Amores silenciosos

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Jun 27, 2008, 7:39:09 PM6/27/08
to Midiateca da HannaH
Amores silenciosos

CONTARDO CALLIGARIS



A gente se declara apaixonado porque está apaixonado ou pelo prazer de
se apaixonar?


FAZER E RECEBER declarações de amor é quase sempre prazeroso.
O mesmo vale, aliás, para todos os sentimentos: mesmo quando dizemos a
alguém, olho no olho, "Eu te odeio", o medo da brutalidade de nossas
palavras não exclui uma forma selvagem de prazer.

De fato, há um prazer na própria intensidade dos sentimentos; por
isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos.

Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara apaixonado
porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer de
se apaixonar.

Simplificando, há duas grandes categorias de expressões: constatativas
e performativas.

Se digo "Está chovendo", a frase pode ser verdadeira se estamos num
dia de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma, mentindo ou não,
é uma frase que descreve, constata um fato que não depende dela.

Se digo "Eu declaro a guerra", minha declaração será legítima se eu
for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples
cidadão; de qualquer forma, capricho ou não, é uma frase que não
constata, mas produz (ou quer produzir) um fato. Se eu tiver a
autoridade necessária, a guerra estará declarada porque eu disse que
declarei a guerra. Minha "performance" discursiva é o próprio
acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).

Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas ("Digo
que amo porque constato que amo") ou performativas ("Aca- bo amando à
força de dizer que amo"). E isso se aplica à maioria dos sentimentos.

O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos
sentimentos pode simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo,
esqueço conflitos e nuances. No entusiasmo do "te amo", deixo de lado
complementos incômodos ("Te amo, assim como amo outras e outros" ou
"Te amo, aqui, agora, só sob este céu") e adversativas que
atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência de
sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.

O segundo problema é que nossa verborragia amorosa atropela o outro. A
complexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos,
e sua resposta ("Também te amo"), de repente, não vale mais nada ("Eu
disse primeiro").
Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso,
contido, pudico.

Para contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser
dito e redito, como um performativo que inventa e força o sentimento,
sugiro dois extraordinários romances breves, de Alessandro Baricco, o
escritor italiano que estará na Festa Literária Internacional de
Parati, na próxima semana: "Seda" e "Sem Sangue" (ambos Companhia das
Letras).

Nos dois, a intensidade do amor se impõe com uma extrema economia de
palavras ("Sem Sangue") ou sem palavra nenhuma ("Seda"). Nos dois, o
silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele não poder ser dito
ou talvez por isso mesmo.

No caso de "Seda": te amo em silêncio porque te encontro ao limite
extremo de uma viagem ao fim do mundo, indissociavelmente ligada a um
outro, e nem sei falar tua língua.

Você me ama em silêncio porque sou outro: uma aparição efêmera, uma
ave migrante.
No caso de "Sem Sangue": te amo, e não há como falar disso porque te
dei e te tirei a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais
poderia e deveria querer me matar (os leitores entenderão).

Nos dois romances, a ausência da fala amorosa acaba sendo um presente
que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e
freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos
sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.


Fim
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