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unread,Aug 16, 2008, 2:23:21 PM8/16/08Sign in to reply to author
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to Midiateca da HannaH
SEM CONTABILIDADE
Rubem Alves
Para escrever esta crônica eu preciso de dois fios que deixei soltos.
Porque eu escrevo como os tecelões que tecem seus tapetes trançando
fios de linha. Também eu tranço fios. Só que de palavras.
O primeiro fio saiu do corpo de uma aranha de nome Alberto Caeiro.
(Aranha, sim. Tecemos teias de palavras como casas de morar sobre o
abismo). Disse: “O essencial é saber ver. Mas isso exige um estudo
profundo, uma aprendizagem de desaprender. Procuro despir-me do que
aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e
raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...” Volta-me à memória
o meu amigo raspando a tinta das paredes da casa centenária que
comprara, tantas tinham sido as demãos, cada morador a pintara de uma
cor nova sobre a cor antiga. Mas ele a amou como uma namorada. Não
queria pôr vestido novo sobre vestido velho. Queria vê-la nua. Foi
necessário um longo strip tease, raspagens sucessivas, até que ela,
nua, mostrasse seu corpo original: pinho de riga marfim com sinuosas
listras marrom.
Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida afora até que memória não mais
existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscara de palavras.
Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.
Segunda aranha, segundo fio, Bernardo Soares: nós só vemos aquilo que
somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança,
que eles realmente vêem as coisas tais como elas são. Puro engano. Os
olhos são pintores: eles pintam o mundo de fora com as cores que moram
dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho trevoso vê mundo
negro.
Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se
interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura,
segundo mandamento, “não farás para ti imagem“, tendo sido proibido
até, com pena de morte, que o seu próprio nome fosse pronunciado. Mas
os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como
quem pinta casa. E a cada nova demão de tinta mais o mistério se
parecia com as caras daqueles que o pintavam. Até que o mistério
desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob as montanhas de
palavras que os homens empilharam sobre o seu vazio. Cada um pintou
Deus do seu jeito. Disse Ângelus Silésius: o olho através do qual Deus
me vê é o mesmo olho através do qual eu vejo Deus. E assim Deus virou
vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a
morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que
mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras,
guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o
pintaram.
E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco onde foram
pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Cruz
credo! Exorcizo. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser
bonito. Feio é o cremulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de
quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem
parescença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus é preciso
esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta...
Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa
ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus estava
morto. Claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de
horrores. Gritou que nós éramos os assassinos de Deus. Foi acusado de
ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas
máscaras para poder de novo contemplar o mistério infinito. Outro que
fez isso foi Jesus. “Ouvistes o que foi dito aos antigos; eu porém vos
digo...“ O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o deus
que Jesus via. O deus sobre que ele falava era horrível às pessoas
boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam
no Reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros
caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor valia mais do
que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus
não precisa de lugares sagrados - cada ser humano é um altar, onde
quer que esteja.
E ele fazia isso de forma mansa. Contava estórias. Uma delas, os
pintores de parede lhe deram o nome de “parábola do filho pródigo”. É
sobre um pai e dois filhos. Um deles, o mais velho, todo certo, de
acordo com o figurino, cumpridor de todos os deveres, trabalhador. O
outro, mais novo, malandro, gastador irresponsável. Pegou a sua parte
da herança adiantado, e se mandou pelo mundo, caindo na farra e
gastando tudo. Acabou o dinheiro, veio a fome, foi tomar conta de
porcos. Aí se lembrou da casa paterna e pensou que lá os trabalhadores
passavam melhor do que ele. Imaginou que o seu pai bem que poderia
aceitá-lo como trabalhador, já que não merecia mais ser tido como
filho. Voltou. O pai o viu de longe. Saiu correndo ao seu encontro,
abraçou-o e ordenou uma grande festa com música e churrasco. Para os
pintores de parede a estória poderia ter terminado aqui. Boa estória
para exortar os pecadores a se arrepender. Deus perdoa sempre. Mas não
é nada disso. Tem a parte do irmão mais velho. Voltou do trabalho,
ouviu a música, sentiu o cheiro de churrasco, ficou sabendo do que
acontecia, ficou furioso com o pai, ofendido, e com razão. Seu pai não
fazia distinção entre credores e devedores. Fosse o pai como um
confessor e o filho gastador teria, pelo menos, de cumprir uma
penitência. A parábola termina num diálogo suspenso entre o pai e o
filho justo. Mas o suspense se resolve se entendermos as conversas
havidas entre eles. Disse o filho mais moço ao pai: “Pai, peguei o
dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor. Tu és credor.“
Responde-lhe o pai: “Meu filho, eu não somo débitos.“ Disse o filho
mais velho ao pai: “Pai, trabalhei duro, não recebi meus salários, não
recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com
os meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor.“ Responde-lhe o seu pai:
“Meu filho: eu não somo créditos.“ Os dois filhos eram iguais um ao
outro, iguais a nós: somavam débitos e créditos. O pai era diferente.
Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender.
Ele não faz contabilidade. Não soma nem virtudes e nem pecados. Assim
é o amor. Não tem “porquês“. Sem-razões. Ama porque ama. Não faz
contabilidade nem do mal e nem do bem. Com um Deus assim o universo
fica mais manso. E os medos se vão. Nome certo para a parábola: “Um
pai que não sabe somar.“ Ou “Um pai que não tem memória“...