Solidariedade a Ronaldo e Hemingway

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May 17, 2008, 9:16:43 PM5/17/08
to Midiateca da HannaH
Solidariedade a Ronaldo e Hemingway
(15/05/08) São Paulo,
quinta-feira, 15 de maio de 2008

CONTARDO CALLIGARIS

A ILUSTRAÇÃO da coluna de Ancelmo Gois, no "Globo" da segunda-feira
passada, era a fotografia de uma "faixa de solidariedade" a Ronaldo,
pendurada perto do túnel Zuzu Angel, no pé da favela da Rocinha, no
Rio de Janeiro. A faixa dizia assim: "Ronaldo, a Rocinha acredita na
sua inocência, você sempre será nosso Fenômeno".

De que inocência se trata? Afinal, Ronaldo não é acusado de crime
nenhum. Segundo a versão inicial dos travestis com quem ele foi para
um motel da Barra, ele não teria aceito pagar o combinado e teria
encomendado droga para apimentar o encontro. Mas duvido que os autores
da faixa pensassem nessas eventuais "culpas" do jogador.

Igual, mesmo se uma parte qualquer da dita versão fosse verídica, por
que Ronaldo deixaria de ser o Fenômeno? Isso não deveria depender de
sua atuação no campo? O jeito de entender a inscrição do túnel Zuzu
Angel parece ser o seguinte: ao levar um travesti para um motel, o
jogador teria comprometido sua própria imagem ideal aos olhos dos
autores da faixa.

Para eles, o Fenômeno não é só jogador de futebol, ele é também o
macho ideal; a fim de continuar acreditando nesse ideal, eles precisam
proclamar a "inocência" de Ronaldo, ou seja, por exemplo, acreditar
que, se o jogador escolheu um travesti, foi por engano.

Acabo de ler "Strange Tribe" (estranha tribo -uma tradução em
português seria bem-vinda), de John Hemingway, neto do escritor Ernest
Hemingway. O livro está sendo transformado numa ópera, com libreto do
próprio autor e direção de Gerald Thomas (mais informações em
www.geraldthomas.blog.uol.com.br).

John Hemingway conta como ele conseguiu se salvar da espécie de
maldição que assolou a linhagem dos Hemingway: suicídios (a começar
pelo pai de Ernest e pelo próprio Ernest) e psicose maníaco-
depressiva. Em Gregory Hemingway, pai de John e filho de Ernest, as
oscilações entre depressões profundas e crises maníacas eram
complicadas por uma constante incerteza da identidade de gênero.

Gregory se sentia melhor quando se vestia de mulher. Essa fascinação
pela identidade feminina não implicava um desejo homossexual. Gregory
não parava de se apaixonar por mulheres e de cultuar os traços mais
óbvios da masculinidade americana (assim como ela havia sido
inventada, aliás, por Ernest, seu pai). Gregory amava caçar búfalos e
elefantes na África e viver na natureza selvagem do Estado de Montana
(onde, ao mesmo tempo, vestido de mulher, aventurava-se pelos bares).

Já na terceira idade, Gregory quis se tornar mulher. Passou um tempo
com o implante de um seio só; aliás, casou-se, pela quarta vez, em
1992, durante essa fase, já transformado parcialmente em mulher
(imagem exemplar de uma divisão impossível de ser resolvida). Em 1995,
Gregory completou as cirurgias necessárias para mudar de sexo. Não por
isso ele terminou seu casamento.

Ao longo do livro, John Hemingway descobre que a estranha divisão de
seu pai já estava em Ernest, o escritor, seu avô. Ernest aparece
vestido de menina em fotos de sua infância, e há, na obra do grande
escritor, passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam
são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria
mulher nos braços de sua amada.

Ernest Hemingway fez de sua vida uma espécie de protótipo de
hipervirilidade (boxeador, voluntário na Primeira Guerra,
correspondente na Guerra da Espanha e na Segunda Guerra Mundial,
aficionado por touradas, caçador, bebedor, pescador de alto-mar,
sempre apaixonado por mais uma mulher).

Talvez seu show de virilidade fosse uma maneira de conter a fascinação
pela feminilidade. Ou talvez sua androginia íntima fosse uma maneira
de fugir da mascarada masculina que havia erigido em regra de vida e
em ideal literário.Seja como for, o livro de John Hemingway é uma
leitura imperdível para quem queira entender um pouco a complexidade
da identidade de gênero. Mas, antes disso, é um extraordinário
documento sobre a dificuldade de ser homem, sobretudo quando a
identidade masculina se torna uma bandeira ou, como no caso de
Gregory, é transmitida e imposta como uma bandeira.

A história dos Hemingway não tem nada a ver com o episódio de Ronaldo.
Mas "ser Hemingway" ou ser "um Hemingway" deve ser tão difícil quanto
ser "o
Fenômeno" da faixa solidária do túnel Zuzu Angel.



Solidariedade a Ronaldo e Hemingway
Por CONTARDO CALLIGARIS
Leia na íntegra:
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=26139603&tid=5201408564696705506&na=4
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