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to Midiateca da HannaH
O AMOR COMO VÍNCULO
REFLEXÕES SOBRE OS VÍNCULOS L (AMOR) E -L (-AMOR)
Ney Marinho
1 - INTRODUÇÃO
Se falar sobre o amor é algo que atemoriza qualquer psicanalista
experiente, evitar o tema seria uma atitude pouco condizente com a
realidade de nossa experiência clínica cotidiana. Os motivos do
referido temor penso que se estendem desde o risco da banalização até
o do encontro com os limites da linguagem. No que diz respeito à
banalização, é do conhecimento de todos a vasta literatura sobre o
tema, geralmente desprezível, que reserva sòmente a gênios - como
Sócrates, Platão ou Shakespeare - a legítima autoridade para
esclarecer e aproximar-nos dos mistérios do amor. Acrescente-se que
mais do que a literatura, a própria vida dos homens se encarregou de
banalizar, confundir, mistificar, uma faculdade própria da espécie,
levando alguns ao ponto de questionar se existe tal coisa como o amor,
ou, se seria mais uma ficção criada pelos ociosos de todos os tempos -
filósofos, poetas, psicanalistas. Contudo, como um primitivo que é, o
amor bate à nossa porta quando menos esperamos e sua presença, ou
ausência, se impõe, prescindindo de definições ou apresentações
prévias. Na nossa prática cotidiana está presente desde a entrevista
inicial até o término da mais longa das análises, oculto sob sintomas,
"acting out", ou, por uma ausência constrangedora que marca um vazio
que tem sido objeto de muitos trabalhos recentes. Desta forma não vejo
como evitar o tema, mesmo sabendo que estamos nos limites da
linguagem, o que mencionei como a segunda ordem de temores e que
considero a mais importante.
1.1 - "O BANQUETE" - DIÁLOGO TERMINÁVEL/INTERMINÁVEL
É conhecido o convite que Agatão fez a seus amigos - Fedro, Pausânias,
Erixímaco, Aristófanes e Sócrates - a debater o tema, em comemoração à
sua vitória no concurso de tragédias. Deste encontro temos notícias
graças aos cuidados de Platão que o registrou em "O Banquete", texto
que há mais de dois mil anos nos ilumina. Tomaremos "O Banquete",
especialmente o discurso de Sócrates, como referência básica para tudo
o que for dito a seguir. Trata-se de um diálogo terminável/
interminável, dependendo da noção de "fim" que adotemos. Aproxima-se,
deste modo, do diálogo analítico: transita entre o conhecimento
("transformação em K") e a experiência pessoal inefável
("transformação em O"), sendo esta a nossa compreensão do silêncio de
Sócrates ante a insistência de Alcibíades em saber, apreender, o amor.
Difere de outros diálogos platônicos - como o Crátilo - que são
aporéticos, concluindo com uma necessária aporia, ou seja, duas
soluções conflitantes sem saída.
O discurso de Alcibíades ilustra a intolerância aos limites da
linguagem. A desmesurada ambição de Alcibíades foi por várias vezes
mencionada por Platão, a ponto de dizer, na República, que Alcibíades
queria edificar o estado antes de edificar o "estado dentro de si
mesmo". Tomo essa citação de Werner Jaeger ("Paidéia"), uma vez que
mostra de forma muito atual, para nós psicanalistas, a resistência em
permitir a "transformação em O", que muitas vezes fica obscurecida por
um aparente desejo de conhecer.
Ainda sobre "O Banquete", a aproximação que faço entre este diálogo e
o analítico, entendo-a da seguinte maneira: o texto de Platão pode ser
visto como um amplo painel sobre o amor, cada discurso tendo uma
autonomia e encerrando-se em si mesmo, ou, como uma sequência de
discursos que permitem uma "ascese" - a contemplação do belo, do bem,
do verdadeiro - personificada por Sócrates. A segunda possibilidade de
leitura nos coloca, de imediato, perante a questão da teleologia.
Restringindo-me ao campo psicanalítico, penso que é uma questão que
não pode ser evitada. Atribuir uma finalidade à Psicanálise traz uma
série de problemas, contudo, retirar esta dimensão da teoria
psicanalítica traz outros tantos. A noção de "fim" torna-se então
decisiva. Restringindo ainda mais nossas considerações, agora
exclusivamente ao domínio do amor (vínculo L), acho que posso passar
ao próximo tópico.
1.2 - A PSICANÁLISE E O AMOR
Freud, ao pensar a Psicanálise, tornou-se um legítimo convidado ao
"Banquete". Atualmente, é impossível falar sobre o amor sem ouvir o
que a Psicanálise tem a dizer. Entretanto, tal como ocorreu em relação
à Ética, à Estética e à Teoria do Conhecimento, a Psicanálise ampliou
nosso discurso mas não pretende responder às questões que esses temas
propõem, respeitando seus limites. Este é o nosso entendimento da
contribuição de Freud e de seus grandes seguidores - como Abraham,
cuja teoria da libido pode ser vista como uma rigorosa tentativa de
dar conta da história natural do amor objetal - dos quais vamos tomar
Bion como a principal referência.
A teoria da libido de Abraham, com sua classificação em diversas fases
e as equivalentes relações de objeto, tem uma forte conotação
teleológica. Sugere um desenvolvimento, uma meta para a libido e,
consequentemente, para o ser humano. É uma versão moderna de "ascese".
Melanie Klein segue na mesma direção, superando-a em certa medida, ao
formular as duas posições básicas - esquizo-paranóide e depressiva -
em função das correspondentes relações objetais. Tais teorias, muitas
vezes criticadas exatamente por esse viés teleológico, permitem
discursos coerentes sobre o amor, habilitando-se legìtimamente a
participar do ‘Banquete". Freud foi mais cauteloso sobre o tema: "...
We know too little of the nature of love to be able to arrive at any
definite conclusion here ...", diz ele ao falar sobre "O Homem dos
Ratos", ocasião em que cita o discurso de Alcibíades.
Em que pese minha concordância com Abraham e Melanie Klein, considero
que Bion trouxe na mesma linha, uma importante contribuição através
dos tipos de relação continente/contido, permitindo-nos pensar com
maior liberdade as relações de objeto. O pensamento teleológico não
fica afastado, uma vez que tudo indica ser uma forma necessária de
descrevermos os fenômenos mentais. Qualquer compreensão pressupõe
atribuirmos "metas", "desejos", "intenções". Um exame criativo e
rigoroso desta questão pode ser encontrado em "Explanation and
Understanding" (von Wright).
