Sadhana e Liberdade
Goura Nataraj Das
Para Epictetus, importante filósofo estóico do período romano, a
verdadeira liberdade consiste em considerar as coisas como realmente
são, não como somos acostumados a senti-las, sempre sobre a influência
de condicionamentos que, nem sempre, o que vale dizer, quase nunca,
nos representam o quadro fidedigno do mundo em que vivemos.
Existem coisas que estão sobre o nosso controle, tais como concepções,
escolhas, desejos e aversões, e coisas que não estão, que para o
filósofo são nosso próprio corpo, propriedades, reputação e
atividades. Se alguém considera o que não é propriamente seu como o
sendo, ou o contrário, está numa posição vulnerável onde qualquer
acidente ou falha em seus planos de felicidade e prosperidade irá
causar um grande transtorno e será inevitavelmente fonte de
sofrimentos.
O homem livre é aquele que sabe o que é verdadeiramente seu. Os
estóicos costumavam contar a história de Estilpão, um filósofo que
teve sua cidade saqueada, suas posses roubadas, sua família
violentada, e que, ao ver tudo isto, declarou aos usurpadores que nada
do que era realmente dele havia sido sequer tocado.
Omnia mea cum me porto
Todas as coisas que são minhas eu carrego comigo!
Para os estudantes de Yoga de todas as tradições isto não é algo pouco
familiar. No Yoga-Sutra, Patañjali (II:5) já define a ignorância,
avidya, como sendo a ação de considerar o impermanente (anitya) como
permanente (nitya), o impuro (ashuchi) como puro (shuchi), o doloroso
(duhkha) como agradável (sukha) e o não-eu (anatmasu) como o eu
(atma).
Ou seja, ignorância é dar um valor às coisas que não lhe é autêntico,
por mais que a aparência pareça exigi-lo. Maya significa “aquilo que
não é”. A principal ignorância para os rishis védicos é aquela na qual
o sujeito não consegue se observar corretamente e ter a correta
compreensão de quem realmente é. Diz-se que uma das primeiras lições
no estudo do Yoga é perceber que não somos estes corpos que
habitamos.
Que a íntima ligação que temos com eles, ou seja, qualquer fenômeno
físico que aconteça nesta parte da matéria que chamo de “meu corpo” é
interpretado por mim como uma sensação, que irá por sua vez provocar
um sentimento. O aumento do fogo gástrico, por exemplo, é entendido
como: “sinto fome”. O conforto, uma adequação, um encaixe entre meu
corpo e outros corpos. Naturalmente, desta forma, passo a pensar que
sou este corpo, e que conseqüentemente tudo o que rodeia este corpo
também me diz respeito. No Bhagavata-Purana (V:5,8) isto é descrito
como a mentalidade de “aham-mameti” – eu e meu.
No entanto, este “eu e meu” são na verdade “não-eu e não-meu”, pois
são avidya, manifestações da ignorância que impedem o homem de
perceber a unidade de tudo o que existe. Num dos mais belos versos da
Gita (V:18), Krishna diz à Arjuna que os verdadeiros sábios, os
autênticos panditas, em virtude do conhecimento (vidya), vêem com
visão equânime (sama-darsinah) um brahmaŠe, uma vaca, um elefante, um
cão e até mesmo um comedor de cães. Vezes e mais vezes Krishna atesta
esta verdade sob diferentes pontos de vista, mostrando como tudo tem
origem na divindade (Gita X:8) e avidya é não conseguir perceber isto
e conduzir a vida sob falsas premissas e prerrogativas mentirosas.
Definindo o Yoga
Tarefa ingrata para o estudioso sistemático, a busca por um sentido
conciso e acabado para a definição de Yoga esbarra na maleabilidade e
fluidez que o termo carrega consigo. Etimologicamente, tem sua origem
na raiz yuj – juntar, unir. O gramático Panini diz que Yoga possui um
significado semelhante ao sentido original de “religião”, união com o
Supremo. Patañjali define-o como a “cessação de todas as alterações da
substância mental”.
