artista, você sente esses
perigos o tempo todo à sua volta? Há perigos por toda parte?
GD: Claro que sim. Na filosofia, também. É o que Nietzsche dizia. Uma
filosofia que não prejudicasse a besteira seria... Prejudicar a
besteira, resistir à besteira. E se não houvesse a filosofia? As
pessoas agem como... Afinal, é bom para as conversas depois do jantar.
Se não houvesse filosofia, não questionaríamos o nível da besteira. A
filosofia impede que a besteira seja tão grande. Esse é seu esplendor.
Não imaginamos como seria. Se não existissem as artes, a vulgaridade
das pessoas seria... Quando dizemos... Criar é resistir efetivamente.
O mundo não seria o que é sem a arte. As pessoas não agüentariam. Elas
não estudaram filosofia, mas a simples existência da filosofia as
impede de ser tão estúpidas e imbecis quanto seriam se ela não
existisse.
CP: Quando se anuncia a morte do pensamento... Há quem anuncie a morte
do pensamento, do cinema, da literatura. Você acha isso engraçado?
GD: Não há mortes, há assassinatos. É muito simples. Talvez
assassinemos o cinema, isso é possível, mas não há morte natural. Por
uma razão simples: enquanto algo não tiver e não assumir a função da
filosofia, a filosofia terá razão de subsistir. Se outra coisa assumir
a função da filosofia, não vejo por que essa outra coisa não seria
filosofia. Se dissermos que a filosofia consiste em criar conceitos e
prejudicar, impedir a imbecilidade, por que você quer que ela morra?
Podemos impedi-la, censurá-la, assassiná-la, mas ela tem uma função.
Ela não vai morrer. A morte da filosofia sempre me pareceu uma idéia
imbecil, idiota. Não é que eu... Fico contente por ela não morrer. Nem
entendo o que significa a morte da filosofia. Parece-me uma idéia um
pouco débil, engraçadinha.
CP: Pueril.
GD: As coisas mudam, não há mais razão para... O que vai substituir a
filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que não precisamos
mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo bem, os idiotas
querem acabar com a filosofia. Quem vai criar conceitos? A
informática? São os publicitários? Eles usam a palavra conceito. Tudo
bem, teremos os conceitos publicitários, conceitos de uma marca de
macarrão. Não será um grande rival para a filosofia. Acho que a
palavra conceito não é usada da mesma maneira. Mas hoje é a
publicidade que se apresenta como rival direto da filosofia porque
eles dizem que são eles que inventam conceitos. Mas os conceitos da
informática, dos computadores... O que eles chamam de conceito nos faz
rir. Não devemos nos preocupar.
CP: Podemos dizer que você, Félix e Foucault formam redes de conceitos
como redes de resistência, uma máquina de guerra contra um pensamento
dominante e lugares-comuns.
GD: Sim, por que não? Seria bom se fosse verdade. Mas a rede é o
único... Se não formarmos escolas, e as escolas não me parecem algo
muito bom, só há o regime das redes, das cumplicidades. Claro, sempre
foi assim em todas as épocas. O que chamamos de romantismo, por
exemplo, o romantismo alemão ou em geral, é uma rede. O que chamamos
de dadaísmo é uma rede. Tenho certeza de que há redes hoje em dia.
CP: Redes de resistência?
GD: Óbvio, a função da rede é resistir e criar.
CP: Você se sente célebre e clandestino? Você gosta dessa noção de
clandestinidade.
GD: Gosto, mas não me sinto célebre. Não me sinto clandestino.
Gostaria de ser imperceptível. Muita gente gostaria. Isso não
significa que eu não o seja. Ser imperceptível é bom porque podemos...
Mas essas são questões quase pessoais. O que eu quero é fazer meu
trabalho, que não me perturbem e não me façam perder tempo. Ao mesmo
tempo, ver pessoas. Sou como todo mundo. Gosto das pessoas, de um
pequeno número de pessoas. Gosto de vê-las, mas, quando as vejo, não
quero que seja um problema. Relações imperceptíveis com pessoas
imperceptíveis é o que há de mais bonito no mundo. Todos nós somos
moléculas. Uma molécula numa rede, uma rede molecular.
CP: Há uma estratégia da filosofia? Quando você escreve sobre Leibniz
este ano, você escreve estrategicamente sobre Leibniz?