1.3 - A CONTRIBUIÇÃO DE BION. NOÇÃO DE VÍNCULO E DE TIPOS DE RELAÇÃO
Dada a finalidade deste texto, pretendo expor sumàriamente algumas
idéias sobre as noções de vínculo e de tipos de relação, a partir da
obra de Bion, que julgo úteis na clínica psicanalítica. O caráter
sumário, pode dar margem a mal-entendidos. Na tentativa de superá-los,
anexo um Apêndice, onde procuro desenvolver certos pontos.
Foi a partir da análise de pacientes psicóticos que a importância do
estudo dos vínculos entre objetos, quaisquer que eles sejam (idéias,
sentimentos, figuras internas, relações externas, paciente/analista,
palavra/ significado e assim por diante), se impôs a Bion. Isto aponta
para nossas regiões abissais. Falar de vínculo é falar de algo
primitivo - tanto no sentido filo e ontogenético como no sentido
lógico - de algo básico para o funcionamento mental assim como para a
sua descrição. Os vínculos - Conhecimento (K), Amor (L) e Ódio (H) -
propostos por Bion, funcionam como termos primitivos de seu sistema.
Desta forma, não permitem definições precisas , mas pedem uma
reflexão. Tem a vantagem de ser econômicos - são apenas três - e de
uma abrangência que possibilita uma utilização para qualquer
referencial psicanalítico.
Relacionarei neste texto a noção de vínculo a de tipos de relação.
Penso que os vínculos que Bion propõe: K, L e H e suas contrapartidas,
pela ação da pulsão de morte, -K, -L e -H, determinam os tipos de
relação continente/contido entre os objetos psicanalíticos. Utilizarei
a última formulação de Bion sobre os tipos de relação, descrita em
"Atenção e Interpretação", por considerá-la a mais rica para futuros
desenvolvimentos. No Apêndice desenvolvo os motivos de tal escolha. No
texto mencionado ele descreve: "Por ‘Comensal’ entendo um
relacionamento em que dois objetos compartilham um terceiro para
vantagem dos três. Por ‘Simbiótico’ entendo um relacionamento em que
um depende do outro para vantagem mútua. Por ‘Parasítico’, pretendo
apresentar um relacionamento em que um depende do outro para produzir
um terceiro, que destrói os três". (Atenção e Interpretação, cap. 10).
2 - O VÍNCULO L
André Malraux - em "A Condição Humana" - descreve um episódio, no qual
Kyo - personagem central do romance - ouve de sua amante (May) que
esta o traíra com um antigo amigo que se encontrava prestes a morrer.
A cena se passa enquanto ambos - Kyo e May - aguardam as instruções
para iniciar o levante de Shangai, episódio que, na realidade, Malraux
presenciara em 1927, chamando-lhe a atenção um jovem - líder do
movimento e que mais tarde, segundo alguns biógrafos do autor, será
identificado como o ilustre Chou-en-Lai. As mesmas fontes sugerem que
o trecho a ser discutido teria caráter autobiográfico. As relações
entre arte/vida se evidenciam, daí nossa escolha desse texto.
Voltando aos nossos personagens: Kyo recebe, com aparente indiferença,
as palavras de May. Afinal, ambos revolucionários, engajados numa luta
de vida ou morte, tinham um pacto entre si de maior respeito possível
pela liberdade de cada um, não havendo lugar para rasteiros
sentimentos, como no caso, o ciúme. Contudo, a aguçada sensibilidade
de Kyo se impõe às sofisticadas intelectualizações do jovem político,
saturado de concepções científicas sobre os homens e sua história. Uma
sucessão de pensamentos e emoções ocorrem. Malraux as acompanha com
aquela intimidade que nos é vedada e, assim, permite que nos
aproximemos de certas experiências emocionais que o trabalho cotidiano
nos insinua e a literatura psicanalítica, na tosca linguagem
científica, tenta descrever em certos trabalhos obscuros, talvez,
pelos mesmos motivos que num primeiro momento turvaram Kyo. Vejamos o
que Malraux nos conta:
"... Ele continuava contudo a olhá-la, a descobrir que ela podia fazê-
lo sofrer, mas que há meses, olhando-a ou não, ele não mais a via;
algumas expressões, por vezes ... Este amor frequentemente tenso que
os unia como uma criança doente, este sentido comum de suas vidas e de
suas mortes, este acordo carnal entre eles, tudo desaparecia diante da
fatalidade que embaça as formas que saturam nossa visão. ‘Eu a amaria
menos do que penso ?’, indaga-se Kyo. Não. Mesmo neste momento, ele
estava certo de que se ela morresse ele não serviria mais à sua causa
com esperança, mas com desesperança, como se ele mesmo tivesse
morrido. Nada, contudo, prevalecia contra o empalidecimento desta
figura enterrada no fundo de suas vidas em comum como na bruma, como
na terra. Ele se recordou de um amigo que viu morrer a inteligência da
mulher que amava, paralisada por meses; parecia-lhe ver morrer May
assim, ver a forma de sua felicidade desaparecer absurdamente, como
uma nuvem que é reabsorvida no céu cinzento. Como se ela houvesse
morrido duas vezes, pelo tempo e pelo que ela lhe dizia."
May pondera, no diálogo que se segue, a pouca importância do fato, uma
vez que todos - ela, Kyo e o velho amigo - vivem momentos tão próximos
de uma morte iminente. A insurreição está prestes a eclodir e May
trabalha como médica, num hospital que recebe diàriamente feridos
graves da guerra civil que se aproxima de Shangai. Acompanhando
Malraux:
"Entretanto, o ciúme existia, ainda mais perturbador uma vez que o
desejo sexual que ela inspirava repousava sobre a ternura. Os olhos
fechados, sempre apoiado sobre o cotovelo, Kyo buscava - triste tarefa
- compreender ..."
"... O essencial, aquilo que o perturbava até a angústia, é que ele
estava subitamente separado dela, não pelo ódio - se bem que havia
ódio nele - não pelo ciúme (ou ciúme não seria precisamente isto ?);
por um sentimento sem nome, tão destrutivo quanto o tempo ou a morte:
ele não a reencontrava." Kyo rememora May e continua:
"... Não se esquece o que se quer. Contudo, este corpo reencontrava o
mistério pungente do ser conhecido subitamente transformado - do mudo,
do cego, do louco ... E era uma mulher. Não um grande homem. Outra
coisa ..."
