Separar-se, a separação e os conselhos
Fabrício Carpinejar
Não há como definir o motivo para terminar com alguém. O que gerou a
separação? O que provocou a absoluta segurança de encerrar o romance e
abdicar do final feliz? Como que ocorre a transformação da companhia
íntima,
a qual se dividia segredos ao longo de anos, em uma estranha
desaforada
querendo arrancar o teu siso de ouro em uma vara de família? São
movimentos
subjetivos e sísmicos que definem a ruptura. Não é o peso, o rosto, as
pernas que norteiam o amor. Nada o esclarece, muito menos o seu final
e o
distanciamento do tempo. O amor inicia na incompreensão compreendida,
a
confusão saborosa da identidade de não pensar em outra coisa, e
termina em
compreendida incompreensão, na confusão desastrosa da identidade de
não
querer pensar no assunto por mais um dia. De que modo algo que
prometia
aventura resulta na mais ferrenha apatia? Como um jogo com primeiro
tempo
eletrizante reduz o ritmo no segundo tempo e se conforma com o
resultado?
Em que canto da memória, em que momento se toma essa decisão de que a
pessoa
com quem se vive não presta mais, de que foi um erro, de que se perdeu
tempo
ao lado dela. O que faz um homem ou uma mulher largar aquilo que
considerava, uma noite atrás, seu santuário, seu universo, sua
segurança. De
onde parte esse instinto utilitário de que o par é um carro importado
e é
muito cara a reposição de peças. Não acontece de repente, tenho
certeza.
Tudo começa com a resignação, na certeza equivocada de que se sabe
tudo.
Quando se põe na cabeça que se cumpriu a apresentação, que não existe
nenhuma surpresa porvir. Quando se deixa de perguntar para adivinhar
as
respostas. Quando se deixa de responder por não suportar as perguntas.
Quando uma conversa com casais termina no insuportável álbum de
retratos.
Quando não se fala mais dele ou dela como uma novidade, porém como uma
doença antiga, uma enxaqueca, uma tia distante. Acreditar que se
domina a
situação é pisar em falso. Amor não se assinala no calendário. Ou
existe
gente marcando uma ida no motel em agenda? O amor aceita apenas fiado.
As
dívidas aumentam sua longevidade. É falta de controle, imprevisto,
improviso, nervosismo. Sem a covardia atenta, não há sedução. Sem o
balbucio, não há sinceridade. Ninguém conhece tão bem o outro a ponto
de
dizer que verdadeiramente o conhece. Não vi mulher que não é no mínimo
duas.
Em algum lugar do corpo, desliga-se o aparelho. Fecha-se a conquista
como se
fosse um expediente comercial. Conquistei, ele é meu, ela é minha,
deu.
Abdica-se do esforço de explorar a personalidade em conversas e saídas
noturnas. A tensão esfria e cada um se deita pensando uma forma mais
rápida
de se cumprimentar, de existir e, se possível, não se tocar. O beijo
de
despedida vai se especializando em acenar, tornando-se uma prova com
barreiras. E não adianta seguir conselhos de amigos. Em estado
vulnerável
até leitura de horóscopo convence.
O único erro é confiar que o namorado ou a namorada, o marido ou a
esposa,
dentro de si é maior do que a figura que está fora, de carne e osso,
mais
carne do que o osso, apesar de estar mais interessado no osso para
enterrar
do que a carne para dividir a temperatura. A atração enreda, a
convivência
consolida, o tédio estremece, porém unicamente a falta de humor
separa. Quem
não tem defeitos também não tem virtudes. Rir dos limites e dos erros
do
relacionamento, por mais estranho que seja, é uma espécie de
liberdade. Uma
liberdade que só pode ser gozada a dois.
Distância e distanciamento
Sendo obrigado a ficar separado da namorada ou namorado, do marido ou
da
mulher, o que fazer? Morar em casas diferentes, cidades diferentes,
países
diferentes não revela distância. A distância mais difícil de ser
superada é
a do costume: a psicológica, a que não permite abraços efusivos e
brincadeiras, que paralisa e planifica os sentimentos com os anos de
convivência.
É um lugar-comum dizer que é fácil uma relação dar certo sem que os
dois se
vejam. Mas quem namora afastado não está convencido da conquista e se
põe a
trabalhar para surpreender. Acautela-se para não sacrificar o que está
começando. Exercita mais antes de falar. Procura a toda hora uma forma
de
chamar atenção. Fiscaliza, atualiza a relação, olha ao telefone ou a
caixa
de mensagens com curiosidade inquisidora. Corre risco, cobre a aposta,
suscetível a enganos, comédias e foras. Aprende a ver longe para não
permanecer longe. Distância não é distanciamento. A primeira é física,
o
segundo é emocional.
Tudo é questão de matemática. Melhor ser dois no tempo sendo um no
espaço do
que ser um no tempo para ser dois no espaço. Dividir o mesmo teto é
pouco
perto de dividir o mesmo texto. Os casais separados pela força das
circunstâncias não ficam com receio das juras e das promessas.
Preocupam-se
com sutilezas e detalhes. Não têm vergonha da vergonha. Não estão
condicionados ao amor como posse, mas como incerteza. Conhecem quem
são pela
intensidade de sua busca. Esforçam-se para que a carne seja a
lembrança de
outra carne, a pele seja a lembrança de outra pele. O esforço é
compreensão
e a esperança, uma espécie de justiça.
A falta de imaginação termina com qualquer coisa, das atitudes mais
complexas às mais simples. Como não colocar um ingrediente a mais ao
seguir
uma receita? É inevitável. Os melhores cozinheiros são de olho. Minha
avó
nunca anotou nenhum de seus pratos, porque me dizia: "a comida é que
me diz
quando está pronta, não eu". Erra-se para acertar. E quando se acerta,
com
um toque pessoal, parece um milagre.
Sem reagir à vida, não há experiência, há acomodação. Não é de
estranhar que
o medo de ver um nascimento é maior do que ver uma morte. Desmaiar num
parto
é mais fácil do que desmaiar diante de alguém que parte. Casais que se
julgam definitivos porque moram juntos perdem o medo solidário de
nascer
(todo mundo que nasce precisa de ajuda) para deixar o medo mesquinho
de
morrer tomar conta da relação (todo mundo que morre, morre sozinho). O
desejo não combina com segurança e senhas. O desejo é não saber o que
vai
acontecer depois. Os namorados e namoradas apartados por uma questão
de
trabalho, de residência ou de família estão dispostos a se encontrar
dentro
dos próprios desencontros. O círculo perfeito é muito apertado. Agrada-
me a
elipse, a hesitação, a fresta para arejar os afetos. Uma alegria breve
pode
vir a ser uma alegria interminável.
Conselhos
Não percebo quando estou recebendo conselhos ou dando conselhos. Não
há um
aviso: preste atenção, isso vai servir para toda tua vida. Conselho
não é
cerca eletrônica. É falar com fraqueza. A fraqueza é franqueza. E
ocorre no
momento em que não se pretende convencer ninguém, muito menos a si.
Conselho
é a total falta de persuasão, desobrigação. As linhas que sublinhei
num
livro são meus pensamentos. As linhas que não sublinhei são conselhos.
Conselho não pode ser ralhado. Não pode ser imposto, ditado,
planejado. Não
é necessariamente para ser seguido ou compreendido. Não se trata de
uma
explosão, mas de um estalo. Suave, despretensioso e que é capaz de ser
descoberto anos depois. O que acreditava que serviria a minha vida não
prestou e o que não acreditava resultou em ensinamento. Talvez olhar
de cara
feia seja o sinal de que é um conselho. Fui um menino religioso.
Religioso
de conversar com os pássaros, de tomar chuva para esfriar a cabeça, de
descascar bergamota no sol e alcançar gomos ao cachorro. Rezava terços
aos
nove anos, toda noite, enquanto meu irmão menor lia a revista Placar e
o
mais velho a Playboy. Tinha que me manter atento nas pedras para não
pular
passagens.. Acompanhava a mãe nas missas, recolhia o dízimo,
participava de
grupo de jovens. A missa foi o primeiro caraoquê que participei. Não
havia
nota, o que me salvava do vexame. Cantava altamente desafinado. Cantar
era
gritar. Imaginava os vitrais como a geladeira da luz. A luz permanecia
fria
naquelas imagens, conservadas da mortalidade que suava e deformava.
Minhas
roupas encolhiam de repente. Me vestia mal para não chamar atenção.
Chamava
atenção porque me vestia mal. Contava meus pecados com detalhes.
Aumentava
meus pecados com volúpia. O padre tinha sono, arrulhava na cabine. Por
muito
tempo, confundi o confessionário com provador de roupa. Ainda são
misteriosos os motivos da grade que separava o mundo de Deus dos
fiéis. Deus
merecia venezianas. Eu me envergonhava de não ter pecados. Roubava os
pecados dos outros para me sentir mais santo, para ganhar confiança.
Minha
fé sempre foi maior do que a forma que encontrei para rezar. Eu só
queria me
salvar. Queria me salvar de mim mesmo. Custei a entender que não posso
me
dar conselhos - não me escuto ou me escuto tarde demais.
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Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de seis livros: entre eles, Cinco
Marias
(2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente
publicados <
http://carpinejar.blogger.com.br/> em seu blog e
reproduzidos
aqui com sua autorização.
autorFabrício
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Carpinejar
São Leopoldo, 18/1/2005
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