GD: Acho que depende do que "estratégia" quer dizer. Quer dizer que
não escrevemos sem uma certa necessidade. Se quem escreve um livro não
sente necessidade de escrevê-lo, é melhor não o fazer. Escrevi sobre
Leibniz porque me era necessário. Por quê? Porque chegou o momento
para mim. Demoraria demais explicar. Falar não de Leibniz, mas da
dobra. A dobra, para mim, naquele momento, estava ligada a Leibniz. Eu
poderia dizer de todos os meus livros qual foi a necessidade da época.
CP: Fora a necessidade que o leva a escrever, o retorno a um filósofo,
à história da filosofia, após o livro sobre o cinema ou Mil platôs e O
anti-Édipo...
GD: Não houve retorno a um filósofo. Minha resposta estava certa. Não
escrevi sobre Leibniz. Não escrevi um livro sobre Leibniz porque, para
mim, havia chegado o momento de estudar o que era uma dobra. Escrevo
sobre a história da filosofia quando preciso, ou seja, quando encontro
e sinto uma noção que já estava ligada a um filósofo. Quando me
apaixonei pela noção de expressão, escrevi um livro sobre Spinoza
porque ele foi um filósofo que elevou a noção de expressão a um ponto
extremamente alto. Quando encontrei por conta própria a noção de
dobra, me pareceu óbvio que seria através de Leibniz que... Também
encontro noções que não são dedicadas a um filósofo... Então, não faço
história da filosofia. Para mim, não há diferença entre escrever um
livro de história da filosofia e escrever um livro de filosofia. É
nesse sentido que digo que sigo o meu caminho.
S de Style [Estilo]
CP: S de Style [Estilo].
GD: Essa é boa.
CP: O que é o estilo? Em Diálogos, você diz que é a propriedade
daqueles que não têm estilo. Disse isso sobre Balzac, se não me
engano. O que é um estilo?
GD: Essa não é uma perguntinha à toa.
CP: Foi por isso que perguntei tão rápido.
GD: Eu acho o seguinte: para entender o que é um estilo, não se deve
saber nada de lingüística. A lingüística causou muito mal. Por quê?
Porque há uma oposição da qual Foucault falou muito bem. Há uma
oposição entre a lingüística e a literatura. Ao contrário do que
dizem, elas não combinam. Para a lingüística, uma língua é sempre um
sistema em equilíbrio, portanto, da qual existe uma ciência. E o
resto, as variações, vão para o lado da fala e não da língua. Quando
se escreve, sabe-se que uma língua é, na verdade, um sistema que está
longe do equilíbrio, é um sistema em perpétuo desequilíbrio. Tanto que
não há diferença de nível entre língua e fala, mas a língua é feita de
todo tipo de correntes heterogêneas em desequilíbrio umas com as
outras. Mas o que é o estilo de um grande autor? Eu acho que existem
duas coisas em um estilo. Vou responder clara e rapidamente, e tenho
vergonha de ser tão breve! Um estilo é composto de duas coisas: a
língua que falamos e escrevemos passa por um tratamento que é um
tratamento artificial, voluntário. É um tratamento que mobiliza tudo:
a vontade do autor, assim como seus desejos, suas necessidades, etc. A
língua sofre um tratamento sintático original. Nisso encontramos
novamente o tema do animal. Pode ser fazer a língua gaguejar. Não
estou falando de você mesmo gaguejar, mas de fazer a língua gaguejar.
Ou fazer a língua balbuciar, o que não é a mesma coisa. Vejamos
exemplos de grandes estilistas: o poeta Ghérasim Luca. A grosso modo,
ele faz gaguejar, não sua própria fala, mas a língua. Péguy! É
engraçado, porque as pessoas acham que Péguy tem uma personalidade
estranha, mas esquecem que, acima de tudo, como todo grande artista, é
um louco total. Nunca ninguém escreveu, nem escreverá como Charles
Péguy. Ele faz parte dos grandes estilistas da língua francesa, das
grandes criações da língua francesa. O que ele faz? Não se pode dizer
que seja um gaguejar. Ele faz a frase crescer pelo meio. É fantástico!
Em vez de fazer frases que se seguem, ele repete a mesma frase com um
acréscimo no meio dela, o qual, por sua vez, vai gerar outro
acréscimo, etc. É um processo no qual ele faz a frase proliferar pelo
meio através de inserções. Um grande estilo é isso. Este é o primeiro
aspecto: fazer com que a língua passe por um tratamento, mas um
tratamento incrível. É por isso que um grande estilista não é um
conservador da sintaxe. É um criador de sintaxe. Eu mantenho a bela
fórmula de Proust: "As obras-primas são sempre escritas em uma espécie
de língua estrangeira". Um estilista é alguém que cria em seu idioma
uma língua estrangeira. Isso vale para Céline, para Péguy. É assim que
se reconhece um estilista. Ao mesmo tempo que, sob o primeiro aspecto,
a sintaxe passa por um tratamento deformador, contorcionista, mas
necessário, que faz com que a língua na qual se escreve se torne uma
língua estrangeira, sob o segundo aspecto, faz-se com que se leve toda
a linguagem até um tipo de limite. É o limite que a separa da música.