Há uma tentação de escapar à "triste tarefa de compreender", através
do contato sensorial, sensual, entre os amantes.
Mais adiante, seguindo para o levante, Kyo pensa: "Ainda há pouco, ela
me parecia uma louca ou uma cega. Eu não a conheço, senão na medida em
que a amo, senão como a amo. Não se possui um ser, senão aquilo que se
pode mudar nele, diz meu pai ... E daí ? ... ‘Ouve-se a voz dos outros
com os ouvidos, e a própria com a garganta’. Sim, sua vida também é
ouvida com a garganta, e a dos outros ? ... Para os outros eu sou
aquilo que faço." Para May, somente, ele não era aquilo que ele fazia,
para ele, somente, ela era muito diferente de sua biografia. A ligação
pela qual o amor mantém os seres colados uns aos outros contra a
solidão, não era ao homem que ela trazia alívio; era ao louco, ao
monstro incomparável, preferível a tudo, que todo ser é para si mesmo,
e que ele mima em seu coração. Desde que sua mãe morrera, May era o
único ser para o qual ele não era Kyo Gisors, mas a mais estreita
cumplicidade. ‘Uma cumplicidade consentida, conquistada, escolhida’,
pensava Kyo, extraordinàriamente de acordo com a noite, como se seu
pensamento não fosse possível à luz. ‘Os homens não são meus
semelhantes, eles são aqueles que me olham e me julgam; meus
semelhantes são os que me amam e não me olham, que me amam apesar de
tudo, que me amam apesar do fracasso, apesar da baixeza, apesar da
traição, eu e não aquilo que fiz ou farei, que me amariam tanto quanto
eu me amaria a mim mesmo - até o suicídio, inclusive ... Somente com
ela eu tenho em comum este amor, despedaçado ou não, da mesma forma
que outros têm juntos filhos doentes que podem morrer ...’ Isto não
era a felicidade, mas qualquer coisa de primitivo que combinava com as
trevas e fazia subir-lhe um calor que terminava numa ligação imóvel,
como de um rosto contra outro rosto - a única coisa nele que fosse tão
forte como a morte."
Deixarei os comentários sobre este texto para a respectiva nota, dadas
as inúmeras questões que levanta. Para uso imediato, registro apenas
como a predominância do vínculo L permite conter o ódio e propiciar o
exercício da capacidade de pensar. Dentro da proposta de investigar os
vínculos em jogo e os tipos de relação, conjecturaria que, sob uma
situação dolorosamente frustrante, a ação do vínculo L permitiu "a
triste tarefa de compreender", magnìficamente descrita por Malraux.
Deste ponto de vista, vejo uma evolução de uma relação simbiótica para
uma comensal, desempenhando a reflexão o papel do terceiro que
beneficia os três. Julgo que o texto transcrito, que tomo como
categoria C, utilizando-o como uma notação, equivalente a um relato
clínico, fornece elementos para fundamentar nossa distinção entre
relações simbiótica e comensal, além de ilustrar a relação entre a
posição depressiva e o desenvolvimento da capacidade de pensar.
3 - O VÍNCULO -L
O paciente foi levado à análise graças a uma irmã que convenceu os
pais a procurarem um psicanalista antes de tomarem qualquer atitude:
interná-lo, tirá-lo de alguma forma de casa, ou, outras. O paciente,
um homem de cerca de 35 anos, se constituia num grave problema para a
família. Desde o primário, acentuando-se no fim do primeiro grau, sua
atitude era de permanente inquietação, falando muito, relutando em
seguir as normas disciplinares e sempre questionando os professores.
Tornou-se o "pele" da turma. Seus colegas aproveitavam de sua
permanente excitação para provocá-lo e fazer bagunça. O paciente
aceitava bem esse papel e, por não se mostrar abertamente agressivo,
era tolerado no ambiente e assim concluiu o segundo grau. Não
conseguiu ingressar numa universidade e, provavelmente, pelo que
deduzí dos relatos, seus distúrbuios de pensamento se acentuaram e se
mostraram incompatíveis com uma atividade educacional de nível
superior. A possibilidade de trabalhar também foi obstruida por não
conseguir atender a qualquer disciplina, quer de horários, quer de
cumprimento de normas. Estas não eram simplesmente desobedecidas, mas
criava as suas que julgava melhores e ante alguma ponderação
argumentava sempre acerca das vantagens de suas propostas. Esta
atitude se tornou frequente no cotidiano da vida. Houve algumas
tentativas intermitentes de tratamento psiquiátrico, sem continuidade
ou êxito.
Ao chegar à análise o que mais intraquilizava a família era seu
comportamento: transformara-se numa figura folclórica do bairro. Usava
roupas infantís - calça curta, tênis e meias brancas de cano longo que
lhe davam uma aparência de adulto fantasiado de criança, como ocorre
em blocos carnavalescos. Ostentava um aderêço, do qual não abria mão,
na camisa. Este objeto não era em si extravagante, porém seu uso
constante com qualquer roupa, chamava atenção. Em suma, tanto o
objeto, como a aparência e o próprio paciente, formavam um conjunto
bizarro. Não tinha horários para o sono e a alimentação. Parecia
dormir por exaustão. Durante o dia, ou melhor, a vigília, fazia
pagamentos e pequenos serviços para a família e o restante do tempo
passava deambulando. Como não usava ônibus, fazia diariamente longas
caminhadas, às vezes, atravessando dois ou três bairros. Durante muito
tempo andava dez quilômetros para vir ao consultório e mais quatro
para chegar em casa. Contudo, era assíduo e pontual !
Sua atividade mental era absorvida pela elaboração de planos
econômicos para controlar a inflação e promover o desenvolvimento do
país, além de certas invenções. Estas, muitas vezes, registradas em
desenhos geométricos, consistiam em novos modelos de carros, aviões,
helicópteros ou técnicas de construção que projetavam importantes
melhoramentos - como a criação de uma rede elétrica sem fiação - sem,
contudo, haver qualquer preocupação com a exequibilidade do invento.
Em resumo: seus inventos eram úteis, propícios ao conforto e mesmo à
justiça social, pecando apenas pelo desprêzo do detalhamento que
reconheceria o Princípio de Realidade.
Há inúmeros outros dados da psicopatologia do paciente que vou omitir
a fim de focalizar o ponto de urgência, para a família e o ambiente
social, que também interessa à nossa discussão sobre o vínculo L e
suas vicissitudes, como a de tornar-se -L.
