Schopenhauer e a filosofia dos Vedas
Goura Nataraj Das
A conexão do filósofo alemão Arthur Schopenhauer com as escolas
filosóficas ligadas aos Vedas, milenares escrituras sânscritas, é um
dado irrefutável, seja pelas numerosas citações em seus escritos, ou
seja pela influência que os conceitos ontológicos e metafísicos dos
sábios védicos podem ter produzido em seu próprio sistema.
Também podemos basear nosso argumento no próprio nome dado pelo
filósofo ao seu cão: Atma.
A distinção realizada por Kant entre a coisa-em-si (numenon) e o que
se mostra (phainomenon) é um dos pontos de partida para a filosofia de
Schopenhauer.
Somos limitados pelo nosso aparato cognitivo (sentidos, mente e
inteligência) que apenas apreêndem a realidade de um determinado
jeito, sob uma série de categorias. A verdade do mundo nunca se mostra
inteiramente, e mesmo se se mostrasse, nós não a perceberíamos em sua
plenitude (1). Com esse movimento, Kant pretendeu mostrar que os
objetos de estudo da metafísica, Deus, existência da alma etc, estão
além da capacidade cognitiva dos homens. Pela razão não podemos chegar
a um conhecimento seguro sobre tais objetos. Em Schopenhauer isto
também se aplica, de certa forma, mas suas reflexões são bastante
diferentes das de Kant, e ele chegou a escrever um livro sobre as
diferenças de seus sistemas filosóficos. Sua pretensão foi mais longe
ao buscar meios pelo qual o sujeito, àquele que percebe os objetos do
mundo e de sua mente, pudesse por alguma maneira acessar a coisa em
si, a essência do mundo.
Dos Vedas e do Vedanta
Schopenhauer é bastante caricaturizado por sua ética do pessimismo,
uma análise bastante crua e despojada de enfeites da realidade. Para
ele os homens vivem confusos, presos e acorrentados em desejos e
anseios, sem se importarem em resolver o problema da existência, este,
sendo o objeto de estudo do sábio.
O eco que Schopenhauer ouviu dos Vedas deu a ele a garantia de que
suas conclusões estavam bem apoiadas e tinham o respaldo de mais de
5.000 anos de metafísica e ontologia para lhe confortar.
As primeiras traduções dos textos védicos, tais como as Upanishads, a
Bhagavad Gita, o Vishnu Purana, entre outros, para as línguas
ocidentais, foram recebidas com muito satisfação por ele, que se
utilizou de muitos termos sânscritos para expressar suas reflexões.
No parágrafo 115 de Parerga e Paralipomena, ele diz o seguinte:
"Os leitores de minha ética sabem que, para mim, o fundamento da moral
repousa em última instância sobre aquela verdade que está expressa no
Veda e Vedanta pela fórmula mística tat twam asi (isto és tu), que é
afirmada com referência a todo ser vivo, seja homem ou animal,
denominando-se então o Mahavakya, o grande verbo."
Mais adiante, no mesmo parágrafo, encontramo-lo exaltando com grande
entusiasmo a doutrina religiosa dos brahmanes em oposição a pobreza
metafísica das religiões tradicionais, citando um terceiro:
"Monsieur, c'est la vraei religion!".
My fellow-sufferer, soci malorum, compagnon de misères.
Outro ponto interessante de ligação entre eles é a doutrina do
sofrimento do mundo. Nos Vedas encontramos muitas afirmações que
indicam que a compreensão correta acerca da realidade deste mundo se
baseia em sua temporalidade (asasvatam) e em sua condição como um
local de inúmeras misérias (duhkalayam). Esta é a compreensão a priori
que devemos ter sobre o mundo para não alimentarmos falsas esperanças
e ilusões quanto a este. Todos os seres nascem confusos e iludidos
pelo prazer e pela dor. São forçados a envelhecer, adoecer e morrer.
Seus planos são frustrados pela natureza material, seus apegos
arrancados e seus medos, muitas vezes realizados. Isto não é um motivo
de lamentação para um sábio, mas o é apenas para os tolos, que se
identificam com a matéria e suas transformações. Este mundo é o
samsara, o ciclo de nascimentos e mortes.
Schopenhauer prescreve uma ética de resignação e profunda sobriedade
nos tratos com o mundo e as outras pessoas. O sofrimento é inevitável.
Pode ser causado por nosso corpo ou nossa mente, por outros seres
vivos, ou, por fenômenos naturais que estão além de nosso poder. ‘Pois
o mundo constitui o inferno, e os homens formam em parte os
atormentados, e noutra, os demônios.' (P. 156). Reconhecendo tal
característica e vivenciando-a, a pessoa pode começar a se interessar
em buscar o Absoluto. Enquanto está enamorada das ilusões da matéria
tal empreeitada torna-se escusa e distante. O papel da filosofia é
conduzir os homens à mais perfeita saúde do espírito e à consequente
felicidade que dela advém. Somente aquele que esta a par do
funcionamento da ‘máquina do mundo' pode chegar a tal objetivo e não
aquele que, até mesmo conscientemente, busca se enganar e ser enganado
com a falsa propaganda de uma felicidade materialista. Para concluir,
seu conselho final quanto a isto é:
"Para a paciência na vida e para suportar serenamente os males e os
homens, nada pode ser mais útil do que uma recordação budista deste
tipo: “Isto é o samsara; o mundo do prazer e do desejo, e portanto, do
nascimento, da doença, da velhice e da morte; é o mundo que não
deveria ser. E isto aqui é a população do samsara. O que melhor podeis
esperar.” Quero prescrever a cada um que repita isto quatro vezes por
dia, conscientemente."
O futuro dos estudos védicos
É no mínimo irônico que atualmente tantos pretensos estudiosos da
filosofia não se dispõem a considerar o pensamento dos Vedas como
suficientemente qualificado para explicar o mundo, o homem, Deus e
suas relações. A visão estreita e preconceituosa de tais pensadores
denota claramente que seus objetivos não são a filosofia e o
conhecimento da verdade. Esta é a diferença entre os filósofos e os
professores de filosofia (filosofastros). Os Vedas conseguem de forma
brilhante harmonizar a aridez do conhecimento com o júbilo da poesia,
os vôos da metafísica com os mergulhos do empirismo, a frieza da razão
com o calor dos sentimentos. Schopenhauer considerou que os
ensinamentos védicos um dia seriam a causa de uma grande revolução
intelectual, assim como na Renascença a redescoberta dos textos gregos
e latinos impulsionou toda uma mudança na maneira de ver o mundo do
povo ocidental. Certamente seus trabalhos serão ainda muito estudados
e contribuirão para uma maior compreensão do papel dos Vedas na
transformação da sociedade moderna.
(1) De forma semelhante, no capítulo 11 da Bhagavad Gita, Krishna, ao
se revelar à Arjuna como o Deus Supremo, mostra toda a sua potência
infinita, dando a ele ‘olhos divinos' com os quais seria capaz de
transcender as limitações do humano e ascender ao plano do Absoluto.
Arjuna pôde, então, quebrar as categorias epistemológicas e ter acesso
à coisa-em-si; esteve livre da representação e ‘viu' a realidade como
ela é.
Goura é filósofo e professor de Yoga em Curitiba.
Seu email é
souldef...@yahoo.com.br.