Produz-se uma espécie de música. Quando se conseguem essas duas coisas
e se há necessidade para tal, é um estilo. Os grandes estilistas fazem
isso. É verdade para todos: cavar uma língua estrangeira na própria
língua e levar toda a linguagem a uma espécie de limite musical. Ter
um estilo é isso.
CP: E você acha que tem um estilo?
GD: Que perfídia!
CP: Mas seu estilo mudou desde o seu primeiro livro.
GD: A prova de um estilo é a variabilidade. E, em geral, vai se
tornando cada vez mais sóbrio. Mas isso não quer dizer menos complexo.
Penso em um dos autores que muito admiro do ponto de vista
estilístico: Jack Kerouac. No final, Kerouac é uma linha japonesa. Seu
estilo é um desenho japonês, uma pura linha japonesa. Tornar-se mais
sóbrio, mas isso sempre implica a criação de uma língua estrangeira na
própria língua. Eu também penso em Céline. As pessoas costumavam dizer
que Céline introduziu a língua falada na escrita. É uma besteira,
pois, na verdade, há um tratamento escrito na língua, é preciso criar
uma língua estrangeira na própria língua para se obter por escrito a
equivalência da língua falada. Ele não introduziu o falar na escrita.
Mas quando o elogiam por isso, ele sabe muito bem que está muito longe
do que ele queria. E vai ser no segundo romance, em Mort à crédit, que
ele vai se aproximar mais. Quando Mort à credit foi publicado,
disseram que ele havia mudado. E ele sabe novamente que está longe do
que quer. Ele vai obter o que quer em Guignol's bande, no qual ele
realmente leva a linguagem a um limite tal que a aproxima da música.
Não é mais o tratamento da língua que a torna estrangeira, mas o fato
de toda a linguagem ser levada a um limite musical. Por natureza, um
estilo muda, ele tem variações.
CP: É verdade que se pensa muito em Steve Reich, com sua música
repetitiva, quando se lê Péguy.
GD: Sim, só que Péguy tem mais estilo do que Steve Reich.
CP: Não respondeu à minha perfídia. Você acha que tem estilo?
GD: Eu gostaria de ter. O que posso dizer? Para ser um estilista,
dizem que é preciso viver o problema do estilo. Se é assim, para
responder com mais modéstia, eu vivo o problema do estilo. Nunca
escrevo sem pensar no estilo. Sei que eu não obteria o movimento dos
conceitos que eu desejo sem passar pelo estilo. Sou capaz de refazer
dez vezes a mesma página.
CP: O estilo é como uma necessidade de composição do que você escreve.
A composição entra em jogo de forma primordial.
GD: Acho que tem toda razão. O que está dizendo: será que a composição
de um livro já é uma questão de estilo? Acho que é sim. A composição
de um livro é algo que não se resolve previamente. Ela acontece ao
mesmo tempo em que o livro é escrito. Por exemplo, vejo em livros que
eu escrevi, se me permite citar o que eu fiz... Há dois livros meus
que me parecem compostos. Sempre dei importância à composição. Penso
em um livro chamado Lógica do sentido que é composto por séries. Para
mim, é uma composição serial. E Mil platôs é uma composição por
platôs. Para mim, são duas composições musicais, sim. A composição é
um elemento fundamental do estilo.
CP: Em sua expressão, você acha que, hoje, está mais próximo do que
queria fazer há vinte anos atrás? Ou não é nada disso?
GD: Atualmente, tenho a impressão de estar me aproximando, sim. No que
ainda não foi feito, acho que estou me aproximando. Detenho algo que
eu buscava e não tinha encontrado.
CP: O estilo não é só literário. É sensível a ele em todas as outras
áreas. Você vive com a elegante Fanny e seu amigo Jean-Pierre também é
muito elegante. É muito sensível a esta elegância?
GD: Sim, eu me sinto... Eu gostaria de ser muito elegante, mas sei que
não sou. Mas, para mim, a elegância é uma coisa... Quero dizer que
existe uma elegância que consiste em se perceber o que é uma
elegância. Do contrário, há pessoas que não entendem nada e o que
chamam de elegância não é nada elegante. Uma certa compreensão da
elegância já faz parte da elegância. Isso me impressiona muito. É uma
área que, como todas as outras, exige um certo aprendizado, um certo
talento... Mas por que perguntou isso?