Refiro-me ao fato do paciente provocar frequentes incidentes na rua,
na vizinhança e no bairro, em especial. A origem desses incidentes se
radicava no fato do paciente desejar que todos obedecessem à lei, em
particular, às leis do trânsito. Assim, carros estacionados na
calçada, avanços ocasionais de sinal, ou o não-uso do cinto de
segurança eram motivo de longas discussões com os infratores. A
argumentação do paciente a respeito era a mais coerente e consistente
possível, embora não razoável. Esta afirmação mereceria uma longa
discussão que não cabe neste momento. O que é e o que não é razoável ?
Qual o papel da razão nas relações ? A razão como elemento da
Psicanálise, segundo Bion sugere.
Um fragmento de sessão analítica, penso ser suficiente para ilustrar o
nosso entendimento do vínculo -L, que é nosso objetivo ao trazer esta
experiência clínica.
O paciente chega muito atrasado (cerca de 25 minutos). Sua aparência
chama atenção: roupas brancas, calças curtas, tênis, meias de cano
longo (não usa mais o tal objeto acima referido) e um corte de cabelo
quase "em cuia" (em sessão anterior informou que, ao tentar acertar as
costeletas, foi cortando o cabelo até atingir a região frontal).
Entrou falando, frases soltas, tipo: "... Bem ... como vai ? ... Eu
vou bem ..." Puxa uma cadeira e senta-se à minha frente, continuando a
falar. "Eu não tenho amigos ... falei ontem com minha tia. Ela me
disse que se eu tivesse amigos eu melhorava o meu visual ..." Passa a
falar em dores nas articulações, achando que é um problema dos
ligamentos.
Começo a falar que os ligamentos permitem a articulação dos ossos,
permitem que eles trabalhem juntos. A esta altura ele me interrompe e
diz: "... não, ligamentos que falam ..." Digo que ele tem razão que
estamos falando sobre a relação entre as pessoas, como sente que é
necessária mas dolorosa. Até aqui, para trabalharmos juntos. Parece
concordar, pelo silêncio atento que faz e, juntamente com várias
expressões faciais de sofrimento, diz: "... eu não gosto das
pessoas ... se eu arranjasse uma namorada eu acho que tudo melhoraria.
Eu teria um estímulo, ânimo para fazer as coisas." Passa a exaltar a
importância das relações amorosas na vida. Levanta-se e anda,
gesticulando como um orador caricato. Ora faz expressões de dor e
preocupação. Chamo sua atenção para o drama que está me mostrando: não
gostar das pessoas e sentir falta de uma namorada, de uma mulher que o
ame, talvez, de alguém que goste dele apesar dele não gostar das
pessoas.
A sessão prosssegue com o paciente contando duas estórias, numa das
quais está dirigindo um carro e expondo os pais a perigo. A outra
refere-se à falta de sintonia nas relações. Parece-me uma alusão ao
temor de assumir a responsabilidade pelas relações, podendo destruir o
casal, com seus impulsos sádicos. Certamente um risco que nós dois
estaríamos correndo ali. Não pretendo continuar o relato da sessão que
levanta outras questões relacionadas à análise de psicóticos. Gostaria
de comentar apenas o que entendo, clìnicamente, como o vínculo -L.
Os planos econômicos, as invenções, assim como o alertar as pessoas
quanto à importância do cumprimento da lei, não tenho maiores dúvidas
que se tratam de manifestações amorosas, na medida em que exprimem
vínculos com as demais pessoas. Contudo, a ação permanente da pulsão
de morte mutila o exercício da pulsão de vida. Em consequência, há
falta de sintonia, mal-entendidos, exigências que transformam a
ligação amorosa em -ligação amorosa, o que não significa ódio, embora,
o mesmo vá surgir quer no paciente quer em seu interlocutor. Este - o
ódio - não é sentido, pelo paciente, como tal, mas como incompreensão.
Está aberto assim o caminho para a desesperança.
É natural que surja a questão: qual a vantagem de falarmos em -L em
vez de H ? Penso que estaríamos mais próximos da verdadeira
experiência emocional do paciente, ou seja, do drama que vive: amar
sem quaisquer das características que acompanham o amor. A meu ver, a
incompreensão desse aspecto, dada a pequena tolerância à frustração
desses pacientes, leva ao desentendimento e instaura-se um círculo
vicioso por aumento da identificação projetiva. Outro ponto: -L
vincula sem harmonia, daí a falta de sintonia que tais pacientes
despertam. A harmonia parece ser uma função de L, como veremos adiante
ao discutirmos as idéias estéticas.
O exame de uma outra sessão nos permitirá uma investigação mais
detalhada dos fatores que determinam o vínculo -L. Eis um sumário da
sessão:
Encontro o paciente na sala de espera, de pé, parecendo aguardar um
imediato atendimento. Está de bermudas, tênis, meias brancas, camisa
combinando com a roupa e bem penteado. Cumprimentamo-nos.
No consultório, senta-se defronte de mim e passa a falar da atual
situação econômica do país. Fala com tranquilidade, descrevendo como o
mundo "deve ser". Chamo-lhe atenção para isto: "a vida deve ser
assim". Concorda e continua. Mostra-se contrário a qualquer oposição
ao governo ou a seus pontos de vista que julga serem os únicos capazes
de promover desenvolvimento e justiça social. Fala como se respondesse
a possíveis oponentes. Falo que qualquer diferença parece ser um
conflito. Concorda, mas corrige: "é (enfaizando o "é") um conflito".
O paciente continua a falar e vou sentindo-me inundado por um discurso
coerente mas inesperado para uma sessão de psicanálise. À certa altura
digo-lhe que ele espera que eu concorde com ele, que todos concordem
com ele. A isto o paciente replica: "mas todo mundo é um". Começo a
dizer-lhe que este seria o drama que me descreve. Contudo, não consigo
prosseguir, pois, o paciente se levanta e debruça-se sobre mim,
explicando as vantagens da uniformidade. Mostro-lhe que a aproximação
física é a sua maneira de exprimir esta necessidade de uniformidade,
de fusão. Passa então a andar pelo consultório e a falar dos pais e do
desejo de ter uma namorada, o que sua mãe julga inconveniente. Fala
que o tratam como disrítmico, doente, esquizofrênico. Falo que a falta
de rítmo, de sintonia com as pessoas quebra o seu desejo de
uniformidade e desperta raiva. Concorda. Acrescento que qualquer
separação desperta raiva, ao que me responde: "até o casamento é uma
separação". Ao mesmo tempo continua falando querer ter mulher e
filhos. Ao verificar estar próximo o final da hora, diz: "Quanto a
mim ... estou tranquilo, dormindo, relaxando, fazendo o curso de
parapsicologia". Penso num projeto - ou não seria a própria
experiência de fusão que estaria me relatando ? - de tornar-se
psicanalista. É uma idéia vaga que me ocorre, mas não comento, pois, o
paciente continua falando e a hora termina. Ao se levantar me indaga
se acho que está evoluindo desde o dia em que o conheci.