Para os estudantes de Vedanta, Yoga é o retorno da jivatman, a alma
individual, ao Paramatman, a Superalma. Também podemos entender Yoga
como um sinônimo de marga, caminho; assim, encontramos o termo karma-
Yoga (caminho da ação), bhakti-Yoga (caminho da devoção), jñana-Yoga
(caminho do conhecimento).
E se pensamos que com esta lista de significados estamos perto de uma
conclusão final, podemos estar certos de que existem ainda muitos
outros. Existe, na tradição, uma distinção entre o significado literal
de um termo, ou de uma teoria, e seu significado esotérico. Este
último é a realização, a vivência do conteúdo interno do termo feito
por mestres e santos que puderam apreendê-lo e interiorizá-lo.
O Yoga, de uma forma geral, parte desta proposta. Ele não se satisfaz
em ser um conhecimento meramente teórico e superficial da realidade.
Como diz Feuerstein1: “O Yoga é um ataque frontal aos padrões fixos de
pensar e agir adquiridos no curso de vida do sujeito. Ele tem como
objetivo a emancipação da ´idéia inata´ interna que está enterrada nas
profundezas da psique, através da retirada das coberturas de falsas
identificações e outros depósitos psíquicos dispensáveis”.
Podemos dizer isto de outra forma simplesmente afirmando que Yoga é
uma ação. Envolve uma atitude ativa do sujeito. De fato, este é
convidado e instigado a deixar de ser um “paciente”, alguém que
simplesmente sofre e recebe as coisas do mundo (lembrar do sentido
original da palavra grega “pathos” que aparece no português “paixão”
como padecer, sofrer a impressão de algo), e se tornar um agente de
sua própria vida.
Ele trabalha com a situação humana como um todo e propõe uma tarefa
ambiciosa de obtenção de uma liberdade total, liberação de todo
sofrimento e condicionamento, e reconhecimento da verdadeira natureza
do ser. Por isto existe um tipo de paradoxo nos ´praticantes´ modernos
de Yoga.
Esta não é uma simples prática ou estudo que se faz em um período da
semana, durante as horas em que tentamos fazer asanas, pranayamas ou
um pouquinho de meditação. Yoga é a disposição mental, o trabalho
interno que deve ser feito durante as 24 horas do dia, a cada
respiração. Não devemos pensar em praticar Yoga, mas sim em viver o
Yoga. Isto é semelhante ao que Krishna afirma numa das primeira vezes
em que o termo Yoga aparece na Gita (II:48):
“Fixo no Yoga (Yoga-sthah), execute seu dever, ó Arjuna, conquistador
de riquezas, abandonando o apego a sucesso ou fracasso. Esta
equanimidade (samatvam) chama-se Yoga”.
Swami Bhaktivedanta Prabhupada (1896-1977), importante mestre do
Vaishnavismo, no seu comentário deste verso escreve: “Krishna diz a
Arjuna que ele deve agir em Yoga. E o que vem a ser Yoga? Yoga
significa concentrar a mente no Supremo e controlar os sempre-
perturbados sentidos. E quem é o Supremo? O Supremo é o Senhor. E
porque Ele mesmo está dizendo à Arjuna que lute, este nada tem a ver
com os resultados da luta. Ganho ou vitória são da alçada de Krishna;
Arjuna é aconselhado a simplesmente agir segundo a ordem de Krishna;
seguir a ordem de Krishna é a verdadeira Yoga ...”.
Agir em Yoga, diz Krishna dois versos adiante, é a arte, a perfeição
de todo trabalho, de toda atividade - Yogah karmasu kaushalam.
Origens do Yoga
Na própria Gita (IV:3) o Senhor Krishna revela que este conhecimento
do Yoga é muito antigo (puratanah), tendo sido ensinado, por ele
mesmo, previamente ao próprio deus do Sol, Surya/Vivasvan. Tal
conhecimento foi transmitido oralmente numa corrente de mestres e
discípulos chamada de parampara. Em termos históricos o Yoga é
certamente pré-cristão, já aparecendo em descrições do Rg Veda e,
segundo alguns estudiosos, na civilização do Indu-sarasvati.
Não temos muitos recursos para atestarmos detalhes históricos sobre o
nascimento do Yoga, tanto que isto nem é levado muito em consideração
pelos próprios indianos, visto que o importante é que o Yoga funciona,
tenha ele 30.000 ou 3.000 anos de idade.