CP: Por causa do estilo.
GD: Sim, claro. Mas este aspecto não é nada valioso. O que talvez se
deveria...
CP: Deveria?
GD: Não sei. Acho que não depende apenas da elegância, que é uma coisa
que admiro muito, mas o importante no mundo é tudo o que emite signos.
A não-elegância e a vulgaridade também emitem signos. É muito mais
isso que me importa. São as emissões de signos. É certamente por isso
que gostei tanto e ainda gosto de Proust. O mundanismo, as relações
mundanas são emissões de signos fantásticas. O que chamam de gafe é
uma não-compreensão de um signo. São signos que as pessoas não
entendem. A mundanidade como um meio fértil de signos vazios,
absolutamente vazios, sem interesse algum, mas são as velocidades, a
natureza das emissões. Isso tem a ver com o mundo animal, pois ele
também é um emissor de signos fantásticos. Os animais e os mundanos
são mestres em signos.
CP: Você não sai muito, mas sempre preferiu noites mundanas a
conversas entre amigos.
GD: Sim, porque nos meios mundanos, não se discute, não há esta
vulgaridade. E a conversa é totalmente supérflua, leve, com evocações
extremamente rápidas. São emissões de signos muito interessantes.
T de Tênis
CP: T de Tênis.
GD: Tênis!
CP: Você sempre gostou de tênis. Há uma famosa história em que você,
criança, foi pegar um autógrafo de um grande jogador sueco e viu que
pegou o autógrafo do rei da Suécia.
GD: Mas eu já sabia que era ele! Ele já era centenário. Tinha um monte
de seguranças. Eu fui pedir um autógrafo ao rei da Suécia. O jornal Le
Figaro tinha me fotografado. Havia uma foto onde um menino pedia um
autógrafo ao velho rei da Suécia. Era eu.
CP: E quem era o grande jogador sueco?
GD: Era Borotra. Não era um grande jogador sueco. Era o guarda-costas
do rei, que jogava tênis com ele e o treinava. Ele me chutava para eu
não me aproximar do rei. Mas o rei foi muito bonzinho. Borotra também
ficou bonzinho. Não é um momento brilhante na vida de Borotra.
CP: Houve outros ainda piores de Borotra. É o único esporte que
assiste na TV?
GD: Não, eu adorava futebol também. O que mais? Acho que é só: tênis e
futebol.
CP: Você jogou tênis?
GD: Sim, muito. Até a guerra. Sou uma vítima da guerra.
CP: O que muda em seu corpo quando pratica tênis e depois deixa de
praticar? Muda alguma coisa?
GD: Não sei, acho que não. Para mim, não mudou nada, Não era um
profissional. Eu tinha 14 anos em 1939. Eu parei de jogar tênis aos 14
anos e não foi um drama.
CP: Você foi uma revelação?
GD: Até que eu jogava bem para a minha idade. Só fazia isso.
CP: Estava classificado?
GD: Não, só tinha 14 anos. Além do mais, não havia o desenvolvimento
que há hoje.
CP: Praticou outro esporte, o boxe francês, não?
GD: Lutei um pouco de boxe, mas me machucaram e parei logo. Mas fiz um
pouco.
CP: Acha que o tênis mudou muito desde sua juventude?
GD: Todos os esportes! São meios de variações. E voltamos ao problema
do estilo. O esporte é muito interessante porque está ligado às
atitudes do corpo. Há uma variação das atitudes do corpo, as quais se
estendem ao longo de períodos de tempo relativamente prolongados. É
claro que não se pulam arbustos hoje como se pulavam há 50 anos.
Arbustos ou outra coisa... É preciso classificar as variáveis na
história dos esportes, pois há variáveis de tática. No futebol, as
táticas mudaram muito desde a minha infância. Há variáveis de atitude,
de posturas de corpo. Há variáveis que geram implicações. Houve uma
época em que me interessei por lançamento de peso. Não para praticá-
lo, mas porque os gabaritos dos lançadores de peso evoluíram
rapidamente. Tratava-se de força, mas como recuperar velocidade com
lançadores muito fortes? Tratava-se também de gabaritos rápidos, mas,
usando a velocidade como primeiro elemento, como recuperar a força? É
muito interessante. O sociólogo Mauss havia lançado um estudo sobre as
atitudes do corpo nas civilizações. O esporte é uma área fundamental
das variações das atitudes. No tênis, antes da guerra, -- eu me lembro
bem dos campeões da época --, as atitudes eram muito diferentes. O que
me interessava muito -- e voltamos à questão do estilo -- eram os
campeões que são realmente criadores. Há dois tipos de campeões que
não têm o mesmo valor para mim: os criadores e os não-criadores. Os
não-criadores são aqueles que usam um estilo já existente como uma
força inigualável, como Lendl, por exemplo, que não é criador em
tênis. E os grandes criadores. Esses são os que inventam novas jogadas
e introduzem novas táticas. E nisso tudo, há uma série de seguidores.