A respeito desta experiência clínica gostaríamos de sublinhar dois
aspectos:
A intolerância à separação expressa de várias formas, sobretudo, na
dificuldade em reconhecer a alteridade, leva a uma não-distinção self-
objeto, a um ataque à noção de tempo e espaço, em suma, ao que Bion
descreve como um distúrbio da noção de dualidade ( "twoness"). "Todo
mundo é um ... até o casamento é uma separação". O paciente de uma
forma muito direta nos coloca perante o problema que aflige aqueles
que não suportam o pensar, "a
triste tarefa de compreender", que exige o reconhecimento da
diferença, da frustração.
Outro aspecto que é comum na análise de psicóticos, consiste na
irrupção de "pensamentos" inesperados, fenômeno que mereceria um
estudo específico. Vemos, na primeira sessão descrita, como o paciente
nos interrompeu, falando de "articulações que falam ..." e, na outra,
o comentário de que "... até o casamento é uma separação". Tudo isto
nos soa como formulações muito sofisticadas, inesperadas de pessoas
tão comprometidas em seu desenvolvimento mental. Isto nos faz pensar
em pensamentos que foram captados sem um aparelho capaz de elaborá-
los. Seria uma apresentação de "pensamentos sem pensador"? Fica a
questão.
4 - DE VOLTA AO BANQUETE. A NOÇÃO DE GÊNIO
EM PLATÃO, KANT E BION
Retornando ao "Banquete", vamos examinar uma noção que Platão introduz
- a noção de gênio (dáimon) - que nos parece muito útil para a
compreensão do amor como vínculo.
Nos versos de 202d a 204c, Diotima após levar Sócrates a concluir que
o amor não é belo, nem sábio, nem bom, embora isto não signifique que
seja feio, ignorante e mau, procura esclarecer a perplexidade do
filósofo. É então que desenvolve a noção de intermediário, daquele que
está entre os deuses e os mortais: o gênio. Prossegue, lembrando a
Sócrates a origem de Eros: filho de um deus (Poros ou Recurso) e uma
mortal (Penia ou Pobreza), concebido no natalício de Afrodite, durante
o festim dos deuses.
Com o surgimento do gênio fica superado o impasse epistemológico da
pretensão de conhecermos um Deus (Idéia, essência, "coisa-em-si").
Esse elemento intermediário - o gênio - por sua origem híbrida, humana
e divina, se não nos permite que conheçamos sua intimidade, revela-nos
sua função: "... a de interpretar e transmitir aos deuses o que vem
dos homens, e aos homens o que vem dos deuses ... e como está no meio
de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si
mesmo (202e)." A função de vincular aparece aqui com toda a sua fôrça.
Sugerimos agora acompanhar a idéia de gênio, e sua função vinculadora,
em outro autor que até o fim de sua longa e criativa vida enfrentou as
mesmas questões: Kant.
Se o conhecimento do mundo, da natureza, fora exaustivamente
investigado em suas condições de possibilidade, na "Crítica da Razão
Pura" e a possibilidade de uma ética, de uma investigação das ações
humanas, crítica e consistente, fora estabelecida na "Crítica da Razão
Prática", restou para Kant, no final de sua obra, enfrentar o desafio
da estética. Falar em "restou" é simplificar demais a questão, pois, o
empreendimento que resultou na "Crítica da Faculdade de Julgar"
integra e dá novo sentido às demais. É um trabalho de Eros.
Como avaliar a afirmação de que algo é belo ? qual o valor e estatuto
de tais juízos ? Toda uma gama de questões desenvolve Kant em sua
última Crítica. E é nela que vamos reencontrar a idéia de gênio. Para
Kant, gênio é a faculdade das idéias estéticas. É o talento (dom
natural) que dá regras à arte. A necessidade de introduzir a noção de
gênio veio da impossibilidade de reduzir o objeto estético a uma
determinação do entendimento. Não podemos "a priori" determinar o
objeto estético. Este é fruto da livre harmonia da imaginação e do
entendimento. É singular, original, sendo em consequência seu
produtor, o gênio, o oposto do "espírito de imitação". No correr do
seu exame do gênio vão sobressaindo-se certas características que
apontam para a individualidade e a comunicabilidade. Este último
aspecto é que vai permitir a Kant fazer a aproximação entre ética e
estética. A obra de arte pressupõe um "sensus communis", que lhe dá a
universalidade. A noção de humanidade é derivada dessa pressuposição
de um "sensus communis".
Vemos assim que o gênio é a faculdade que permite o vínculo, a
harmonia (entre imaginação e entendimento) e a comunicação (a ligação
entre os homens). Nesse sentido é que aproximamos o "dáimon" platônico
do gênio kantiano e os identificamos como função de Eros. Gostaria de
ressaltar o desenvolvimento de Kant ao assinalar "a ligação
harmônica", lembrando que no caso clínico que descrevi havia ligação,
mas não harmonia, daí a falta de sintonia e a incomunicabilidade.
Vejamos agora, através de outro grande pensador, como a Psicanálise
pode contribuir para este debate, para a investigação do intermediário
entre os deuses e os homens, relações tradicionalmente tensas.
Bion discute tais questões em "Atenção e Interpretação" (cap. 7). A
noção de gênio surge como análoga a de místico ou idéia messiânica.
Não importa para o exame que propõe, tratar-se de uma pessoa ou de uma
idéia. Discute ele as relações entre esta idéia/pessoa messiânica e o
continente que a contém (grupo/instituição/personalidade). O gênio
mais uma vez é o que permite o contato com a divindade, ou seja, com o
que é passível apenas de experiência transformadora - "O"- não sendo
passível de conhecimento. Evoca Bion a mitologia para lembrar-nos do
estágio de indiferenciação homem/deus. Mostra os variados papéis do
grupo: conter, destruir, aprisionar e, ao mesmo tempo, criar o gênio/
místico/idéia messiânica. Deve também o grupo ou instituição permitir
ao homem comum o acesso à deidade, a Freud, à Psicanálise. A principal
contribuiição de Bion, neste momento pelo menos, ao tema do gênio, é a
necessária tensão que ele guarda com o que o contém, dependendo seu
destino - criativo ou destrutivo - das relações estabelecidas
(parasítica, simbiótica ou comensal).
