LOST: fim da 4a. temporada (ou como acabar com qualquer briga de
casal)
por Gustavo Gitti
30 May 2008
Aviso: este post NÃO contém spoilers e faz sentido mesmo se você não
assistiu a nenhum episódio da 4a. temporada da série. Leia tranquilo.
O fim da quarta de temporada de Lost só perde para o fim da terceira.
É impossível prever a cena final – e ainda que se adivinhe não há como
explicar o acerto. Os problemas só se multiplicam já que a resolução
de um dispara uma miríade de complicações. Como já disse antes, no fim
da segunda temporada (“Sobre chão e nuvens”), a história de Lost é uma
das melhores metáforas para vida. Ou melhor, nossa vida é uma metáfora
para a história de Lost.
Cada personagem na ilha carrega um passado (que dá coerência a suas
ações), patina no presente e anseia por um certo futuro, enquanto
evita possíveis outros. Essa é a estrutura simples e previsível de
nossas vidas. Podemos nos achar originais, ter orgulho de nossos
insights e evoluções, contar com gosto nossas histórias inéditas.
Podemos batalhar por algo, chorar perdas, sorrir, pular com acertos.
Nossos fracassos e sucessos, porém, são essencialmente patéticos.
Ridículos.
Dificilmente saimos dessa estrutura. Se estamos alegres ou miseráveis,
deprimidos ou extasiados, não fugimos à grande regra. Em ambos os
extremos que nossos poros podem suportar, insistimos em dar solidez a
tudo o que nos acontece. Ainda que falemos “Não me levo a sério” ou
aconselhemos “Não leve sua vida a sério”, algo em nós acredita na
concretude e realidade dos fatos. Isso pode ser evidenciado pela
seguinte questão: “O que você acha mais real: uma ilha com poderes
mágicos, monstros de fumaça, escotilhas e experimentos misteriosos, ou
um planeta azul que tem terroristas, psicanalistas e bombeiros?
Explosão magnética ou World Trade Center? John Locke ou Platão? Jack
ou Patch Adams?”.
Ver mais realidade em nossa vida do que em Lost, eis o que nos faz
sofrer. O dilema é que é exatamente isso que nos faz felizes também.
No meio de uma grande paixão, perguntamos ao outro: “É tudo real, né?
Quero muito que seja tudo real, pois aí essa felicidade aqui não vai
caber em mim”. A mesma resposta positiva que nos conforta logo em
seguida vai nos dilacerar. Não sabemos como nos livrar da dor sem
arremessar junto o prazer. Quer um bom resumo para nossos percursos?
“Papai, me conta um pouco sobre seu passado?”; “Filho, eu passei a
vida tentando conseguir um tipo de prazer que não viesse acompanhado
de dor”.
Esforçamo-nos para configurar cada situação de modo que não haja
problemas. Ora, o que queremos é tão simples! Sair da ilha, jantar com
o filho, reencontrar a grande paixão, andar com pés e pernas, ter um
filho, se livrar dos processos criminais, se curar do câncer ou
escapar da maldição que veio com os milhões de dólares da loteria.
Para isso, traçamos uma linha causal e seguimos, ponto a ponto,
construindo uma situação ideal. “Para sair da ilha, eu preciso antes
ir até a escotilha que fica a leste do abrigo, lutar contra alguns,
matar outros, fazer uma cirurgia, torturar o líder inimigo… Aí sim
terei paz, harmonia, descanso”.
Sempre que resolvemos algo, em vez de nos aproximarmos da felicidade,
apenas criamos outro nó a ser resolvido. O processo é infinito. Sem
perceber, vamos passar a vida toda andando em círculos. Você está em
qual temporada? Décima quinta, vigésima segunda? Aqui o arquivo é
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Quando vemos nossa vida em uma tela, com outras faces e histórias,
fica mais fácil perceber que aquilo é só um sonho. Mais ainda, podemos
conceber um universo (tão real quanto o nosso) no qual há outras
configurações, como Dharma Initiative e escotilhas, outras linguagens,
eventos, seres. Imaginamos um ser nascendo ali, vendo tudo como
natural e real, assim como nascemos no Planeta Terra e não nos
assombramos quando vamos apertar teclas em uma máquina para escolher o
líder de nosso grande grupo ou não pulamos de susto quando nasce um
outro ser dentro da nossa barriga 9 meses depois daquela noite em que
nosso parceiro colocou uma extensão de seu corpo em de nós.
Se conseguimos nos divertir com os personagens de Lost, com o quanto
cada um ali leva seus dramas a sério e batalha por um tipo de futuro,
já estamos prontos para olhar nossos problemas com um sorriso
malicioso. Entretanto, ver nossa vida como um sonho não significa
tirar sua realidade, mas vivenciar uma possibilidade sem perder o
reconhecimento das outras – ou seja, sem perder a liberdade.
Há uma diferença entre os conceitos de ilusão e delusão: enquanto o
primeiro invalida a experiência, o segundo (muito mais sofisticado)
apenas a relativiza. No cinema, mergulhamos no filme, seguimos o
protagonista com nossos olhos e pulmões. Ele morre, nós choramos.
Enquanto estamos movidos pela história, nos esquecemos de que aquilo é
uma projeção dentro de um cinema dentro de um shopping dentro de uma
cidade. Tudo feito por atores, diretores, roteiristas. Esquecemos que
estamos sentados em uma cadeira, que antes estávamos rindo comendo
pipoca ou que aquele ator já fez um personagem completamente
diferente. Porque ignoramos as realidades fora do universo do filme,
somos fisgados.
Um filme não provoca ilusão, mas delusão: enquanto focamos o filme,
esquecemos que há o cinema. Em nossa vida, ocorre o mesmo. Mergulhamos
em uma história, incorporamos um personagem, seguimos com pulmão e
coração até o fim do drama, que parece o fim do mundo, de fato. A
delusão do filme dura 2 horas; a da vida, 2 anos ou décadas.
Esquecemos que antes sequer conhecíamos a pessoa pela qual hoje
sofremos. E vivíamos bem, sem problemas, não é mesmo? Lembrar disso é
sustentar nossa liberdade, escapar da delusão.
Sempre que sofremos, achamos que fizemos algo de errado. E quando nos
alegramos, sentimos que acertamos. Esse é um grande equívoco. Pois
para a dor surgir não fizemos nada de errado! E a alegria não veio de
acerto algum! Eis nossa condição: estamos dentro de um filme que nos
apresenta um dilema impossível de ser resolvido. Os conflitos
continuarão a aparecer e, para complicar a situação ainda mais, a
morte virá com tudo. Não temos chance alguma.
Filme sem saída, história após história, ausência de resolução final.
Sua amiga vem chorando e fica algumas horas explicando por que acabou
com o namoro de 7 anos. Ela não aguenta mais sentir o peito doendo: “O
que eu faço, me diz?”. Você tem duas opções. Na primeira, conversa,
analisa argumento a argumento, abraça, chora junto, ri, sai para
dançar… Isso se chama terapia (cognitiva ou emocional). Na segunda,
você olha bem no fundo dos olhos dela e sussurra: “Acorda!”.
O melhor dos conselhos não foca o conteúdo, mas a estrutura do
problema. A causa da briga pode ser raiva, ciúmes, inveja; pode ser a
última noite, um fato longe no passado, uma TPM repentina. Para cada
causa relativa, podemos traçar a origem, passar por anos de terapia,
tomar remédio, compreender, refletir, reprogramar. No entanto, depois
de 578 causas resolvidas, sempre aparecerá mais uma, e outra, e outra…
A saída não-causal vem na forma de um pulo para além de nossa
coerência, uma quebra dentro de nossas tentativas de construir uma
configuração ideal.
Nossos mais complicados problemas têm a densidade da nuvem que acabou
de cruzar o céu, a seriedade de um palhaço bêbado, a solidez de um
holograma. Como em um filme, sua qualidade de vividez e brilho ofusca
nossos olhos e os deixam girando como no estágio REM (rapid eye
movement) do sono. Enquanto nossos olhos se perdem, nos debatemos,
reagimos, procuramos soluções. Não sabemos que basta encará-la, com
olhos de sorriso, para que a complicação se mostre onírica.
Os personagens de Lost seriam liberados instantaneamente se algum
deles encontrasse DVDs com o Making Of das primeiras temporadas, se
alguém ali soubesse que há um mundo de gente acompanhando suas
histórias. Mas liberados de quê? Da ilha, dos problemas, dos outros?
Não. Da contração que agora os aflige, da cegueira, do esquecimento.
Não da vida, que se tornaria ainda mais intensa; ou da ilha, que seria
enfim aproveitada. Em vez de seguir o conteúdo de seus problemas, eles
enfim parariam e descansariam um pouco para, quem sabe, planejar uma
festa ao fim do dia. No mesmo sentido, podemos nos liberar a qualquer
momento, sem preparação terapêutica, sem reconfiguração alguma,
qualquer que seja nossa condição, se soubermos que nós somos tão reais
(ou tão ficcionais) quanto os personagens da série.
P.S.: Pacificar as relações não significa diminuir a temperatura ou
parar de brigar. A energia que hoje usamos sem controle para transar e
depois discutir, que nos acaricia e depois arranha até sangrar, essa
mesma energia pode ser muito mais potencializada em brigas furiosas
dentro de relações lúcidas, quando ambos sabem que estão sonhando
juntos. Com amor e liberdade, dá até para brigar muito mais.
P.S. 2: Durante uma aflição, perceba seus olhos em estado REM (não é
por acaso que é este o estágio do sono no qual surgem os sonhos mais
nítidos e a atividade cerebral é praticamente idêntica à da vigília).
Olhe o absurdo da situação. O sofrimento cessa quando vemos que
estamos sonhando. Sem delusão, o sonho continua tão real quanto antes
(ou mais até), com a diferença de que agora ele é vivido como tal.
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