Os grandes estilistas são os inventores. Eles também existem nos
esportes. Qual foi a grande virada do tênis? Foi a sua proletarização,
mas com a devida relatividade. Tornou-se um esporte popular... Mais
para jovens executivos do que proletários, mas, mesmo assim, vou falar
em proletarização do tênis. Havia movimentos profundos que
justificavam o ocorrido, mas isso não teria acontecido sem a
existência de um gênio. Borg foi o responsável. Por quê? Porque trouxe
o estilo de um tênis popular. Foi preciso que ele o criasse. Depois,
outros campeões o seguiram, mas não eram criadores, como Vilas, etc.
Mas Borg me convém perfeitamente, por causa de sua cara de Cristo. Ela
tinha aquela expressão crística, aquela extrema dignidade, o fato de
ser respeitado por todos os jogadores.
CP: Você estava dizendo: "Eu assisti...".
GD: Sim, eu assisti muita coisa em tênis, mas quero fechar sobre o
Borg. Borg é um personagem crístico. Garante o esporte popular, cria o
tênis popular. Isso implica na total invenção de um novo jogo. Há uma
série de campeões de valor como Vilas, mas que vieram impor um jogo
soporífico. Mas sempre voltamos àquela lei: "Vocês estão me elogiando
e estou a cem léguas do que queria fazer". Pois Borg muda. Quando
sente que deu certo, ele muda, não o interessa mais e ele evolui. O
estilo de Borg evoluiu, enquanto que os "burocratas" mantinham a mesma
coisa. O anti-Borg era o McEnroe.
CP: Qual era o estilo proletário de Borg?
GD: Um estilo de fundo de área, recuo total, e o liftage... e a
proximidade da rede. Qualquer proletário ou executivo menor pode
entender este jogo. Mas não disse que poderia jogar assim. O princípio
do jogo de Borg é o contrário dos princípios aristocráticos. São
princípios populares, só que faltava um gênio para revelá-los. Borg é
exatamente como Jesus Cristo. É um aristocrata que se dirige ao povo.
Estou dizendo besteiras... Borg foi impressionante. Muito curioso. Um
grande criador no esporte. E havia McEnroe, que era um aristocrata
puro, um aristocrata meio egípcio, meio russo. Saque egípcio, alma
russa. Inventava jogadas que ele sabia que ninguém poderia fazer
igual. De fato, ele inventava jogadas prodigiosas. Ele inventou uma
que é colocar a bola. Não bate nela, só a coloca. Ele fez uma série de
saques-cortadas que eram conhecidos, mas os de McEnroe foram renovados
por completo. Poderia falar de muitos outros. Mas há outro grande, mas
que não tem a mesma importância. É outro americano, esqueci o nome
dele.
CP: Connors.
GD: Sim, nele vemos o princípio aristocrático da bola sem efeito e
dando uma rasante na rede. Este é um princípio aristocrático. E o
toque de raquete em desequilíbrio. Nunca ninguém teve tanto gênio
quanto ele em desequilíbrio. São jogadas muito curiosas. Há uma
história dos esportes, mas isso vale para todos. É exatamente como na
Arte. Existem os criadores, os seguidores, as mudanças, as evoluções,
a história e há o devir do esporte.
CP: Você começou dizendo "Eu assisti...".
GD: É mais um detalhe. Às vezes é difícil determinar a origem de uma
jogada. Antes da guerra, havia os australianos. Aí, existem questões
de nações. Porque foram os australianos que trouxeram a rebatida
cruzada com duas mãos. No início, só os australianos o faziam, pelo
que me lembro. É uma invenção australiana. Por que os australianos?
Não sei, mas deve ter um motivo. Mas eu me lembro de uma jogada que
tinha me impressionado quando menino porque não tinha efeito nenhum.
Víamos que o adversário geralmente errava e pensávamos: "Por quê?".
Era uma jogada sem graça. Mas, pensando bem, percebíamos que era na
rebatida. O adversário sacava e o jogador rebatia a bola. Ele rebatia
com pouca força, mas tinha a propriedade de cair exatamente na ponta
dos dedos do pé daquele que sacou e que recebia a bola de volta. Ele
não conseguia pegá-la. Era uma jogada estranha. Nós pensávamos: "Mas o
que é isso?". Não entendíamos bem por que era uma jogada tão bem-
sucedida e impressionante. Acho que o primeiro a ter sistematizado
esta jogada foi um grande jogador australiano que se chamava
Brownwich. Ele devia ser do pós-guerra. Não me lembro bem. Foi um
grande jogador e um criador de jogadas. Quando rapaz, eu me lembro bem
disso, era impressionante. Hoje, é uma jogada clássica, todos fazem
isso. Mas é o caso de uma invenção de jogada; a geração de Borotra não
conhecia este tipo de rebatida.
CP: Para fechar o assunto, quando McEnroe reclama e insulta o juiz,
aliás, ele xinga a si próprio mais do que ao juiz, é uma questão de
estilo porque não gostou de sua expressão?
GD: Não, é uma questão de estilo porque faz parte do estilo dele. É
uma descarga nervosa. Como um orador pode ficar furioso, mas há
oradores glaciais. Sim, faz parte do estilo. É a alma. Como se diria
em alemão, é a Gemüt.
CP: Agora, U de Uno.
GD: Uno!
U de Uno
CP: U, V, W, X, Y, Z. É o fim e vamos ser rápidos. U de Uno; V de
Viagem; W de Wittgenstein, X, o Desconhecido, Y vamos deixar para os
neo-platonicianos e Z fecha e ilumina. U é Uno.
GD: Uno.
CP: Sim, Uno. A Filosofia ou a Ciência cuidam do universal. No
entanto, você diz que a Filosofia deve manter contato com as
singularidades. Existe um paradoxo?
GD: Não há paradoxo, porque a Filosofia, e até mesmo a Ciência, não
tem nada a ver com o universal. São idéias preconcebidas de opiniões.
A opinião sobre a Filosofia é que ela cuida do universal. E a opinião
sobre a Ciência é que ela cuida de fenômenos universais que podem se
repetir. Mesmo se pegar a fórmula de que todo corpo cai, o importante
não é que todos os corpos caem e, sim, a queda e as singularidades da
queda. Que as singularidades científicas como as da matemática, da
física ou da química, como ponto de congelamento, sejam reproduzíveis,
tudo bem, mas e daí? São fenômenos secundários, processos de
universalização. Mas a Ciência não cuida de universais, mas de
singularidades. Quando é que um corpo muda de estado e passa do
líquido para o sólido, etc.? A Filosofia não cuida do Uno, do ser,
nada disso.Tudo isso é besteira! Também ela cuida de singularidades.
Seria preciso perguntar o que são as multiplicidades. As
multiplicidades são conjuntos de singularidades. A fórmula da
multiplicidade é "n menos 1". Ou seja, o 1 é sempre o que deve ser
subtraído. Acho que há dois erros que não devem ser cometidos. A
Filosofia não cuida de universais. Há três universais. Poderíamos
relacioná-los. Há os universais de contemplação, as Idéias, com um I
maiúsculo. Há os universais de reflexão e os universais de
comunicação. É o último refúgio da Filosofia dos universais. Habermas
gosta muito dos universais de comunicação. Isso implica definir a
Filosofia como contemplação, como reflexão ou como comunicação. Os
três casos são cômicos. É uma palhaçada. O filósofo que contempla,
tudo bem, é muito engraçado. O filósofo que reflete não é engraçado. É
pior, porque ninguém precisa de um filósofo para refletir. Os
matemáticos não precisam de um filósofo para refletir, um artista não
precisa procurar um filósofo para refletir sobre a pintura ou a
música. Boulez não precisa dele para refletir sobre música. Dizer que
a Filosofia é uma reflexão segura é desprezar a Filosofia e o motivo
de sua reflexão. Não precisa de Filosofia para refletir. Quanto à
comunicação, nem se fala! A idéia de que a Filosofia seja um consenso
para comunicar a partir dos universais da comunicação é a idéia mais
divertida que já vi. A Filosofia não tem nada a ver com comunicação. A
comunicação se basta. É uma questão de opinião e de consenso de
opinião. É a arte das interrogações. A Filosofia não tem nada a ver.