No início de nosso texto falamos dos limites da linguagem como um dos
obstáculos na investigação do amor. Só a linguagem promove
conhecimento. Este parece ser o drama de Eros: não podemos conhecê-lo,
sequer identificá-lo com precisão. Sua presença é inferida pela
função: vincular harmônicamente, permitir a comunicação. Tudo isto nos
leva de volta à questão da linguagem. A liguagem própria para tratar
desses temas Bion chamou: Linguagem de Êxito.
Notas
Este Apêndice é composto de "Notas" que procurarão suprir as
deficiências do texto relacionadas à limitação do tempo disponível
para sua apresentação. Este trabalho foi apresentado, em uma forma
condensada, na Conferência Comemorativa do Centenário de Bion (Torino,
julho/97). Contudo, não tenho dúvidas de que não suprirão deficiências
de outra natureza. Refiro-me, sobretudo, às resultantes de desenvolver
uma questão que milenarmente provoca mal-entendidos ou banalizações.
Certamente estas "Notas" levantarão novas questões, o que me parece
ser o propósito de qualquer encontro científico. Aproveito para
agradecer aos colegas que comentaram o texto e, em especial, a Robert
Caper e Fernanda Marinho que com suas críticas e comentários ajudaram-
me a desenvolver vários pontos, antes obscuros pela condensação já
mencionada.
Seguirei a numeração do texto para facilitar o entendimento das
"Notas", cada nota se refere a uma das seções do trabalho.
1 - A referência aos trabalhos sobre "o vazio" pode ser ilustrada no
texto: "Em Busca do Vazio Perdido" (Fernando Coutinho, apresentado no
XV Congresso Braisileiro de Psicanálise, biblioteca SBPRJ). O autor
aborda o que tem sido chamado de "a clínica do vazio", tomando como
principal referência certas idéias de André Green, com as quais
concordo plenamente, como a função desobjetalizante da pulsão de
morte. A "clínica do vazio" seria formada por pacientes que vêm à
análise com queixas vagas e um sentimento de falta de interesse,
paixão, por atividades ou pessoas. Interessante é que tais estados são
referidos pelos pacientes como "queixas". Estariam tais casos no
domínio de -L, sendo que (-) representaria então uma deficiência ?
Embora concorde com a observação clínica, em meu texto não sigo esta
linha e sim a de -L como uma vicissitude de L, uma "mutilação" de L
pela ação da pulsão de morte. A ausência de L é apenas aparente. Se
levarmos adiante a analogia com a álgebra, que a notação de Bion
insinua, podemos ver que um número (x) não perde as suas propriedades
pelo fato de lhe atribuirmos o sinal +, ou, o sinal - ; continuando a
ser ímpar ou par, representar tal ou qual magnitude. Prefiro pensar na
noção de "mutilação". A noção de "mutilação" surge, em Bion, no
trabalho "Desenvolvimento do Pensamento Esquizofrênico" (1956) (in,
"Second Thoughts", Heinemann, London), ao descrever a transferência em
pacientes psicóticos. Mais adiante, em "Sobre Alucinação" (1958) (in,
"Second Thoughts"), faz uma clara descrição do que entendo vir a ser -
L, ao final do parágrafo 80. Voltarei a este ponto ao discutir o caso
clínico.
O tema dos limites da linguagem em Psicanálise, a meu ver, é uma
preocupação constante de Bion, expressa abertamente em "Atenção e
Interpretação" (cap. 13). Minha reflexão no texto está na mesma linha
da de Meltzer(1986),("The Limits of Language", in Studies in Extended
metapshycology, London, Clunie Press), que utiliza uma diferenciação
proposta por Wittgenstein,(1921)(in,"Tractatus Logicus Philosophicus",
London, Humanities Press) entre "dizer" e "mostrar". Desenvolvi este
tema num trabalho para o XV Congresso Brasileiro de Psicanálise
("Limites da Psicanálise em Situações-Limites", bilbioteca da SBPRJ).
No caso clínico que agora apresento, apesar do paciente possuir uma
grande fluência verbal, seus gestos e movimentos "mostram" mais do que
o seu discurso "diz". Neste sentido há um verdadeiro contraste com a
reflexão do personagem de Malraux - Kyo - que dispensa a "performance"
tão necessária ao paciente. Penso que todos nós estamos sujeitos a
essa limitação, tal como Wittgenstein nos aponta. Embora saibamos que
Wittgenstein abandonou a tentativa de alcançar uma linguagem
lògicamente perfeita, evoluindo para uma concepção pragmática de
significado em suas últimas obras, 1945 ("Philosophical
Investigations", New York, Macmillan), criando a noção de "jogos de
linguagem", vale a pena recordarmos as palavras de Bertrand Russell no
prefácio do "Tractatus":
"A questão essencial da linguagem é afirmar ou negar fatos. Dada a
sintaxe de uma linguagem, o significado de uma sentença é determinado
uma vez que o significado das palavras componentes é conhecido. A fim
de que uma sentença possa afirmar um certo fato deve haver, qualquer
que seja a linguagem construida, algo em comum entre a estrutura da
setença e a estrutura do fato. Esta é talvez a mais fundamental tese
da teoria de Mr. Wittgenstein. Aquilo que deve ser comum entre a
sentença e o fato não pode, assim ele defende, ele mesmo ser "dito" na
linguagem. Pode, em sua fraseologia, ser somente "mostrado", não dito,
pois o que quer que possamos dizer necessitará ainda ter a mesma
estrutura."
Vemos, deste modo, que estamos permanentemente lidando com um aspecto
incognoscível - a invariante sentença/fato - o que para muitos
pacientes é intolerável. Através do discurso de Alcibíades procurei
ilustrar tal situação.
