O impossível entre homens e mulheres

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Sep 4, 2008, 6:45:33 PM9/4/08
to Midiateca da HannaH
O impossível entre homens e mulheres


Sylvia Loeb


Freud via as mulheres como enigmas de difícil resolução, não conseguia
compreendê-las, comparava-as a um imenso continente africano, exótico,
diferente, intangível.

Um dia, desanimado, perguntou-se: “O que quer uma mulher?” Questão à
qual jamais logrou responder satisfatoriamente.

Almodóvar responde a essa questão no próprio título de seu último e
extraordinário filme: “fale com ela”, diz Almodóvar a Freud, “fale com
ela”.

Trata-se do último filme de Almodóvar. São quatro personagens
paradigmáticos da paixão humana: dois homens e duas mulheres.

Um dos homens, cujo nome é Benigno, é enfermeiro e cuida com devoção
absoluta primeiramente de sua mãe (que apenas aparece por uma fala no
filme) e depois transfere esse zelo a uma jovem que fazia aula de
dança em uma escola de balé em frente à sua casa e por quem se
apaixona perdidamente. Essa jovem sofre um acidente gravíssimo e entra
em coma, estado em que permanece por quatro anos. É onde encontramos
Benigno.

O outro homem é um jornalista que fica vivamente interessado numa
mulher que está sendo entrevistada na televisão. É uma toureira, que
encarna com a maior beleza e dignidade a máscara da tragédia e da
paixão. Essa mulher também entra em coma após um acidente gravíssimo
na arena, onde se deixa atacar pelo touro bravio.

No início do filme, os dois homens que não se conhecem, estão lado a
lado assistindo a uma apresentação de Pina Baush: duas mulheres
tristíssimas, absolutamente solitárias, soltas e perdidas num palco/
mundo mobiliado aleatoriamente de cadeiras, onde elas só não trombam
pela ação desesperada de apenas um homem, igualmente triste e
solitário que tenta abrir-lhes espaço. Mas trombam nas paredes, caem
no chão...num movimento contínuo de...desesperança.

Pina Baush sabe pegar no âmago...

O jornalista se emociona, Benigno, o enfermeiro nota o vizinho.

Os dois homens reencontram-se tempos depois no hospital, Benigno
cuidando da bailarina, em coma, o jornalista acompanhando a toureira,
também em coma.

E vamos acompanhando cada vez mais fascinados o desdobrar do filme, o
desdobrar da vida.

Almodóvar nos faz acompanhar por uma música maravilhosa, nos brinda
com um Caetano Veloso no auge de sua sensibilidade e faz ressuscitar
Elis Regina na alma da toureira.

E revela também, pela boca de Benigno, o desejo de toda mulher.

“A mulher precisa ser tocada, mimada, acariciada, você precisa falar
com ela, ouvir seus segredos... fale com ela....”

No seu estado paradisíaco de indiferenciação sexual, na sua
ingenuidade infantil, Benigno dedica-se de corpo e alma à adoração e
aos cuidados daquela mulher viva/morta. Mais do que isso, Benigno
realiza um dos sonhos mais secretos da mulher: o de ter um homem que
se dedique inteiramente a ela.

E essa linda mulher em coma, realiza um dos sonhos mais secretos do
homem: o de ter uma mulher absolutamente à sua mercê. Fantasias do
inconsciente mais profundo de cada um de nós, homens e mulheres,
fantasias essas às quais não temos mais acesso, mas que continuam a
fermentar em nossas almas.

Almodóvar, grande artista que é, ilustra magistralmente e com muito
humor a fantasia sexual infantil fundante do homem: o de ser
inteiramente engolido, engolfado pela Grande Vagina da Mulher.
Fascinação e medo desse imenso buraco negro, misterioso (o grande
continente africano) que pode aterrorizar o homem para o resto de sua
vida, minando uma relação de confiança com a mulher. Tudo em
maiúsculo, em contraste com a figura minúscula do minúsculo homúnculo.

Difícil, mais tarde na vida, o homem poder, de fato, entregar-se à
mulher...

Mas as coisas vão se complicando... assim como na vida...

As duas mulheres, em estado de coma profundo, parecem ser o paradigma
do talvez absoluto e intransponível abismo entre o homem e a mulher.
São dois mundos quase que radicalmente impossíveis um ao outro.

Quando a belíssima e trágica toureira se deixa matar, após ter reatado
com seu grande amor, ficamos em estado de choque. Por que ela se
deixou matar?

Em cenas anteriores, ela flertava com a morte, ela desafiava a morte.

Lá, no entanto, era mais fácil compreender, pois estava separada de
seu homem. A vida já não tinha valor algum em comparação com a perda
de seu amor.

Ela se deixa matar, porém, após o reatamento.

Só podemos compreender esse gesto como um ato de sacrifício ao amor.

Ela “sabia”, no mais recôndito de seu ser que amor algum vivido
poderia corresponder ao profundo anseio de amor que sentia, realidade
alguma poderia jamais corresponder à fantasia de gozo absoluto. Ela
sabia que seu imenso e trágico amor estavam fadados ao insucesso, como
os grandes e trágicos amores da literatura...e da vida...Romeu e sua
Julieta, Tristão e sua Isolda, o louco Otelo com sua trágica
Desdêmona... Só a também louca Suzane Louise não sabia disso...

O que Almodóvar nos conta é a grande história de amor impossível entre
homens e mulheres, é o grande manual de decifração das mulheres, é a
impossibilidade, a mais radical e absoluta, do encontro desejado,
perene e permanente.

E é também uma ode à vida quando recoloca frente a frente um homem e
uma mulher recomeçando uma vez mais e sempre, a recriação do mundo.

A vida chama, e o amor é a única e impossível saída.



Sylvia Loeb é psicanalista


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