Feurstein continua dizendo: “O Yoga exposto por Krishna é, como o
próprio mestre divino afirma: a restauração de tradições antigas que
haviam sido esquecidas no decorrer do tempo. Existe, de fato, pouca
coisa na Gita que não possa, embora em forma germinal, ser detectada
em um ou outro hino do Rg e Atharva-veda. O feito extraordinário de
Krishna está nele ter injetado nova vitalidade em antigos ensinamentos
e tê-los elaboradode uma forma coerente”.
A idéia central, que é retomada vezes e mais vezes na Gita, iguala o
Yoga como uma forma de agir, como vimos acima. Assim, temos o sexto
capítulo iniciando com uma definição do yogi, o místico que busca a
libertação última, moksha.
Anashritah karma-phalam
karyam karma karoti yah
sa sannyasi cha yogi cha
na niragnir na chakriyah.
O yogi, o sannyasi, é aquele que não toma abrigo (anashritah) no fruto
da ação (karma- phalam) e que age por uma questão de dever (karyam);
não aquele que não acende fogo algum (na niragnir) e não cumpre nenhum
dever, que não age (na chakriyah).
O ser vivo é ativo por natureza. A consciência se manifesta como
percepção e movimento. Em seu estado condicionado, dentro do mundo
material, busca pelas suas qualidades inatas (sat/chit/ananda) no
contato com os objetos dos sentidos. No entanto, tudo neste mundo é
asat, temporário, e, portanto, para a filosofia vedanta, não-
existente. Aquilo que veio a ser um dia, e no futuro terá um fim, não
possui existência verdadeira.
Somente aquilo que é estável e eterno é sat. Para um iniciante no
Yoga, chamado por Krishna de arurukshoh, a tendência natural é buscar,
por causa da frustração com o mundo, o afastamento das atividades, a
não-ação, visto que, erroneamente, julga todas as ações como maculadas
pelo karma. Não consegue ver a possibilidade de uma ação que não
incorra numa reação vindoura, atando-o perpetuamente ao ciclo dos
condicionamentos.
No entanto, o Yoga é justamente a ação que não provoca reação. É o
contato do sujeito com o mundo sensorial sem o anzol que o prenderá à
morte. Ou, pensando no Yoga-Sutra, é o contato do purusha com prakrti
que não envolve sofrimento. Justamente por isto encontramos, de forma
até mesmo repetitiva, a insistência numa disciplina de regulação dos
sentidos, de equanimidade com o mundo objetivo.
Nesta visão o yogi vê com os mesmos olhos o frio e o calor, a
felicidade e a tristeza, a honra e a desonra, os amigos e inimigos.
Não que não sinta a rigidez do inverno, ou a alegria de uma amizade
verdadeira, mas consegue perceber que quer esteja nestas situações,
quer em seus opostos, ele, o observador, aquele que está em contato
com o que está fora de si, é sempre o mesmo. Não é isto a mesma coisa
dita por Patañjali logo no início de seus aforismos?
Quando se está no estado de Yoga, nesta concentração especial da
qualidade mental (chitta), o sujeito permanece em sua própria
natureza, svarupa; e nos outros casos, ou seja, quando a chitta está
alterada, identifica-se com os objetos de sua percepção. Observa-se
como homem, mulher, chinês, indiano, jovem, velho, doente, são,
inteligente, néscio, animal, vegetal, e se identifica plenamente com o
personagem que assumiu. Isto em sânscrito recebe o nome de ahamkara, o
falso ego que se julga o responsável, o fazedor das coisas.
Quando compreendemos isto, no estudo da Gita, passamos a entender por
que Krishna começa seus ensinamentos mostrando a natureza espiritual
do ser, distinta da matéria, e que esta é apenas uma cobertura, uma
roupa por ele assumida. Também observamos com maior clareza a
afirmação de que a mente (chitta) pode ser tanto nossa melhor amiga
como nossa pior inimiga.
“Para quem conquistou a mente, este é o melhor dos amigos; mas para
quem fracassou neste empreendimento, sua mente continuará sendo seu
maior inimigo” (Gita VI:6).
A mente amiga é aquela que revela a identidade pura do ser; a inimiga
é aquela que o mostra como suas coberturas. Chaitanya Mahaprabhu
(1486-1524) diz que a mente é tal qual um espelho capaz de refletir a
identidade original da alma. No entanto, presa no samsara, se torna
semelhante a um espelho sujo, não conseguindo refletir a pureza
espiritual.
A prática de Yoga é tanto a limpeza final do espelho mental, quanto o
estado gradual de purificação. A sujeira a ser retirada é nossa
ignorância, avidya, que impede o reconhecimento da Verdade.
Embora seja um diagnóstico um tanto quanto simples, a realização de
tal proposta é, além de muito exigente, difícil de ser posta em
prática. Por quê? Bem, Arjuna responde em nosso lugar (VI:34),
afirmando que a mente é chañcalam, flutuante/inquieta, pramathi,
turbulenta, bala-vat, muito forte, e drdham, obstinada; e subjugá-la é
tão difícil quanto controlar o vento.
A mente está desde tempos imemoriais acostumada a agir de um jeito e
por mais que nossa determinação e inteligência pensem o contrário, ela
não irá ceder. Mais uma vez a resposta de Krishna mostra a
concordância entre o que ele está propondo com o caminho eterno
(anadi) da tradição védica, reinterada posteriormente por Patañjali.
Ele admite que, sem sombra de dúvida (asamshayam), é muito difícil
refrear a mente, mas existem dois métodos que devem andar de mãos
dadas, que certamente irão trazer o sucesso para o yogi. Estes são
abhyasa, a prática constante, e vairagya, o desapego.
São considerados uma “interação dialética de esforço positivo e
renúncia”, diz o Professor Klaus Klostermaier. Não é surpresa que
sejam estes mesmos termos os que Patañjali usa para descrever o método
que visa a trazer a cessação das flutuações da chitta.
“Estas alterações mentais são contidas pela prática (abhyasa) e pelo
desapego (vairagya)” (Yoga Sutra I:12)
E qual é a função deles, de fato, no sadhana do praticante? O Yoga-
Bhasya, o mais antigo comentário do Yoga-Sutra diz:
“A corrente da mente (chitta) flue em duas direções: ela vai em
direção ao bem e também em direção ao mal. Aquela corrente que tem
início com o discernimento (viveka) e que conclui na emancipação, é a
corrente do bem. Aquela que inicia no não-discernimento (a-viveka) e
que termina na existência condicionada (samsara) é a corrente do mal.
Pelo desapego a tendência que leva aos objetos mundanos é contida, e
pela prática da visão discriminativa a corrente do discernimento (que
conduz à emancipação) se estabelece.” (Yoga-Bhasya I:12)
É necessário, portanto, haver um esforço constante num pólo positivo,
que é o sadhana, a prática repetitiva de asanas, pranayama, mantras e
meditação, que busca levar a mente a um estado diferente do qual ela
está acostumada nas situações normais da vida; e o pólo negativo que é
a renúncia, o desapego, o abrir mão das coisas e das atitudes que não
nos são construtivas.
Por um lado, agimos com intenção no sadhana, e, por outro, deixamos os
frutos do sadhana se manifestarem, não nos apegando a uma situação,
seja por conforto ou por medo. Desta forma, o Yoga propõe um meio de
se obter uma verdadeira liberdade, baseada naquilo que realmente
somos, construída sobre a essência do eu, sat - existência,
eternidade, chit - consciência, conhecimento, e ananda – bem-
aventurança, felicidade.
A guerra de Arjuna contra a ilusão, contra aquilo que confunde,
aprisiona, condiciona, ilude e entorpece o espírito é o mais puro
manifesto da afirmação da vontade que quer se sentir livre. A
experiência da liberdade precisa ser vivenciada, não apenas entendida,
por mais que isto já seja um grande passo. O sadhana é o caminho a ser
trilhado na vida diária, é a aplicação do conhecimento do Yoga no
momento presente.
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Goura Nataraj Das é formado em filosofia e ensina Yoga.
souldef...@yahoo.com.br
Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Yoga:
www.cadernosdeyoga.com.br
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