Esperando a alma chegar

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Sep 4, 2008, 6:44:54 PM9/4/08
to Midiateca da HannaH
Esperando a alma chegar



Paulo Sternick



Num bar em Paris durante o dia, uma jovem mulher se aproxima de um
homem de meia-idade e diz que tinha lido uma coisa fantástica numa
revista e precisava falar disso com alguém. Era o seguinte: no México,
cientistas contrataram carregadores para leva-los ao cume da montanha
de uma cidade inca. A certa altura, os carregadores não quiseram mais
prosseguir. Os cientistas, irritados, não sabiam mais como faze-los
seguir adiante. Não entendiam os motivos de uma parada tão prolongada.
Após algumas horas, os carregadores recomeçaram a andar e, finalmente,
o chefe deles deu uma explicação: eles tinham corrido muito e estavam
esperando suas almas chegarem. A moça que contou esta história - uma
personagem de “Além das nuvens”, filme do diretor Michelangelo
Antonioni, que, doente, foi ajudado por Wim Wenders – comentou: “É
fantástico, porque também corremos atrás de nossas coisas e perdemos
nossas almas. Devíamos esperar”.


Ao assistir ao último filme de Pedro Almodóvar, “Fale com ela”, em
exibição no Rio, a experiência que se tem é a de sermos transportados,
lentamente, cena a cena – desde o balé inicial de Pina Bausch – de
volta às nossas almas, à subjetividade dos seres humanos, das quais
hoje sofremos pressão para a esquecermos. Corremos feito autômatos,
pensamos como robôs, esquecemos do ser e valorizamos o fazer e o
possuir. “Agora trabalho com o coração inteiramente aberto, disse
Almodóvar, prosseguindo: "Não foi algo que decidi. Parece imposto
sobre mim por minha própria vida e experiência. Suponho que venha com
a idade. Realmente, não parece estar relacionado com uma posição
intelectual. Prefiro não tomar consciência das razões. Acho que pode
ter a ver com a mudança de visão. Hoje, tenho uma visão, que não diria
pessimista, mas triste diante da vida. Quando penso sobre minha vida,
penso mais sobre sofrimento do que sobre a alegria".


O filme de Almodóvar pode ter muitas significações, mas eu vejo as
personagens que estão em coma representando a inconsciência de todos
nós e a necessidade de ouvirmos boas histórias a fim de que possamos
recuperar nossas almas. Metáfora do trabalho da psicanálise? Não é por
acaso que um crítico do “New York Times”, A. Scott, vê a tristeza do
diretor transformada em doçura e beleza: “Há algo profundamente
consolador na visão madura de Almodóvar, e o consolo vem de uma
profunda fé no poder da arte.” Fé no poder da arte, mas também no
pensamento de maneira geral, na linguagem. Talvez por isso, o crítico
literário italiano Roberto Calasso tenha dito que não é mais preciso
buscar os deuses no cosmos, porque eles se refugiaram na linguagem”.


Os deuses se refugiaram na linguagem, mas nas suas revelações de
sentido, significações e espiritualidades, e também nas canções, em
seus versos e tonalidades mágicas. Em “Fale com ela”, a trilha sonora
é belíssima, incluindo a presença de Caetano Veloso, que canta ao
vivo, numa cena do filme, a música Paloma, de Tomás Mendez (Dicen que
por las noches/ No más se le iba em puro llorar/ Juran que el mismo
cielo/ Se estremecia ao oir su llanto/ Como sufria por ella/ Que hasta
em su muerte la fue llamando/ Ay, ay, ay, ay, ay/ Cantaba/ Ay, ay, ay,
ay/ Gemia). O crítico do “New York Times”, que assisitu à pré-estréia
em N. York, recebeu de presente de Almodóvar um CD com as músicas do
filme, autografado por ele: “Quando me levantei para partir, Almodóvar
ofereceu-me uma cópia autografada do CD das músicas do filme, que
inclui a canção de Caetano, assim como a trilha orquestral melancólica
e exuberante de Alberto Iglesias. Quando as portas do elevador se
fecharam, olhei para a capa e vi que Almodóvar tinha escrito algo,
acima de sua assinatura. Era uma comunicação privada, que tenho prazer
em passar adiante. "Chore", dizia.

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Paulo Sternick é psicanalista no Rio de Janeiro e em Teresópolis.
Editor-científico de “Gradiva”; membro da Sociedade Internacional de
História da “Psiquiatria e da Psicanálise”

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