Como já disse, a Filosofia cria conceitos. Não é comunicar. A Arte não
é comunicativa, não é reflexiva, nem a Ciência, nem a Filosofia. Não é
contemplativa, nem reflexiva, nem comunicativa. É criativa. Nada mais.
A fórmula é "n menos 1", eliminar a unidade, eliminar o universal.
CP: Então, os universais não têm nada a ver com Filosofia?
GD: Não, nada a ver.
V de Viagem
CP: Vamos à letra V. V de Viagem. É a demonstração de que um conceito
é um paradoxo, porque você inventou um conceito que é o nomadismo, mas
você odeia viajar. A esta altura da nossa entrevista, podemos dizer
que você odeia as viagens. Por que as odeia?
GD: Não odeio as viagens, odeio as condições em que um pobre
intelectual viaja. Talvez se eu viajasse de outra maneira, eu adorasse
viagens. Mas entre os intelectuais, o que quer dizer viajar? É fazer
uma conferência do outro lado do mundo com tudo o que implica antes e
depois: falar antes com pessoas que o recebem, falar depois com
pessoas que o ouviram. Falar, falar... A viagem de um intelectual é o
contrário da viagem. Ir para o outro lado do mundo para falar o que
poderia falar em casa e para ver gente antes e depois de falar. É uma
viagem monstruosa. Assim, é verdade que não tenho simpatia por
viagens. Isso não é um princípio. Não pretendo ter razão, mas eu fico
pensando: "O que existe na viagem?". Há sempre um lado de falsa
ruptura. Este é o primeiro aspecto. O que torna a viagem antipática
para mim? Primeiro é o fato de ser uma ruptura barata. Eu sinto
exatamente o que dizia Fitzgerald: "Não basta uma viagem para haver
uma ruptura". Se querem ruptura, faça outra coisa que não seja viajar.
As pessoas que viajam muito têm orgulho disso e dizem que vão em busca
de um pai. Há grandes repórteres que fazem livros sobre isso. Foram ao
Vietnã, Afeganistão, etc. e dizem friamente que sempre estiveram em
busca de um pai. A viagem me parece muito edipiana neste sentido. Não,
assim não dá. A segunda razão é... Há uma frase maravilhosa que me
toca muito, de Beckett, que faz um de seus personagens dizer o
seguinte: "Somos idiotas, mas não ao ponto de viajar por prazer". Esta
frase me parece totalmente satisfatória. Sou idiota, mas não ao ponto
de viajar por prazer. Isso não. E o terceiro aspecto da viagem... Você
falou em nômade. Sim, os nômades sempre me fascinaram, exatamente
porque são pessoas que não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há
pessoas obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são
viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são
forçadas. Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades
ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair,
eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se
apegam a ele, só podem "nomadizar" em suas terras. É de tanto querer
ficar em suas terras que eles "nomadizam". Portanto, podemos dizer que
nada é mais imóvel e viaja menos do que um nômade. Eles são nômades
porque não querem partir. É por isso que são tão perseguidos. E,
finalmente, o último aspecto da viagem... Há uma bela frase de Proust
que pergunta o que fazemos quando viajamos. Sempre verificamos algo.
Verificamos se aquela cor com que sonhamos está ali. Mas ele
acrescenta algo muito importante: "Um mau sonhador é aquele que não
vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom sonhador vai
verificar, ver se a cor está lá". Esta é uma boa concepção da viagem.
Do contrário...
CP: Acha que é uma regressão fantástica?
GD: Não, há viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo, a vida
de Le Clézio me parece uma coisa onde se opera uma ruptura.
CP: Lawrence?
GD: Sim, Lawrence. Há muitos grandes escritores pelos quais tenho
grande admiração e que têm um sentido da viagem. Stevenson. As viagens
de Stevenson são enormes. Eu digo por minha conta que quem não gosta
de viagens é por estes quatro motivos.
CP: Seu ódio por viagens está ligado à sua lentidão natural?
GD: Não, porque pode haver viagens lentas. Não preciso sair. Todas as
intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se distribuem no
espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos.
Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma
música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que
nenhuma viagem me permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções
em um sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema
imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-
filosofia. São países profundos. São os meus países.
CP: Terras estrangeiras?
GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.
GD: Você é a perfeita ilustração de que o movimento não é locomoção,
mas já esteve no Líbano, para conferências, no Canadá, nos Estados
Unidos...
GD: Sim, estive lá, mas eu sempre fui levado. Hoje, não faço mais
isso. Não deveria ter feito isso. Já fiz demais. Eu gostava de andar
naquela época. Hoje, ando menos bem. Então, nem entra em questão.
Gostava de andar. Eu fazia caminhadas da manhã à noite, sem saber para
onde ia. Andava por uma cidade a pé, mas isso acabou.
W de Wittgenstein
CP: Vamos ao W.
GD: Não tem nada em W.
CP: Tem sim: Wittgenstein. Sei que não é nada para você...
GD: Não quero falar disso. Para mim, é uma catástrofe filosófica. É
uma regressão em massa de toda a filosofia. O caso Wittgenstein é
muito triste. Eles criaram um sistema de terror, no qual, sob o
pretexto de fazer alguma coisa nova, instauraram a pobreza em toda a
sua grandeza. Não há palavras para descrever este perigo. E é um
perigo que volta. É grave, pois os wittgensteinianos são maus, eles
quebram tudo! Se eles vencerem, haverá um assassinato da filosofia.
São assassinos da filosofia.
CP: É grave, então?
GD: Sim, é preciso ter muito cuidado!
X de Desconhecido
CP: X é Desconhecido.
Y de Indizível
CP: Y é Indizível.
Então, passamos direto para a última letra do alfabeto, a letra Z.
GD: Que bom!
Z de Ziguezague
CP: Não é o Z de Zorro, o justiceiro, como já vimos através deste
alfabeto, mas o Z da bifurcação, do raio. O Z que existe no nome dos
grandes filósofos: Zen, Zaratustra, Leibniz, Spinoza, Nietzsche,
"Bergzon" e, é claro, Deleuze.
GD: Você foi muito espirituosa com "Bergzon" e muito boazinha comigo.
Z é uma letra formidável, que nos faz voltar ao A. O ZZZZ da mosca, o
ziguezague da mosca. O Z é o ziguezague. É a última palavra. Não há
palavras depois de ziguezague. É bom terminar em cima disso. O que
acontece com o Z? O Zen é o inverso de nez [nariz], que também é um
ziguezague. É o movimento... a mosca... O que é isso? Talvez seja o
movimento elementar, o movimento que presidiu a criação do mundo.
Neste momento, estou lendo sobre o Big-Bang, a criação do universo, a
curvatura infinita, como tudo se fez... A base de tudo não é o Big-
Bang, mas o Z.
CP: Você falava do Z da mosca, do Big-Bang, a bifurcação...
GD: O Big-Bang deveria ser substituído pelo Z, que é o Zen, que é o
trajeto da mosca. O que significa isso? Para mim, o ziguezague lembra
o que dizíamos sobre universais e singularidades. A questão é como
relacionar as singularidades díspares ou relacionar os potenciais. Em
termos físicos, podemos imaginar um caos, cheio de potenciais, mas
como relacioná-los? Não sei mais em que disciplina científica, mas li
um termo de que gostei muito e tirei partido em um livro. Ele
explicava que, entre dois potenciais, havia um fenômeno que ele
definia pela idéia de um precursor sombrio. O precursor era o que
relacionava os potenciais diferentes. E uma vez que o trajeto do
precursor sombrio estava feito, os dois potenciais ficavam em estado
de reação e, entre os dois, fulgurava o evento visível: o raio! Havia
o precursor sombrio e o raio. Foi assim que nasceu o mundo. Sempre há
um precursor sombrio que ninguém vê e o raio que ilumina. O mundo é
isso. Ou o pensamento e a filosofia deveriam ser isso. E o grande Z é
isso. A sabedoria do Zen também. O sábio é o precursor sombrio e as
pauladas - já que o mestre Zen vive dando pauladas - constituem o raio
que ilumina as coisas. Assim, chegamos ao fim...
CP: Gosta de ter um Z em seu nome?
GD: Adoro! Pronto.
CP: Fim.
GD: Que alegria ter feito este... Pronto! Póstumo, póstumo!
CP: PóZtumo!
GD: Obrigado pela gentileza de todos.
Notas
1. O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André
Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi
divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas:
Raccord [com modificações].
2. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos
anos 1988-1989. Como diz Deleuze, em sua primeira intervenção, o
acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme
acabou sendo apresentado, entretanto, com o assentimento de Deleuze,
entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV
Arte. Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995. A primeira intervenção
de Claire Parnet foi feita na ocasião da apresentação (1994-1995),
enquanto a primeira intervenção de Deleuze é da época da filmagem
(1988-1989).
Fonte:
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51
Mais sobre Deleuse, pesquise suas obras:
http://compare.buscape.com.br/procura?id=3482&raiz=3482&kw=deleuze