1.1 - Sobre a ambição de Alcibíades, que aponta para a voracidade como
um dos fatores da intolerância aos limites do conhecimento, lembro o
recente livro de Jacqueline de Romilly (1995, "Alcibíades ou Os
Perigos da Ambição", Ediouro, Rio). O ponto que me interessa neste
momento é chamar atenção para o caráter voraz do amor de Alcibíades
que não se satisfaz com os ensinamentos de Sócrates, deseja-o como
amante numa tentativa desesperada da alcançar algo que, contudo, a
experiência sensorial não fornece, apenas propicia. Entendo que a
recusa de Sócrates às investidas do jovem e belo Alcibíades é análoga
à recomendação de Freud quanto à não gratificação sensorial no
"setting" analítico.
1.3 - Utilizo a última conceituação que Bion faz em "Atenção e
Interpretação" da relação comensal, por julgá-la fruto de uma
elaboração e um amadurecimento destes conceitos em sua obra. Tenho
conhecimento que não é frequente esta utilização, por este motivo vou
tentar esclarecê-la: nesta nova concepcão de relação comensal, Bion
abre espaço para um terceiro "para vantagem dos três". Sublinho este
aspecto, pois, parece-me a situação propícia para o "pensamento sem
pensador", uma vez que o terceiro guarda a meu ver uma certa autonomia
em relação ao par - continente/contido. É conhecida, desde 1967
("Second Thoughts"), a necessidade que Bion encontrou em postular a
independência dos pensamentos em relação a um pensador ("... Tivesse a
experiência que agora tenho, daria maior relevo, no parágrafo 98, à
importância de se duvidar de que é necessário haver um pensador em
razão de os pensamentos existirem. Para o devido entendimento da
situação que se configura quando se efetuam ataques ao processo de
ligação, é útil postular a existência de pensamentos sem nenhum
pensador.", in "Second Thoughts"). Julgo importante registrar que tal
necessidade teve também Frege, ao rever seu sistema lógico, em suas
últimas obras, como: "The Thought - A Logical Inquiry" (1923) (in,
"Logical Investigations" Oxford, Basil Blackwell). Neste texto, Frege
faz uma distinção entre "idéia" e "pensamento", desenvolvendo
importantes implicações de tal análise. Para citar apenas uma: "When a
Thought is grasped, it at first only brings about changes in the inner
world of the one who grasps it; yet it remains untouched in the core
of its essence, for the changes it undergoes affect only inessential
properties." Estes comentários, vindos de um rigoroso lógico que
marcou em sua obra a distinção entre Psicologia e Lógica, convergem
para nossa observação, como psicanalistas, do tumulto que consiste em
abrigar idéias novas, melhor dizendo, pensamentos à procura de um
pensador. Um exame mais detalhado deste trabalho de Frege, assim como
das contribuições de von Wright, publiquei num texto que se encontra
na biblioteca da SBPRJ: "A Noção de Pensamento nas Investigações
Lógicas - Frege (1918/23)" e "Notas sobre `Compreender e Explicar’ em
Jaspers e von Wright".
2 - A utilização de um texto literário, como o de Malraux, reconheço
que traz uma gama de questionamentos. Em primeiro lugar, de ordem
ética, uma vez que como foi dito sabemos tratar-se de um relato auto-
biográfico. Contudo, acredito que a generosidade que marcou a vida de
Malraux nos permite tal utilização, principalmente, após a publicação
do diário de Clara Malraux que autentica a passagem citada. Outra
questão, não menos importante, refere-se às relações arte/vida.
Poderíamos, com aparente razão, sermos acusados de falar sobre algo
inexistente, meramente literário, em suma: um artefato. A melhor
resposta que conheço a esse respeito é a que deu Pirandello ao ser
atacado - pela publicação do "Falecido Mattia Pascal" - por criar uma
situação implausível, por ser um escritor "cerebral". Lembraria o
primeiro parágrafo da defesa de Pirandello - "Avvertenza sugli
scrupoli della fantasia" (in, "O Falecido Mattia Pascal", Rio,
Civilização Brasileira).- "... Posto na encruzilhada entre o amor da
espôsa e o de uma moça solteira de vinte anos, o senhor Alberto
Heintz, de Buffalo, nos Estados Unidos, acha de bom aviso convidar uma
e outra para um encontro, a fim de tomarem, juntamente com ele, uma
decisão. As duas mulheres e o senhor Heintz apresentam-se,
pontualmente, no lugar aprazado; discutem longamente e, no fim, chegam
a um acordo. Decidem matar-se todos os três. A senhora Heintz volta
para casa; desfecha contra si um tiro de revólver e morre. O senhor
Heintz, então, e a sua apaixonada moça de vinte anos, visto que, com a
morte da senhora Heintz, foi removido todo o obstáculo à sua feliz
união, reconhecem não terem mais nenhum motivo para suicidar-se e
resolvem continuar a viver e casar-se. De modo diferente, porém,
resolve a autoridade judiciária; e manda prendê-los. Conclusão
vulgaríssima. (Vejam-se os jornais de Nova Iorque de 25 de janeiro de
1921, edição matutina)."
A vigorosa argumentação de Pirandello que mostra a falta de
compromisso da vida com a verossimilhança, pois, a vida não precissa
ser verossímil uma vez que é verdadeira, culmina com o relato de um
episódio "real" idêntico à "estória" do falecido Mattia Pascal, do
qual Pirandello não tinha conhecimento.
Penso que o texto de Malraux, como assinalo no último parágrafo do
tópico, nos permite elaborar a distinção entre relação simbiótica e
comensal tal como proponho neste trabalho e que julgo ter sido a
última formulação de Bion a respeito. Quando digo que a reflexão
desempenharia o papel do terceiro - em benefício dos três - o faço por
considerar que Kyo não se deixa levar por "sentimentos parciais",
excludentes de outros igualmente importantes, mas integra uma gama de
sentimentos/pensamentos num conjunto (continente) mais amplo, mais
significativo. Neste sentido difere de uma mera "intelectualização"
uma vez que não visa afastar sentimentos, pelo contrário, abre espaço
para um mundo mais significativo, afetiva e intelectualmente. Neste
sentido , penso que a reflexão descrita por Malraux é função da sigla
R (razão), um dos elementos que Bion propõe que investiguemos
("Elementos da Psicanálise", cap. 1). Embora a razão seja "escrava das
paixões", devemos reconhecer sua inerente autonomia, caso contrário
não haveria sentido na disputa pelo controle da razão entre os
princípios de realidade e de prazer que Bion aponta em
"Transformações" (Cap.6) e que qualquer analista praticante observa no
cotidiano da clínica. Outro argumento poderoso em defesa da autonomia
da razão residiria no paradoxo de naturalizarmos a razão, passando
esta a ser mais um dado do mundo, da natureza, podendo, portanto, ser
somente reconhecida por um olhar divino. Insisto neste ponto por
considerá-lo importante para preservar uma das contribuições mais
originais de Bion: o pensamento sem pensador. Tema que nos legou, a
desenvolver.
3 - O caso clínico com o qual procuro mais pensar do que ilustrar a
noção de -L, parece corresponder ao que Bion descreve no parágrafo 80
de "Sobre Alucinação":
"O perigo que o assusta é, portanto, algo que ele tem bons motivos
para temer ... Deseja amar. Sentindo-se incapaz de tolerar frustração,
recorre a um ataque homicida ou a um ataque simbólico como forma de
manifestação visível de uma identificação projetiva explosiva, em
decorrência de que o ódio assassino, junto com pedaços de sua
personalidade, se espalham pelo interior dos objetos reais ao seu
redor - neles incluídas as pessoas da comunidade. Agora se sente livre
para amar mas está cercado de objetos bizarros compostos de pessoas
reais e coisas inanimadas, a que se somam o ódio destrutivo e culpa
por assassínio. O quadro se complica ainda mais pois, embora seja
verdade dizer que se sente livre para amar (pelo menos tem a
determinação de fazê-lo), a violência da explosão priva-o, inclusive,
dos sentimentos de amor."
A frustração que inevitàvelmente acompanha qualquer relação amorosa -
como bem ilustra o personagem de Malraux - é insuportável para
pacientes como o descrito. Nesta linha de pensamento é que julgo que -
L é mais uma vicissitude de L, pela ação da pulsão de morte, do que
uma deficiência de L. A resultante do conflito é, a meu ver, uma
"mutilação" de L. A segunda sessão apresento, sugere a natureza da
frustração: a intolerância à separação. No momento desejo retomar a
questão do que é "razoável", ou não, sob o ponto de vista
psicanalítico.
Ao falar sobre o paciente, comentei que sua argumentação era coerente
e consistente, ou seja, não continha contradições e permitia pelo
menos uma compreensão, uma tipo de interpretação, seguindo os
procedimentos que adotamos ao analisar qualquer teoria científica.
Contudo, falta ao seu relato "algo razoável" que torne plausível sua
"teoria" de relacionamento com as demais pessoas. Neste sentido é que
entendo ser a razão (sigla R) um dos elementos da Psicanálise,
conforme Bion propõe. Sublinharia a comparação com o personagem de
Malraux - Kyo Gisors - cuja reflexão nos parece "razoável".
Utilizando, mais uma vez, a teoria das funções, diria que L é fator da
função R. Pode-se fazer "a revolução" com amor, como Kyo reflete, ou,
pode-se fazer com ódio, como o drama pessoal de meu paciente ilustra.
É conhecida a formulação de Oscar Wilde: "Tudo o que desejo demonstar
é este princípio geral : a vida imita a arte muito mais do que a arte
a vida." Não tomo tal formulação como uma "frase de efeito", mas a
percepção pela sensibilidade do artista de que a arte pode oferecer-
nos configurações que se realizaram num passado remoto, do qual não
mais nos recordamos, ou, aguardam um futuro para realizarem-se, daí a
atemporalidade da arte.
4 - A correlação que procuro estabelecer entre as noções de "gênio" em
Platão, Kant e Bion, evidentemente requer uma maior elaboração, para a
qual me sinto pouco competente. Contudo, pareceu-me digna de registro.
Na clínica psicanalítica a pressuposição (Pré-concepção - categoria D)
de um "sensus communis" é uma necessidade epistemológica. Em outras
palavras: supomos que nossos pacientes, por mais graves que sejam,
podem participar de uma comunidade universal - humanidade - fundada em
valores de verdade, bem e beleza. Em suma, podem participar de uma
comunidade racional. De outra forma teríamos que admitir que nossas
interpretações seriam incompreensíveis, ou, voltaríamos às velhas
teorias de degeneração mental. Estou ciente de que Bion utiliza a
noção aristotélica de "sentido comum", segundo a qual, a apreensão de
um objeto requer a ação de vários sentidos, pelo menos, mais de um.
Contudo, toda sua obra nos permite aproximá-la da noção mais
sofisticada, de Kant, de "sensus communis", como a possibilidade de
uma comunidade racional universal. Sublinharia que se trata apenas de
uma possibilidade, como nos lembra Hannna Arendt (1971) (in, "A Vida
do Espírito", Rio, Relume Dumará).
A estética e a psicanálise tem em comum o fato de lidar com o
singular, o individual e, entretanto, pretendem produzir e comunicar
conhecimento, onde a linguagem científica tradicional fracassa.
Arriscaria dizer que tal foi a preocupação de Bion ao escrever suas
"novelas", buscando através da estética uma comunicação de outra forma
impossível, ou pelo menos, demasiado tosca.
Um outro aspecto deste tópico se prende a nossas preocupações acerca
das relações narcis-ismo/social-ismo. A inevitável tensão entre o
indivíduo e o grupo, insuperável a nosso ver, tem sido objeto de
estudos recentes segundo as concepções de Bion (Bianchedi E. 1996;
Marinho F. 1997).
(Este trabalho foi apresentado na Conferência Internacional do
Centenário de Nascimento de W.R. Bion, realizado em Turim, em julho de
1997 e reapresentado no Simpósio comemorativo promovido pela Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro em novembro do mesmo
ano).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - Abraham, K - Teoria Psicanalítica da Libido, Rio,Imago.
2 - Bion, W. R. -
- (1962) Learning from Experience, in Seven Servants,
New York,Jason Aronson.
- (1963) Elements of Psychoanalysis, in Seven Servants,
New York,Jason Aronson.
- (1965) Transformations, in Seven Servants,
New York, Jason Aronson.
- (1967) Second Thoughts, London, Heinemann.
- (1970) Attention and Interpretation, in Seven Servants,
New York, Jason Aronson.
3 - Jaeger, W. - (1936) Paideia, São Paulo, Martins Fontes.
4 - Kant, I. - Critique de la Faculté de Juger, Paris, Vrin.
5 - Malraux, A. - La Condition Humaine, Paris, Gallimard.
6 - Platão - O Banquete, São Paulo, Difel.
7 - Von Wright, G. H. - (1971) - Explanation and Understanding,
London, Routledge
Ney Marinho é da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro