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to Midiateca da HannaH
Fernández, Myriam Rodrigues. A prática da psicanálise lacaniana em
Centros de Saúde: psicanálise e saúde pública . [Mestrado] Fundação
Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001. 162 p.
INTRODUÇÃO
"(...) o pobre não tem menos direitos à terapia da mente quanto os que
já tem em matéria de cirurgia básica. E (...) as neuroses não
constituem menor ameaça à saúde popular que a tuberculose e, (...), da
mesma maneira que esta, não podem ser deixadas ao cuidado impotente do
indivíduo pertencente às camadas populares (...)"*
(Freud, 1918)
Um caminho a percorrer
Como se dá a intersecção da psicanálise com a Saúde Pública,
considerando-se que o exercício da prática psicanalítica em
instituições da rede pública de saúde é um fato incontestável?
É esta questão complexa que buscamos investigar com a presente
dissertação. Para isso, foi necessário traçar primeiro o caminho a
percorrer, balizando os pontos em que precisaríamos nos deter e,
sobretudo, delimitar bem o espaço de realização da pesquisa. Se não o
fizéssemos previamente, acabaríamos por nos perder na amplidão e
complexidade do campo vastíssimo da Saúde Pública.
O espaço escolhido foi o dos Centros de Saúde. Para delimitá-lo ainda
mais, propusemo-nos a realização de um estudo relacionado ao
atendimento que três psicanalistas vêm praticando em três diferentes
Centros de Saúde, onde exercem sua prática segundo postulados teóricos
lacanianos. Obviamente, no que se refere à psicanálise, a referência
fundamental será sempre Freud, o fundador. Por que, então, acentuamos
os postulados teóricos lacanianos? É uma questão que pensamos
esclarecer ao longo do próprio desenvolvimento da dissertação. No
entanto, podemos desde já adiantar que se enfatizamos uma práxis
embasada na teoria de Lacan é porque ele, no seu retorno a Freud, não
privilegia a forma como se possa exercer a prática da psicanálise e
sim, apenas, os seus conceitos fundamentais, dentre os quais vamos
destacar o de transferência.
Quanto à Saúde Pública, iniciamos o percurso a partir de sua definição
por Sabroza: "O conjunto de práticas e conhecimentos organizados
institucionalmente em uma sociedade, capazes de assegurar as condições
necessárias à manutenção e reprodução da vida humana
saudável" (Sabroza, 1994).
Como é também nos Centros de Saúde que a Saúde Pública busca assegurar
as referidas condições, consideramos apropriado o espaço de pesquisa
que delimitamos. É muito pequeno se o comparamos com o campo da Saúde
Pública. No entanto, é também nos Centros de Saúde que se efetivam
algumas de suas práticas, principalmente no atendimento ao estrato da
população designado como de baixa renda e baixa escolaridade - ou
seja, no dizer de Freud, aos "indivíduos pertencentes às camadas
populares".
Quanto à psicanálise, partimos da convicção de que o inconsciente -
seu campo específico - pode se colocar para todo sujeito, trabalhando
naturalmente sob as condições econômicas, sociais e culturais que o
condicionam. Isto nos levou à especificidade do estatuto do sujeito em
psicanálise: o sujeito do inconsciente, dividido pela própria
linguagem na medida em que fala, falando sem saber o que diz - como
acontece, por exemplo, em um ato falho.
Portanto, não podemos negar que, quando o inconsciente se manifesta,
suas formas de expressão variam de acordo com os condicionamentos
históricos e culturais. Ao considerarmos os sintomas histéricos, por
exemplo, fica-nos evidente que hoje, e aqui no Brasil, não se
apresentam eles como "esta selva de paralisias, espasmos e
convulsões" (1986:13) de que falava Freud em 1893, referindo-se às
famosas histéricas de Charcot na Salpêtrière, em Paris.
A psicanálise tem como matéria-prima de sua práxis a palavra daquele
que fala. Pelo próprio exercício desta prática, sabemos que a condição
que traz sofrimento ao sujeito é sobretudo sua miséria neurótica -
esta "enorme miséria neurótica que existe no mundo e que talvez não
seja necessária" (Freud, 1986:162). Miséria que independe, portanto,
de renda, escolaridade ou posição social. É desta condição miserável
que vem falar aquele que chega a um psicanalista, seja em um
consultório privado ou em um Centro de Saúde. Tanto em um como no
outro, o analista deve estar a postos para escutar o que cada um
daqueles que o procuram tem a dizer de sua condição humana de ser
falante que sofre. E o que precisa ser escutado é a singularidade do
sujeito, devendo o psicanalista intervir no discurso particular de
cada paciente.
Cada um tem seu discurso singular, relacionado a sua própria história.
Não podemos esperar que alguém analfabeto, que vive em situação às
vezes extremamente precária, interagindo com a violência nos mais
variados níveis e da forma mais explícita, possa chegar ao analista
dizendo por que veio e o que sente, da mesma maneira que um paciente
que o procura no consultório. Isto não significa, no entanto, que este
alguém não seja passível do inconsciente. É ao analista que caberá
acolher com sua escuta o que está sendo dito para, só então, provocar
a emergência do inconsciente nas brechas deste discurso da
consciência.
Pensamos não ser possível "assegurar as condições necessárias à
manutenção e reprodução da vida humana saudável" sem levar em conta o
psíquico. Sabemos, através de vários pensadores da Saúde Pública, que
esta não toma o corpo apenas como biológico, o que implica, portanto,
em levar em consideração o psíquico.
Ao falar em psíquico, um termo bastante presente na psicanálise, não
podemos deixar de lado a chamada Saúde Mental, até porque é ela que
geralmente viabiliza o exercício da prática psicanalítica em
instituições públicas de saúde, embora de forma bastante paradoxal.
Percebemos, assim, que tratar da intersecção da psicanálise com a
Saúde Pública envolve, de fato, questões complexas. Optamos por fazê-
lo, dando a conhecer os obstáculos com que se defronta um psicanalista
que exerça a sua prática em um Centro de Saúde, mediante a verificação
das condições em que o exercício da mesma vem ocorrendo em três deles.
Interessou-nos conhecer também como, conceitualmente, esta práxis vem
se efetivando. Neste sentido, privilegiamos o conceito de
transferência, na medida em que uma análise só é possível a partir da
instauração deste dispositivo.
Consideramos que descrever como a prática da psicanálise vem se
realizando nas referidas unidades possibilitaria que, eventualmente,
aparecessem as dificuldades que encontram os psicanalistas no
cotidiano de seu trabalho em Centros de Saúde.
É nossa intenção que esta dissertação contribua para desfazer a idéia
tendenciosa de que ao pobre, em renda e escolaridade, a Saúde Pública
só pode oferecer, quando muito, uma "psicanálise pobre". Uma pobre
psicanálise que, ao não levar em conta alguns de seus próprios
conceitos fundamentais, estaria mostrando desconhecer que a miséria
neurótica traz sofrimento também àqueles que pertencem às chamadas
classes trabalhadoras.
Esperamos ainda que esta pesquisa possa contribuir também para alguma
reflexão sobre a formação dos médicos, no sentido de melhor prepará-
los para uma escuta mais apropriada em relação ao sofrimento psíquico
daqueles que buscam atendimento em unidades da rede pública de saúde.
Tendo definido os objetivos da dissertação, marcamos os pontos de
partida e balizamos o percurso a ser feito através de quatro
capítulos.
O primeiro mostra como, apesar de Saúde Mental e Psicanálise
encontrarem, no âmbito da Saúde Pública, um elo de ligação no termo
psíquico, no entanto suas concepções em relação ao referido termo são
bastante distintas, como provam suas respectivas histórias. O capítulo
deixa claro que esta diferença, bem como as que dizem respeito às
questões da demanda e do sintoma, revelam a relação paradoxal entre os
dois campos. Refere-se ainda a autores que, embasados na teoria
lacaniana, apostam numa intersecção possível entre Saúde Mental e
Psicanálise.
O segundo capítulo trata do arcabouço teórico mínimo que consideramos
indispensável para abordar a prática da psicanálise. Compõe-se de duas
partes: na primeira, são apresentados os conceitos de inconsciente e
pulsão e, na segunda, os de transferência e desejo do analista. Estes
conceitos são tratados de maneira bastante simples, visando apenas dar
a base teórica indispensável ao trabalho de campo.
O terceiro capítulo apresenta justamente o resultado do trabalho de
campo, em que foi realizada uma entrevista - constando de duas partes
- com cada um dos três psicanalistas. Destas entrevistas, gravadas e
depois transcritas, escolhemos fragmentos dos discursos enunciados
que, a seguir, foram trabalhados e comentados.
O quarto capítulo discute a posição paradoxal de alguns pensadores da
Saúde Mental, em relação à presença da psicanálise nas unidades
públicas de saúde. Aponta que, se a Saúde Pública pode acolher a
prática psicanalítica, ainda que de maneira informal, no entanto
vários dos referidos pensadores revelam certa tendenciosidade em
relação à mesma - tendenciosidade que acaba por se configurar em uma
certa exclusão da função do sujeito. Aborda também questões que
inviabilizam a presença da chamada psicanálise freudiana ortodoxa no
campo da Saúde Pública. Finaliza, localizando na própria formação
médica a origem das dificuldades de escuta, por parte dos médicos, em
relação aos pacientes.
Como fazer o percurso
A metodologia de trabalho se estabeleceu, considerando-se uma
investigação a ser realizada em dois níveis: o teórico e o do trabalho
de campo.
No nível teórico, investigamos textos que nos permitissem estabelecer
as bases conceituais necessárias ao desenvolvimento da pesquisa, tanto
no que se refere à Saúde Pública e à Saúde Mental como à Psicanálise,
implicando isso uma análise crítica de algumas leituras realizadas.
O nível do trabalho de campo teve seu primeiro momento na escolha do
espaço de pesquisa, que se resumiu a três Centros de Saúde, levando-se
em conta sobretudo o prazo para o desenvolvimento do mesmo. A
circunscrição deste espaço se fez, considerando-se que os Centros de
Saúde são a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), onde se
dá o nível primário de atendimento, de caráter universal. Foram
escolhidos dois Centros situados no Município do Rio de Janeiro (um na
zona sul da cidade e outro na zona norte) e um terceiro em um
município do interior do Estado. Esta escolha se deu a partir de
indicações obtidas de que, nestes Centros, que dispõem de atendimento
em Saúde Mental, trabalham psicanalistas que exercem sua prática
segundo postulados teóricos lacanianos.
Como categoria fundamental da pesquisa foi utilizada a entrevista que,
segundo Minayo (1998:107), é um dos "componentes do trabalho de
campo". A entrevista, semi-estruturada, realizou-se a partir de um
contato preliminar com cada um dos três psicanalistas dos referidos
Centros de Saúde, que generosamente nos acolheram. Nesta ocasião lhes
foram colocados os objetivos da pesquisa.
O roteiro da entrevista, apresentado em anexo ao final da dissertação,
foi elaborado em duas partes, o que resultou em dois encontros com
cada um dos entrevistados, numa duração média de 45 minutos por
encontro. Na primeira parte, as questões foram formuladas de modo a
possibilitar que os entrevistados nos dessem a conhecer a sua forma de
inserção nos respectivos Centros de Saúde em que trabalham, bem como
as condições institucionais que obstaculizam ou favorecem o exercício
da prática psicanalítica. A segunda parte, elaborada tendo em vista a
própria prática clínica, constou de questões que possibilitassem aos
entrevistados revelar aspectos relativos à transferência articulada ao
desejo do analista, e a como percebem os resultados clínicos de sua
prática.
Fazemos nossas as palavras de Lucia Helena C. dos Santos Cunha
(1997:26), quando afirma em sua dissertação de mestrado:
Abandonando o mito da neutralidade científica, a metodologia proposta
supôs a presença do entrevistador como um elemento ativo no contexto
do campo entrevistado; a relação de intersubjetividade que
caracterizou as entrevistas não foi negativizada, tendo sido ao
contrário tomada como um facilitador do processo. Com o crescente
reconhecimento da validade das pesquisas qualitativas, constata-se 'a
impossibilidade do objeto e do pesquisador das ciências humanas serem
inertes e neutros. Há aí uma interdependência viva entre o sujeito e o
objeto na produção de conhecimentos, sendo este objeto construído
(Leitão & Frison:1994).
A análise do material obtido foi feita, levando-se sempre em conta os
objetivos propostos. Neste sentido, a análise considerou aquilo que
foi mais marcante em cada entrevista, sendo recortados de cada
resposta os fragmentos mais significativos dos discursos enunciados.
Tais fragmentos foram trabalhados e comentados, tendo-se feito também
comparações entre relatos dos entrevistados, de forma a se
estabelecerem similaridades e diferenças. Assim, a análise do material
respondeu aos objetivos propostos, além de ter possibilitado a
emergência de temas que não constavam diretamente dos referidos
objetivos, mas que se prestaram, no entanto, a discussões importantes
que também dizem respeito à intersecção entre Saúde Pública e
Psicanálise.
Façamos agora o percurso. Adiante, pois!
CAPÍTULO I
SAÚDE MENTAL E PSICANÁLISE
"O futuro criará, previsivelmente, uma psiquiatria científica à que a
psicanálise terá servido de introdução".
(Freud, 1923)
Com o título acima, pretendemos salientar que estes dois termos -
saúde mental e psicanálise - apontam para dois campos distintos. Se,
como afirma Ana Marta Lobosque (1996:40), "a saúde mental não se pode
confundir com a psicanálise", não se trata também de estabelecer uma
oposição entre ambas. Interessa-nos, antes, a partir das diferenças,
buscar relações entre dois campos que, no âmbito da saúde pública,
encontram no termo psíquico um elo de ligação.
Se fazemos esta afirmação é porque, como já foi dito anteriormente,
pensamos não ser possível à saúde pública "assegurar as condições
necessárias à manutenção e reprodução da vida humana
saudável" (Sabroza, 1994) sem levar em conta o psíquico. Além disso,
se hoje a psicanálise se faz presente no campo da saúde pública, não
poderia deixar de ser a saúde mental que viabiliza esta presença, uma
vez que é geralmente nos serviços ou programas de saúde mental que, de
alguma forma, se inserem os psicanalistas que exercem sua prática em
unidades de saúde da rede pública.
Deparamo-nos, no entanto, com uma primeira dificuldade, visto que a
saúde mental e a psicanálise têm concepções bastante distintas no que
diz respeito ao psíquico. É a própria história de ambas que deixa
clara esta diferença, desde a fundação da psicanálise por Freud.
Diz-nos Guillermo Izaguirre (1999:245) que:
Os fundamentos da saúde mental, a concepção sob a qual se pensa este
tipo de práticas, a idéia de fundo que as sustenta, desenvolveu-se no
mundo ocidental a partir do predomínio da burguesia sob o nome de
modernidade. Baseada na idéia do desenvolvimento indefinido do homem
sobre a natureza e de um homem determinado pela supremacia da razão,
chegou a seu limite em fins do século XIX.
É justamente quando esta idéia de "um homem determinado pela
supremacia da razão" e, portanto, da consciência, chega a seu limite
que vemos surgir a psicanálise. De fato, a partir do fim do século
XIX
irrompe em todas as áreas do pensamento ocidental uma forte crítica a
esta (...) preeminência da razão, dando lugar ao que se chamou a
'crise da razão'. Em quase todos os terrenos do pensamento pode-se
observar este novo tratamento das idéias (...). Dentro deste clima de
inovação profunda do pensamento ocidental é que surge Freud (Id.Ibid:
246).
Ao descobrir o inconsciente e, assim, fundar a psicanálise, Freud faz
desmoronar a idéia de um homem determinado pela primazia da razão.
Desde os momentos finais do século XIX, o eu - a sede da consciência -
deixou de ser "o senhor em sua própria casa" (Freud, 1917:135). Com A
interpretação dos sonhos, Freud vem deixar claro que, em relação ao
homem, o determinismo que tem a supremacia é o do inconsciente. Duro
golpe desfechado contra o narcisismo humano, justamente ao findar do
século XIX, pois se A interpretação dos sonhos - que Freud sempre
considerou sua obra magna - só veio a público em 1900, no entanto,
como afirma seu próprio autor, já estava concluída desde o inverno de
1899 (Freud, 1932).
Percebe-se então que, desde seus respectivos fundamentos, saúde mental
e psicanálise configuram-se como campos distintos - o primeiro tem por
centro o homem determinado pela supremacia da razão e o segundo se
funda ao descentrar o homem de sua razão, quando Freud o desvela como
determinado pelo inconsciente. Assim, de acordo com seus próprios
fundamentos, saúde mental e psicanálise só poderão ter também
concepções bastante diferentes sobre o psíquico.
Se a saúde mental tem por base o homem da razão, isto a coloca numa
linhagem que nos leva a buscar sua ascendência na própria constituição
da psiquiatria, remetendo-nos de saída a Foucault e a sua História da
loucura (1999). Neste texto, o autor rediscute o velho embate entre
loucura e razão, abordando-o de um ponto de vista que não o da
psiquiatria; ao contrário, através do seu método singular de análise
histórica dos discursos e micropoderes, ele nos mostra como a
psiquiatria nasce desse confronto que, tributário da Idade Clássica,
foi sempre marcado pela exclusão da loucura. Esta exclusão, no seu
próprio nascedouro, materializa-se na invenção do internamento pelo
Classicismo em meados do século XVII (Foucault, 1999). E "é entre os
muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do século XIX
encontrarão os loucos; é lá que eles os deixarão, não sem antes se
vangloriarem por terem-nos 'libertado'" (Id.Ibid.:48).
Não é, pois, por acaso que Foucault inicia o capítulo sobre A grande
internação (Id.Ibid.:45) referindo-se a Descartes que, ainda na
primeira metade do século XVII, ao percorrer o caminho da dúvida, vem
afirmar com o seu cogito a supremacia da razão. Só pode fazê-lo, no
entanto, ao preço da exclusão da loucura, pois, para ele, como afirma
Foucault:
A loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento
(...) a loucura é excluída pelo sujeito que duvida (...) o perigo da
loucura desapareceu no próprio exercício da Razão. (...) O percurso da
dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo
está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o
sujeito detém seus direitos à verdade; domínio este que, para o
pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está
exilada (Id. Ibid.:46-47).
E assim permanecerá, durante um século e meio, sob o regime do
internamento, com as suas casas de força da Idade Clássica, até que,
em nome de uma suposta libertação, outra forma de exclusão surgirá em
fins do século XVIII, continuando a mantê-la exilada em nome da razão.
Estamos já então falando tanto do nascimento do asilo como do
nascimento da clínica psiquiátrica, com Pinel. Como afirma Bercherie
(1989:34), "Pinel foi daqueles que constituíram a clínica médica como
observação e análise sistemática dos fenômenos perceptíveis da
doença". Mas daí a dizer que ele e a psiquiatria do século XIX
libertaram a loucura do seu exílio vai uma grande distância...
Se o asilo foi criado como um novo espaço onde passa a habitar a
loucura, não foi para libertá-la, mas para melhor isolá-la. Sabemos
por Foucault (1999) que o internamento não era apenas destinado aos
loucos, mas também a outros grupos que a sociedade segregava: os
pobres, os libertinos, os doentes.
Trata-se agora de um outro tempo em que a sociedade burguesa, com o
advento da Revolução Industrial, passa a ver o pobre como força de
trabalho necessária, e já não mais se dispõe a manter os demais grupos
que antes conviviam com os loucos no internamento, restituindo-os à
liberdade, "com exceção dos próprios loucos. Estes passam a ocupar um
novo espaço de reclusão isoladamente (...) - o asilo" (Silva Filho,
2000:87). É onde, ao final do século XVIII, o pensamento médico e a
prática do internamento que haviam permanecido estranhos um ao outro
durante muito tempo aproximam-se "com o objetivo de uma primeira
convergência" (Foucault, 1999:423).
A loucura agora se oferece ao olhar do médico.
Ela se torna forma olhada, coisa investida pela linguagem, realidade
que se conhece; torna-se objeto. E se o novo espaço do internamento
aproxima (...) a loucura da razão, ele estabelece entre ambas uma
distância bem mais temível, um desequilíbrio que não mais poderá ser
invertido; por mais livre que seja a loucura no mundo que lhe prepara
o homem razoável (...) nunca deixará de ser para ele nada além de um
objeto (Id.Ibid.:439).
É a distância do olhar que agora, como barreira intransponível, coloca
a razão a salvo da loucura. E se o louco está então livre para
exprimir-se e pode ser ouvido nos seus delírios, isto só é possível no
espaço fechado do asilo onde, submetida como objeto ao olhar da razão,
sua loucura "se oferece livremente a nosso saber como verdade enfim
liberada. Este duplo movimento de liberação e sujeição constitui as
bases secretas sobre as quais repousa a experiência moderna da
loucura" (Id.Ibid.:455).
Destas bases secretas desponta o nome de Pinel, colocado por seus
contemporâneos na origem da psiquiatria moderna, e que, "no plano do
método, fundou uma tradição: a da clínica, como orientação consciente
e sistemática" (Bercherie, 1989:31). Origem e tradição que remetem ao
gesto mítico de Pinel, ao liberar das correntes os alienados de
Bicêtre. Mas é este mesmo gesto que, ao abrir à loucura o domínio da
liberdade, demarca, no asilo, o espaço de sua exclusão. "E é bem de
mito que se deve falar quando se faz passar (...) por liberação de uma
verdade o que é reconstituição de uma moral" (Foucault, 1999:476).
O tempo agora é o do tratamento moral, a que ficou para sempre ligado
o nome de Pinel, e dele fará parte a encenação da justiça.
Tudo é organizado para que o louco se reconheça nesse mundo do juízo
que o envolve de todos os lados; ele deve saber-se vigiado, julgado e
condenado; da falta à punição, a ligação deve ser evidente, como uma
culpabilidade reconhecida por todos. (...) O ciclo está duplamente
encerrado: a falta é punida e seu autor se reconhece culpado (Id.Ibid.:
494-495).
É assim que para Pinel a loucura como alienação é passível de cura. O
antigo alienado pode agora ser reinserido na sociedade porque, através
do tratamento moral, sua loucura está normalizada e sob controle.
O asilo da era positivista (...) é um espaço judiciário (...) do qual
só se consegue a libertação (...) pelo arrependimento. A loucura será
punida no asilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito tempo,
e pelo menos até nossos dias, permanecerá aprisionada num mundo moral
(Id.Ibid.:496).
Remetendo-se também a Foucault, afirma A.M. Lobosque:
O sentido desta prática moral escapará ao médico, na medida em que, no
século XIX, o positivismo veio impor-se à medicina e à psiquiatria:
contudo, embora esquecida em suas origens e em seu sentido, ela
permanece sempre manejada e sempre presente, imprimindo suas marcas à
psiquiatria dos nossos tempos (Lobosque: 1996:41).
Foi, portanto, como autoridade moral que o médico, ao adentrar os
muros do asilo, transformou-se na sua figura essencial. E foi então
que a loucura adquiriu o estatuto de doença mental, na medida em que
passou a ser um objeto para o conhecimento humano - um "objeto
construído pela psiquiatria", como afirma Amarante (1999:47).
"A psiquiatria vai tornar-se uma medicina de um estilo
particular" (Foucault, 1999:500) para a qual a origem da loucura
estará nas causas orgânicas ou nas disposições hereditárias. É assim
que, desde o seu início em Pinel, a clínica psiquiátrica afirmará,
como seu postulado básico, que "os distúrbios mentais devem ser
concebidos como uma variedade particular dos distúrbios
somáticos" (Bercherie, 1989:27). De fato, Pinel considerava a
alienação mental como uma doença no sentido das doenças orgânicas, um
distúrbio das funções superiores do sistema nervoso. Baseando-se na
antiga medicina classificatória, destacou as grandes classes dos
sintomas, mas sem levar em conta sua localização no corpo, ou seja, a
anatomia patológica.
É sobretudo por isso que esta primeira escola psiquiátrica será
questionada pelo saber médico "que visa o estabelecimento da doença
mental com base na racionalidade anátomo-clínica" (Silva Filho,
2000:91), cujo princípio básico já fora formulado por Bichat: "era a
lesão local que explicava o quadro clínico, e este só fazia manifestá-
la para o exterior" (Bercherie, 1989:34). A doença mental passa a ser
então sinônimo de dano cerebral, até que seja elaborada por Morel, em
1857, a teoria da degenerescência, que tem como essência o caráter de
transmissibilidade desta última. Tal teoria foi posteriormente
desenvolvida por Magnan, um dos representantes da psiquiatria clássica
que se estende por um período de quarenta anos, até a década de 1910.
Ao tomar como objeto as funções mais complexas do sistema nervoso
central, a psiquiatria de então localiza-se como um ramo da
neurologia, situação que, como sabemos, não vai se sustentar.
Ao longo de todo este período, (...) era com base no arco reflexo que
se concebia a atividade psíquica (...). Era uma atividade associativa,
no sentido de associações de idéias dos psicólogos, mas também no
sentido dos feixes associativos dos neurologistas (Id.Ibid.:134-135).
É neste período também que se situa Charcot. Apesar de ter descoberto
o papel das representações na gênese dos fenômenos histéricos e, com
isso, ter a princípio influenciado Freud, Charcot não deixou de ver
também na sintomatologia da histeria afecções funcionais do sistema
nervoso.
Mesmo na chamada psiquiatria moderna já do século XX, a questão do
psíquico estará sempre ligada ao biológico, seja na França ou na
Alemanha, os dois grandes berços da clínica psiquiátrica. Tanto é
assim que Jaspers, ao contestar o paralelismo psicofisiológico,
recorrerá "a representações teóricas, a mecanismos extra-conscientes,
essencialmente extraídos dos conhecimentos biológicos" (Id.Ibid.:265)
como explicação causal para os fatos psíquicos.
Ainda que, a partir do início do século XX, a psiquiatria tenha se
deixado permear por algumas das formulações de Freud, isto se deu de
forma parcial e geralmente ao preço da desfiguração ou mesmo da
exclusão dos próprios fundamentos da psicanálise. De fato, é
impossível compatibilizar uma concepção que tenha o biológico como
causa do psíquico com a radicalidade da descoberta freudiana do
inconsciente que vem estabelecer justamente um limite entre o psíquico
e o biológico, deixando este último como resto inabordável - mas não
como causa. Talvez isto justifique a necessidade sentida pelos
psiquiatras, a partir do declínio da clínica, de apresentar, no plano
teórico, grandes sistemas que se opusessem à psicanálise.
Esta regressão da clínica psiquiátrica, iniciada na década de 1920,
foi acentuada pelas "grandes descobertas da terapêutica
biológica" (Id.Ibid.:315). Os modernos tratamentos químicos, a
incidência dos medicamentos acabaram por dissolver a clínica, na
medida em que passaram a ser o seu princípio organizador.
De fato, com o advento das novas substâncias farmacológicas a partir
da década de 1950, "a nova prática psiquiátrica pode realizar suas
proposições de controle dos distúrbios dos enfermos mentais" (Silva
Filho, 2000:96). Ao reconfirmar, no corpo, a sede dos males dos
chamados "doentes", ao mesmo tempo que conserva sua autoridade sobre a
loucura, regulamentada desde o século passado, a medicina mental
reconcilia-se "com a racionalidade da medicina geral" (Id.Ibid.:96).
Se a descoberta do inconsciente por Freud fez desmoronar a supremacia
de um homem determinado pela razão, não a sepultou, no entanto. Tal
como fênix que ressurge das cinzas, a razão continua sua luta pelo
domínio, e não mais apenas da loucura, uma vez que tenta agora fazer
calar o homem no que este possa ter a dizer de sua condição humana de
ser falante que sofre.
Travestida em ideologia medicamentosa, a razão apresenta-se também
como solução para a "miséria neurótica" freudiana e até para o
incurável mal-estar de ser humano do homem. "Doença do pânico, fobia
social, estresse do executivo, fadiga crônica, dentre tantas outras,
são categorias que patologizam o cotidiano em suas bases
fundamentais" (Amarante, 1999:51).
Propomos que as "bases fundamentais" do cotidiano possam ser pensadas
em consonância com o mal-estar na cultura sobre o qual Freud nos
adverte. Assim, patologizá-lo é acrescentar ao cotidiano formas
desnecessárias de mal-estar, como vã tentativa de curar o incurável.
Não se trata, evidentemente, de negar a importância da
psicofarmacologia, mas de denunciar seus excessos, pois sabemos que os
psicotrópicos, atuando no organismo, "funcionam tanto melhor quando
sua prescrição leva em conta a questão do sujeito" (Lobosque,
1996:63).
É através deste longo percurso que acabamos de refazer que,
paradoxalmente, a psiquiatria passa a ter então como objetivo maior do
seu trabalho a promoção da saúde mental. Sem entrarmos na discussão
filosófica do binômio saúde e doença, apontamos, com Silva Filho
(2000:96), "o deslocamento da doença para a saúde mental como objetivo
prioritário dos atos médicos psiquiátricos".
Quanto ao termo Saúde Mental, parece-nos importante marcar uma
diferenciação: por um lado, ele se refere a um estado de vida mental
que se costuma definir em relação ao que seria o seu oposto - doença
mental; por outro, designa um campo complexo de práticas, sustentado
por diversas disciplinas, dentre as quais se destaca a psiquiatria, e
que se insere no âmbito mais vasto da Saúde Pública. Seja num sentido
ou no outro, o caminho até aqui percorrido nos autoriza a afirmar que,
para a saúde mental, a concepção do psíquico ainda continua a ser
predominantemente biológica.
No que diz respeito à psicanálise, desde o início o psíquico a que
Freud constantemente se refere é de outra ordem que não a do
biológico. O que não se nega, no entanto, é que foi da razão
biologicista da medicina que ele partiu, tendo feito uma carreira
brilhante como pesquisador, seja em histologia, fisiologia, anatomia
ou neurologia.
Se soube tirar de seus estudos médicos os princípios que o ajudaram a
fundar a psicanálise, por outro lado Freud também afirmou em sua
Apresentação autobiográfica (1925:8) nunca ter sentido "uma
preferência particular pela posição e pela atividade do médico". Seu
interesse maior dirigia-se antes para as questões da condição humana.
Talvez por isso considerasse os poetas e literatos mais próximos da
psicanálise que os médicos. Assim, é com freqüência que encontramos ao
longo de sua obra citações de Goethe, Shakespeare, Ibsen, dentre
outros. Talvez por isso também tenha podido escutar as histéricas,
lendo inclusive nas entrelinhas do seu discurso. Isto aponta,
pensamos, para algo fundamental que está na base mesma da formulação
do inconsciente freudiano - sua relação essencial com a linguagem,
reafirmada por Lacan ao enunciar em Radiofonia (s/data:14) que a
"linguagem é a condição do inconsciente".
Já no início do capítulo VI de A interpretação dos sonhos (1900:285),
Freud aponta esta relação do inconsciente com a linguagem, ao afirmar
que "o conteúdo do sonho se nos aparece como uma transferência dos
pensamentos do sonho a outro modo de expressão, cujos signos e leis de
articulação devemos aprender a discernir por via da comparação entre o
original e sua tradução", como procuramos destacar com os termos que
grifamos. São vários os textos em que, ao tratar das produções do
inconsciente, Freud trabalha rigorosamente com as palavras, indo
inclusive à minúcia da letra, sem deixar dúvidas sobre a questão do
inconsciente na sua relação com a linguagem.
Foi a partir do encontro com as histéricas de Charcot, foi por começar
a escutá-las, que Freud pôde chegar a sua formulação do inconsciente.
Formulação que poucos anos depois apresenta em A interpretação dos
sonhos, através da elaboração de um constructo que chamou de aparelho
psíquico. Trata-se evidentemente de um aparelho simbólico, concebido
como composto por diferentes instâncias ou sistemas que em nada fazem
pensar em localizações anatômicas, cerebrais.
Ao dizer que a idéia que se põe a sua disposição "é a de uma
localidade psíquica", Freud afirma também que terá o maior cuidado "em
não cair na tentação de determinar essa localidade psíquica como se
fosse anatômica" (Id.Ibid.:529). Diz ainda que "representações,
pensamentos e, em geral, produtos psíquicos não podem ser localizados
em elementos orgânicos do sistema nervoso, mas, por assim dizer, entre
eles, onde resistências e facilitações constituem seu
correlato" (Id.Ibid.:599) - ou seja, onde justamente não se trata do
biológico, mas de operações psíquicas efetuadas por um aparelho
simbólico.
É nesta mesma obra que, ao tratar da realidade psíquica, Freud faz
coincidir o inconsciente com o psíquico, ao afirmar que "o
inconsciente é o psíquico verdadeiramente real" (Id.Ibid.:600). E
acrescenta mais adiante: "O inconsciente - isto é, o psíquico - ocorre
como função de dois sistemas separados e isto já acontece na vida
normal da alma" (Id.Ibid.:602).
Se para Freud ainda havia a tentação de dar ao psíquico uma
localização anatômica, tal tentação sequer se coloca para Lacan. Desde
os anos iniciais de seu ensinamento, ao formular a proposição o
inconsciente está estruturado como uma linguagem - inconsciente que,
em Freud, é o psíquico - , Lacan impossibilita qualquer tentativa de
estabelecer uma relação de continuidade entre o orgânico e o psíquico.
Este diz respeito à questão da subjetividade que se instaura a partir
do significante, implicando a particularidade do sujeito.
Foi seguindo Freud, no entanto, que vimos se estabelecer, desde o
início, uma diferença fundamental entre psicanálise e saúde mental, no
que se refere ao termo psíquico. Se, como afirmamos, saúde mental e
psicanálise encontram neste termo um ponto de conjunção, trata-se de
uma conjunção disjuntiva que impossibilita a inclusão da psicanálise
no campo da saúde mental.
Não é apenas no que diz respeito ao termo psíquico que se evidencia a
dificuldade de relação entre saúde mental e psicanálise. Outros
impasses existem, quando consideramos que é na psiquiatria que está a
raiz mesma da saúde mental. Detenhamo-nos apenas em dois - aqueles que
se referem às diferenças quanto às questões da demanda e do sintoma,
tanto na psiquiatria como na psicanálise.
Quanto à demanda, tomando primeiramente a que é dirigida ao
psiquiatra, apresenta-se em geral como uma demanda social que visa
essencialmente à readaptação do paciente à sociedade. Muitas vezes
sequer é feita pelo próprio paciente, quando este é pressuposto como
incapaz de formular uma demanda. E ainda que o faça, dificilmente será
validada como discurso: serão elementos da anamnese que se enquadrarão
numa nosologia - o que significa que as questões do sujeito não serão
valorizadas.
No que se refere à psicanálise, a demanda que o paciente dirige ao
psicanalista é de outra ordem e implica fundamentalmente suas questões
de sujeito. É por estas questões, e ainda que sem saber bem quais
sejam, que ele sofre, expressando-as, também sem saber, nos seus
sintomas. O que ele sabe é que tais sintomas o fazem sofrer e, deles
falando ao analista, o paciente lhe demanda que deste sofrimento o
liberte. Já estamos então na questão do sintoma e de suas diferenças,
no que diz respeito à psiquiatria e à psicanálise.
Podemos dizer que, de certa maneira, o sintoma psiquiátrico é
constituído pelo psiquiatra, na medida em que é ele quem o observa, o
descreve e o classifica, dando-lhe então um nome.
Quanto ao sintoma psicanalítico, trata-se de algo muito diferente. Em
primeiro lugar porque, para que exista como tal, é preciso que seja
falado ao psicanalista pelo próprio paciente, embora isto não baste
para que um sintoma se constitua como psicanalítico. Aquele que chega
ao analista queixando-se de seu sintoma, sente-o como um corpo
estranho, como um sofrimento que lhe vem de fora. Será então
necessário que o sujeito possa se perceber também como responsável por
aquilo que o faz sofrer e, nisto, o analista está implicado. Assim, é
na experiência analítica mesma, no endereçamento do discurso do
paciente ao analista e na medida em que o próprio analista passa a
fazer parte do sintoma do sujeito que este sintoma se torna
psicanalítico.
Se, como vimos até agora, há questões fundamentais que impossibilitam
a inclusão da psicanálise no campo da saúde mental, busquemos, no
entanto, o possível de uma relação entre ambas que possa se configurar
ao menos como um campo de intersecção.
Comecemos por Freud e por seu desejo de que tal seja possível, quando,
nos Dois artigos de enciclopédia: "Psicanálise" e "Teoria da libido",
escreve sobre a relação da psicanálise com a psiquiatria:
A psicanálise não se encontra em oposição a ela, como se acreditaria
pela conduta quase unânime dos psiquiatras. Ao contrário, na sua
qualidade de psicologia do profundo - psicologia dos processos da vida
anímica subtraídos da consciência - , está chamada a oferecer-lhe a
base indispensável e a remediar suas limitações. O futuro criará,
previsivelmente, uma psiquiatria científica à que a psicanálise terá
servido de introdução (Freud: 1923:247).
Desde algum tempo, há autores que pensam e trabalham no sentido de
estabelecer, na prática, esta possibilidade de relação, sem
desconhecer que se tratará sempre de uma relação não-toda, na medida
em que implica também uma permanente disjunção. Lendo alguns deles,
percebemos que aquilo a que apontam é um caminho a construir, através
de algumas experiências que vêm sendo feitas e que incluem a questão
de uma escolha e de uma aposta.
Parece-nos fundamental, se se trata de buscar uma intersecção possível
entre saúde mental e psicanálise, que uma primeira escolha se faça e
esta diz respeito à coisa mental, ou seja, ao psíquico. Assim,
concordamos com Lobosque (1996:36-37) quando, ao colocar sua escolha,
afirma: "(...) é à coisa mental freudiana que se pode referir a
formação do trabalhador de saúde mental quando está em causa sua
responsabilidade como clínico". A autora deixa claro que deseja que a
formação em saúde mental esteja articulada ao psíquico freudiano e,
nisto, seu desejo está em consonância com o de Freud, quando este
escreveu sobre a relação da psicanálise com a psiquiatria.
Pensamos que é justamente o psíquico freudiano, ou seja, o
inconsciente, a base indispensável que a psicanálise tem a oferecer à
saúde mental e, se esta aceita a oferta, pode-se inaugurar então a
possibilidade de um campo de intersecção entre ambas. Certamente isto
terá conseqüências e talvez a primeira delas seja colocar em questão
as próprias definições oficiais, tanto de saúde como de saúde mental.
Relembremos aqui a definição de saúde dada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) - "não só a ausência de doença, mas o completo estado de
bem-estar físico, mental e social" (Izaguirre, 1999:253) - , e os
termos em que se expressa a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS),
sobre saúde mental:
Na atualidade saúde mental não é apenas sinônimo da tradicional
higiene mental, nem da clínica psiquiátrica, mas implica um sentido
muito mais amplo e abrangente e inclui a problemática de saúde e
doença, sua ecologia, a utilização e avaliação das instituições, seu
pessoal, o estudo das necessidades da comunidade e os recursos para
satisfazê-la... (Id.Ibid.:248).
Como falarmos, no entanto, em "completo estado de bem-estar mental",
quando o mental a que Freud se refere é o psíquico, isto é, o
inconsciente? Há que se reconhecer o impossível disto, o "nirvânico"
desta proposta, pois o inconsciente emerge exatamente onde se
manifesta, no discurso, a incurável divisão do sujeito que fala sem
saber bem o que diz, revelando, assim, a sua incompletude. Ou ainda:
poderá a saúde mental ser "sinônimo da tradicional higiene mental" ao
aceitar tomar como base a que lhe oferece a psicanálise? Como fazer a
higiene do inconsciente? E se o inconsciente implica a particularidade
do sujeito que se constitui a partir do significante, poderá a saúde
mental estudar as necessidades da comunidade sem levar em conta a
singularidade do sujeito?
Pensamos que são questões assim que levam Lobosque a afirmar
(1996:40): "Não estamos condenados às definições da OMS", não sem
antes ter escrito: "Eis aí o interesse político da questão" (Id.Ibid.:
39-40). Isto é fundamental, uma vez que as definições acima
mencionadas são expressões de uma política de saúde mental.
Ao dizer política, estamos nos referindo, com Izaguirre (Id.Ibid.:
248), a:
Decisões tomadas a níveis de organismos que têm a ver com determinada
prática social; que decidem ações tendentes à obtenção do equilíbrio
entre as pessoas e entre diferentes setores sociais; que tendem a
prometer o que se define como o bem-estar geral ou, ao menos, o bem-
estar para o maior número de pessoas de um universo definido. Se se
quer ser mais amplo em sua definição, podemos dizer que se trata da
obtenção da felicidade para todos ou, ao menos, para a maioria. É uma
promessa de felicidade.
Uma promessa que a psicanálise não tem como fazer, quando Freud nos
adverte justamente sobre o mal-estar na cultura.
Assim, ao aceitar como base o inconsciente, a saúde mental estaria ao
mesmo tempo propondo, através de suas práticas, a subversão de uma
política institucionalizada. E não poderia ser de outra forma, quando
sabemos que o inconsciente é subversivo na sua radicalidade.
É esta radicalidade que Lacan sustenta e faz valer quando, na sua
obra, formaliza o inconsciente freudiano. Por isso, referimo-nos aqui
a autores que, tendo uma prática embasada na teoria lacaniana, apostam
numa intersecção possível entre saúde mental e psicanálise, buscando
"um espaço rigoroso de articulação" (Lobosque, 1996:62) entre
psiquiatria e psicanálise, sem tentar uma síntese entre ambas. Não
desconhecemos, no entanto, que, através de percursos teóricos
diferentes, há outros autores que trabalham também no mesmo sentido.
Como já dissemos anteriormente, trata-se de um caminho ainda em
construção que vem sendo aberto através de experiências importantes,
como as narradas por Lobosque (1996), em Minas Gerais, ou como as que
vêm sendo realizadas em Buenos Aires, a partir do Departamento de
Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires,
relatados por Izaguirre em Salud Mental y Psicoanálisis (1999).
São estes apenas dois exemplos - um deles argentino - , mas
certamente, e aqui no Brasil, vários outros poderiam ser mencionados.
Se não o fazemos, é porque limites se impõem a este nosso trabalho,
inclusive quanto ao tempo necessário para uma busca maior na
literatura. Assim, um recorte é preciso - um recorte que, não podemos
negar, implica também uma escolha.
Importante se nos afigura incluir ainda, no marco desta escolha, uma
outra autora - Ana Cristina Figueiredo - , cuja "atuação como docente
tem se pautado na formação de profissionais que se propõem a
desenvolver um trabalho clínico referido à psicanálise, voltado para o
atendimento ambulatorial em instituições públicas de saúde" (1997:9).
Nosso interesse aqui é marcar que a autora, embora tomando um viés de
atuação diferente daqueles tomados pelos dois autores acima referidos,
aponta também dificuldades e divergências que emergem, quando se trata
de buscar uma relação possível entre saúde mental e psicanálise. Neste
sentido a citamos, quando escreve sobre a clínica psicanalítica no
ambulatório público (Id.Ibid.:10-11):
Uma das criticas feitas freqüentemente ao ambulatório, especialmente
pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de
funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática,
com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço
público. Penso justamente o contrário. O ambulatório não é um
simulacro do consultório; é o próprio consultório tornado público.
Desenvolvendo, no entanto, seu trabalho no Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a autora está necessariamente
no campo da chamada saúde mental, também construindo, na prática, uma
intersecção possível da psicanálise com a saúde mental. E, ao fazê-lo,
está provando que o ambulatório não é um simulacro do consultório
privado justamente porque, nele, "qualquer pessoa tem o direito de ser
atendida" (Id.Ibid.:11) - diríamos nós, de ser escutada na sua
singularidade de sujeito.
Com a afirmação acima, estamos evidentemente nos referindo à escuta
psicanalítica que nos remete, então, ao campo da psicanálise, de que
trataremos no próximo capítulo.
CAPÍTULO II
PELOS CAMINHOS DA PSICANÁLISE: INCONSCIENTE E PULSÃO; TRANSFERÊNCIA E
DESEJO DO ANALISTA
"A suposição de que existem processos mentais inconscientes; a
admissão da doutrina da resistência e do recalque; a apreciação da
sexualidade e do complexo de Édipo; aí estão os principais conteúdos
da psicanálise e as bases de sua teoria, e quem não possa admiti-los
todos não deveria contar-se entre os psicanalistas".
(Freud, 1923)
2.1 Introdução
Trataremos aqui do arcabouço teórico mínimo que consideramos
indispensável para abordar a prática da psicanálise, onde quer que
esta se faça presente. E o faremos através de alguns recortes nas
obras de Freud e Lacan: isto nos permitirá trabalhar com as
entrevistas que fizemos, visando a atingir os objetivos propostos.
Não é fácil, porém, estabelecer este mínimo quando se trata de fazer
um recorte na teoria psicanalítica, na medida em que esta se compõe de
uma trama de conceitos entrelaçados, em que um sempre remete a outro.
Freud partiu do pensamento científico de sua época e foi ele mesmo
surpreendido pela descoberta do inconsciente. Fundou então a
psicanálise, construindo passo a passo o que hoje chamamos de campo
freudiano. Um campo que, posteriormente separado da medicina, desde
então faz parte da cultura.
Por isso, talvez, muitos dos termos que nomeiam alguns de seus
conceitos são hoje utilizados pelo senso comum - até porque Freud não
os inventou, tendo-os encontrado à mão no vocabulário existente.
Termos como o inconsciente, a transferência e a repetição já eram
usados anteriormente. No entanto, ao empregá-los como conceitos
psicanalíticos, Freud estabeleceu um corte, separando-os do sentido
comum.
Por isso, trabalharemos os conceitos acima propostos e alguns outros
que se façam necessários.
2.2 Inconsciente e pulsão
Se Freud fundou a psicanálise a partir de sua escuta das histéricas,
certamente foi porque percebeu que a razão médica, ao considerar o
psíquico como biológico, esgotara-se diante das dificuldades que este
psíquico lhe apresentava. Difícil situação para quem, como homem das
ciências de seu tempo, estava marcado pelo cogito cartesiano, que
afirmava a supremacia da razão. Ao se dispor a escutar as histéricas,
é justamente esta primazia que Freud vai pôr em questão.
Assim, onde Breuer renunciou, fugindo assustado da gravidez histérica
de Anna O. - "a primeira manifestação dos efeitos do amor de
transferência na história da psicanálise" (Silvestre, 1991:13) - ,
Freud, ao poder escutá-la, inaugurava "a via que para sempre levará
seu nome" (Lacan, 1998:871). Ao aceitar a direção da talking cure
(cura de conversação) que lhe indicara esta famosa histérica, iniciava
um percurso novo em relação ao psíquico. Um percurso que lhe
permitiria avançar na clínica da neurose - foram sempre os impasses
clínicos que o impulsionaram na construção da psicanálise.
Àquela altura, Freud já compreendera que a dimensão humana, justamente
a que permite ao homem falar, não é da ordem do biológico. Ao
contrário, esta dimensão só se instaura quando, ao entrar no mundo da
linguagem, o homem sai da sua condição de infans, ainda incapaz de
falar, subsumindo o que tinha de apenas biológico ou animal na nova
dimensão simbólica. É esta perda constitutiva, inaugural para o ser
falante, que vai lhe permitir desejar: só se pode desejar porque algo
falta, e a falta tem sempre a ver com o que, de saída, se perdeu.
Voltemos, porém, àquele tempo inaugural das primeiras histéricas da
psicanálise quando Freud, na tentativa de decifrar o caráter
enigmático dos sintomas histéricos, decide abandonar o método
hipnótico que até então empregara, juntamente com Breuer, e seguir a
direção que lhe apontara Anna O. Ele aprendera com Charcot que, nas
pacientes histéricas, os sintomas se produziam e se dissolviam apenas
pelo efeito da palavra.
Foi este caráter de enigma com que se apresentavam em sua clínica os
sintomas neuróticos que levou Freud à necessidade de construir o
conceito de inconsciente. Enigma que também se fazia presente, na vida
cotidiana, em uma série de fenômenos aparentemente tão banais que, até
então, não tinham merecido qualquer atenção especial: sonhos, chistes
e operações falhas que afetam tanto a memória (esquecimentos), como a
fala, a leitura, a escrita (lapsos) ou as ações (atos sintomáticos). É
a todos estes fenômenos, incluindo os sintomas, que Lacan chamará de
formações ou produções do inconsciente, tendo inclusive lhes dedicado
um dos livros do seu Seminário, o de número cinco - As formações do
inconsciente.
Antes, porém, de chegar a conceituar o inconsciente, Freud o formulou
como hipótese:
Quase todos [os sintomas histéricos] se haviam formado como
restos (...) de vivências plenas de afeto que, por isso, chamamos
depois de 'traumas psíquicos'; e sua particularidade se esclarecia por
referência à cena traumática que os causou. (...) eram determinados
pelas cenas cujos restos mnêmicos eles representavam, e já não se
devia descrevê-los como operações arbitrárias ou enigmáticas das
neuroses. Anotemos só um desvio a respeito daquela expectativa. Nem
sempre era uma única vivência que deixava como seqüela o sintoma;
freqüentemente haviam concorrido para esse efeito numerosos traumas,
às vezes de um mesmo tipo. Toda esta cadeia de lembranças patogênicas
devia ser reproduzida em sua seqüência cronológica, e certamente em
sentido inverso: as últimas primeiro e as primeiras por último; era de
todo impossível avançar até o primeiro trauma, que costumava ser o
mais eficaz (...) (Freud, 1910:11).
Este trecho faz parte da primeira das Cinco conferências sobre
psicanálise, pronunciadas por Freud nos Estados Unidos em 1909 e
publicadas em 1910. Estas conferências resumem o que, desde 1893,
vinha ele formulando de sua teoria. As idéias expostas acima foram
desenvolvidas em A etiologia da histeria, de 1896.
Naquela época, ainda sob a influência de Charcot, Freud aceitava e
procurava desenvolver, a seu modo, a teoria da origem traumática da
histeria. Acreditava que os traumas psíquicos se relacionavam a
acontecimentos de fato vividos na realidade prática, concreta. Por
exemplo, podemos ler neste mesmo texto: "Em alguns casos, certamente,
são vivências que devem ser reconhecidas como traumas graves: uma
tentativa de defloramento que revela à menina imatura, de um só golpe,
toda a brutalidade do prazer sexual" (Freud, 1896:200).
Sabemos que, pouco depois, abandonará esta teoria, ao perceber que:
A análise havia levado por um caminho correto até estes traumas
sexuais infantis e, no entanto, eles não eram verdadeiros. (...) Se os
histéricos reconduzem seus sintomas a traumas inventados, aí está
precisamente o fato novo, a saber, que eles fantasiam estas cenas, e a
realidade psíquica precisa ser levada em conta junto à realidade
prática (Freud, 1914:17).
Ao dizer isto, Freud não está desconhecendo ou negando que, de fato,
ocorrem situações como a relatada no exemplo acima. Sabemos,
inclusive, que se trata de ocorrências relativamente freqüentes e que
não são sem conseqüências psíquicas para quem as sofre. Há, no
entanto, dois aspectos a ressaltar: o primeiro é que tais
conseqüências são particulares para cada sujeito, na medida em que
dependem de como cada um vivenciou o trauma sofrido. O segundo aspecto
- justamente aquele que Freud ressalta - é que os sujeitos neuróticos,
mesmo sem terem vivido na realidade prática situações desse tipo,
podem vivenciá-las como fantasias inconscientes.
Na primeira das Cinco lições, que remete às idéias desenvolvidas em
1896, Freud colocava alguns aspectos fundamentais de sua teoria que
nunca abandonou. Ao falar em cena, relacionava-a ao trauma psíquico.
Portanto, o psíquico e sua cena só poderiam ser compreendidos com o
conceito de inconsciente.
Ao afirmar que "nem sempre era uma única vivência que deixava como
seqüela o sintoma", está se referindo ao conceito de
sobredeterminação; ou seja, à questão de que o sintoma "remete para
elementos inconscientes múltiplos" (Laplanche & Pontalis, 1975: 641),
o que acontece também com as demais formações do inconsciente. Trata-
se de cenas cujas lembranças em cadeia são reproduzidas em palavras.
São várias "cadeias ramificadas à maneira de uma árvore
genealógica" (Freud, 1896:196) cujas lembranças devem ser
reproduzidas, sempre das mais recentes para as mais antigas.
Tais lembranças, que em se tratando dos sintomas são patogênicas,
devem produzir associações. Mas há um ponto em que estas associações
se detêm; é de todo impossível avançar até o primeiro trauma,
geralmente o mais eficaz. E aí está uma questão fundamental, também
aqui adiantada por Freud: o primeiro está sempre perdido, só deixando
como marca da perda um traço inacessível à fala. No entanto, esta
perda primeira possibilita que a criança se humanize pela entrada no
mundo simbólico da linguagem; e é esta a sua eficácia fundamental.
Pensamos que cabem aqui algumas palavras sobre os três registros
postulados por Lacan, a partir de 1953, cuja formulação irá
desenvolver ao longo de todo o seu ensinamento. No entanto, ele só os
pode postular como simbólico, real e imaginário porque, desde o
princípio, detectou-os em Freud, embora tenha sido ele, Lacan, quem os
formulou como tais.
O simbólico - conjunto dos significantes necessariamente incompleto -
é a estrutura na qual nos constituímos como humanos, seres falantes,
pela entrada na linguagem. Acabamos de ver, porém, que é com uma perda
primeira - o primeiro trauma - que pagamos o preço dessa entrada no
simbólico. Perdendo o que tínhamos numa época mítica, primeva, de
apenas biológico, animal, fundamo-nos como sujeitos, mas sujeitos
assujeitados à linguagem. E o que se perde é irrecuperável; por isso,
é impossível avançar até o primeiro trauma. Se diante dele as
associações se detêm, é justamente porque se trata de algo desde
sempre perdido para o simbólico e, como dissemos antes, inacessível à
fala. Estamos já então no registro lacaniano do real.
Neste momento, o real é o que se perde. Por isso, Lacan formulou
também o real como impossível e, lendo-o, A. C. Figueiredo pode
afirmar: "Real e trauma se equivalem" (Figueiredo, 1997:143). E pode
afirmá-lo porque, a modo de pergunta, é Lacan quem o diz em Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise: "Não é notável que, na origem
da experiência analítica, o real seja apresentado na forma do que nele
[está se referindo ao traumatismo] há de inassimilável - na
forma do trauma (...)?" (Lacan, 1979:57).
Quanto ao registro do imaginário, relaciona-se com o que o sujeito
imagina como completude que poderia encobrir a perda, a partir da qual
se constitui. Ainda muito pequena, a criança se reconhece no espelho
do outro como imagem completa antecipada, em relação a sua maturação
neurológica; ou seja, escapando a qualquer determinismo biológico.
A imagem é sem dúvida a sua, mas, ao mesmo tempo, é a de um outro, uma
vez que ela [criança] está em déficit com respeito à mesma.
É devido a este intervalo que a imagem, de fato, a captura e que
[a criança] se identifica a ela (Miller, 1984:12).
Voltemos a Freud. Nos trechos de seus artigos citados, e já aqui
apresentados, podemos perceber como, ao ir formulando sua hipótese do
inconsciente, Freud inicia também a construção do conceito
psicanalítico de sintoma. Este conceito estará, por sua vez,
relacionado à questão do recalque e do desejo sexual.
Freud vai tecendo a intrincada rede conceitual da teoria
psicanalítica. Este tortuoso caminho, só o poderá construir a partir
do campo da transferência que se instaura na particularidade de cada
análise. Particularidade que reconheceu ao escutar a histérica e
aceitar seguir, a seu modo, a indicação de Anna O. à associação livre
que, desde então, instituiu como a regra fundamental da psicanálise.
Esta regra ele a descreve na terceira das Cinco conferências sobre
psicanálise, logo depois de definir o "complexo", de acordo com Jung e
outros, como "um grupo de elementos de representação investidos de
afeto" (Freud, 1910:27). Diz então que:
Se para buscar um complexo recalcado partimos em certo doente do
último que ainda recorda, temos todas as probabilidades de desvendá-lo
desde que ele [doente] ponha a nossa disposição um número
suficiente de associações livres. Deixamos então o doente dizer o que
quiser, e nos atemos à premissa de que não pode ocorrer-lhe nada senão
aquilo que de forma indireta dependa do complexo buscado. Se este
caminho para descobrir o recalcado lhes parece fatigante, posso
assegurar-lhes que é o único transitável (Id. Ibid.:27).
Freud acrescenta que o doente deve renunciar a qualquer seleção
crítica, dizer tudo que lhe passe pela cabeça, especialmente se lhe
for desagradável ocupar seu pensamento com determinada associação.
"Por meio de sua obediência a essa regra, garantimo-nos o material que
nos põe na pista dos complexos recalcados" (Id. Ibid.: 28).
Como diz, no entanto, M. Silvestre, há uma ironia da regra fundamental
- "É a constatação da extrema coerção da palavra (...). Não apenas o
sujeito não diz o que quer, mas aquilo que diz, diz outra coisa que
não o que pensava dizer. Surpresa dupla, que motiva em Freud a
hipótese do inconsciente" (Silvestre, 1991:51).
Na Etiologia da histeria, Freud afirma a importância da sexualidade na
etiologia das neuroses em geral. Àquela altura, acreditava que os
traumas sexuais a que os neuróticos remetiam seus sintomas, via
associação livre, tinham de fato acontecido. Ainda não percebera que
as cenas sexuais traumáticas eram criadas como fantasias
inconscientes. Constituíam-se, pois, numa outra cena - a cena do
inconsciente - ou seja, numa realidade que era psíquica. Como reafirma
cerca de duas décadas depois, na 23a. das suas Conferências de
introdução à psicanálise - Os caminhos da formação de sintoma - ,
"elas possuem realidade psíquica, por oposição a uma realidade
material, e pouco a pouco aprendemos a compreender que no mundo das
neuroses a realidade psíquica é a decisiva" (Freud, 1917a: 336).
No entanto, não é fácil obter, a partir dos sintomas, esta realidade
das fantasias inconscientes. Realidade que Lacan postula como um
revestimento do real por uma certa montagem que comporta o simbólico e
o imaginário. Compreende-se a dificuldade de aproximação a esta
realidade psíquica, uma vez que, se é encobrimento da perda real, ao
mesmo tempo é o último bastião, antes que o sujeito com ela se depare.
Por outro lado, mesmo sem saber, o sujeito se prende a esta realidade,
na medida em que, paradoxalmente, ela lhe permite gozar com o mesmo
sintoma que o faz sofrer. É o que Freud nos diz na quinta das Cinco
conferências sobre psicanálise:
O homem enérgico e vencedor é aquele que consegue transpor, mediante o
trabalho, suas fantasias de desejo em realidade [material].
Toda vez que, pelas resistências do mundo exterior e pela fraqueza do
indivíduo isto não acontece (...), retira-se para seu mundo de
fantasia que lhe proporciona satisfação [nome freudiano do
gozo] e cujo conteúdo, no caso de adoecer, transpõe em sintomas
(Freud, 1910: 46).
Se isto acontece sem que o sujeito conscientemente o saiba é devido ao
recalque, de que não apenas o sintoma é tributário, como também as
demais formações do inconsciente.
Ainda que Freud tenha afirmado que "a teoria do recalque é o pilar
fundamental sobre o qual repousa o edifício da psicanálise, sua peça
mais essencial" (Freud, 1914:15), evidentemente não vamos aqui
desenvolvê-la. Não podemos, porém, nos furtar a tocar em alguns
pontos.
Verdrängung é o termo alemão para recalque, também traduzido por
repressão, cujo "verbo verdrängen genericamente significa 'empurrar
para o lado', 'desalojar' " (Hanns, 1996: 355). Assim, se o recalque
freudiano implica o esforço de desalojar algo da consciência, este
algo desalojado só poderia ficar como inconsciente.
Freud, no entanto, logo percebeu que o inconsciente não era apenas uma
qualidade do que não está presente na consciência em um dado momento.
Embora seja apenas na Interpretação dos sonhos que irá, pela primeira
vez, formular o inconsciente como uma estrutura, com seus mecanismos
próprios de funcionamento, a leitura de seus textos anteriores já
revela que o recalque estabelece uma separação. Se é uma separação
entre inconsciente e consciência, isto já aponta para lugares
distintos e não apenas para estados diferentes.
O recalque é a operação fundante do inconsciente e também da neurose;
por isso, é a pedra angular sobre a qual repousa o "edifício da
psicanálise". Afinal, foi primeiro investigando os sintomas
neuróticos, a partir das histéricas, que Freud pôde chegar à fundação
do inconsciente, tendo percebido que os sintomas implicavam sempre o
sexual. Recalque, inconsciente e sintoma aparecem então interligados.
É Freud quem o diz, quando deles falou, por exemplo, na segunda de
suas conferências nos Estados Unidos, referindo-se aos tempos ainda
inaugurais da psicanálise:
Mediante a indagação dos histéricos e outros neuróticos, convencemo-
nos de que neles fracassou o recalque da idéia enlaçada com o desejo
insuportável. É certo que a expeliram para fora da consciência e da
lembrança e, com isso, se pouparam aparentemente de uma grande soma de
desprazer; mas a moção de desejo recalcada perdura no inconsciente, à
espreita da oportunidade de ser ativada; e logo consegue enviar à
consciência uma formação substitutiva, disfarçada e irreconhecível, do
recalcado, à qual logo se enlaçam as mesmas sensações de desprazer que
se acreditou evitar por meio do recalque (Freud, 1910: 23-24).
Se Freud fala em fracasso do recalque é porque o mesmo já se efetivara
anteriormente, separando o inconsciente da consciência. O que estava
recalcado era a idéia e esta permanece inconsciente, sem poder ser
lembrada, porque se trata de uma idéia cuja lembrança é insuportável.
E é insuportável porque remete ao que Freud chamava na época de cenas
sexuais traumáticas que, na verdade, são criadas como fantasias
inconscientes relacionadas ao sexual. Mas esta moção de desejo
(sexual) continua no inconsciente. Assim que algo a coloca em
atividade, envia à consciência uma formação substitutiva. "Esta
formação substitutiva da idéia recalcada" (Id.Ibid.: 24) é o sintoma.
Sintoma que vai causar o mesmo desprazer que se acreditou evitar por
meio do recalque da idéia insuportável, e que o sujeito percebe como
um corpo estranho, tal o grau de desfiguração sofrido. O sintoma,
assim como as demais formações do inconsciente, é então um retorno ou
um derivado do recalcado que não é reconhecido como tal. Nele, porém,
se pode comprovar,
junto aos indícios da desfiguração, um resto de semelhança com a idéia
originariamente recalcada; os caminhos pelos quais se consumou a
formação substitutiva podem ser descobertos no curso do tratamento
psicanalítico do enfermo (..) (Id.Ibid.: 24).
Sabemos que antes de Freud todas as formas de inconsciente conhecidas
designavam o que não era consciente. O inconsciente era apenas uma
propriedade daquilo que não era dado à consciência.
Até Freud, o sujeito era sinônimo de consciência, um sujeito cujo
pensar consciente o levava a produzir e acumular saber, sempre mais. É
este sujeito que Freud subverte. Ao escutar seus primeiros pacientes
neuróticos, aos poucos se dá conta de que há um pensar inconsciente,
um pensamento que constitui um saber, ainda que saber não sabido.
Saber inconsciente que divide o sujeito, fazendo-o falar sem saber o
que diz e dizendo outra coisa que não o que pensava dizer. Por isso,
podemos afirmar com Lacan que, quanto ao inconsciente, não se trata de
buscá-lo em nenhuma profundidade. É na superfície mesma do discurso
que ele se manifesta, justamente onde o discurso da consciência
tropeça e falha.
O inconsciente descoberto por Freud, mesmo quando ele o formulava
ainda apenas como hipótese "nada tem a ver com as formas ditas do
inconsciente que o precederam, mesmo as que o acompanhavam, mesmo as
que o acompanham ainda", como afirma Lacan (1979: 29) em Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise.
É, no entanto, em A interpretação dos sonhos que Freud dá ao
inconsciente um estatuto novo, substantivo. Conceitua-o como um
sistema que nomeia de " 'o inconsciente', sistema que se dá a conhecer
pelo sinal distintivo de serem inconscientes os processos singulares
que o compõem" (1912b:277). Propõe, para designar este sistema, as
letras Ubw, abreviatura da palavra "inconsciente" em alemão -
Unbewusst. Trata-se da instância fundamental dentre as três que vão
compor o aparelho psíquico.
Se Freud pode reafirmar, em 1910, o que já dissera anteriormente, ou
seja, que "a interpretação dos sonhos é a via régia para o
conhecimento do inconsciente" (1910:29), é devido à estrutura de
linguagem que descobriu nos sonhos. Percebeu que "os processos
singulares" que compõem o sistema inconsciente que operam tanto na
estruturação do sonho como nas suas demais produções são, na verdade,
mecanismos de linguagem - fundamentalmente a condensação e o
deslocamento. Para Lacan, eles têm seus respectivos protótipos nas
categorias lingüísticas da metáfora e da metonímia.
Estes mecanismos são os principais responsáveis pela desfiguração dos
desejos sexuais recalcados da qual o sintoma resulta como formação
substitutiva. No caso dos sonhos, tais mecanismos em ação constituem o
próprio trabalho do sonho, isto é, a elaboração onírica. É este
trabalho de disfarce que permite a transcrição dos pensamentos
inconscientes em um sonho que se pode relatar conscientemente. Este
relato do sonho é sempre incompleto e parece às vezes tão absurdo e
estranho que, nele, o sujeito não se reconhece implicado.
Por isso, diz Jorge M. Gimenez (1999:51), "quem sonha, faz um chiste,
padece um sintoma ou produz um ato falho, está habitado por um sentido
que ignora". É este sentido ignorado que uma análise buscará fazer
emergir por um caminho inverso àquele que foi, no caso dos sonhos, o
da elaboração onírica. Trata-se da interpretação dos sonhos que, via
associação livre, irá desfazer, até certo ponto, as distorções cujo
resultado é o relato do sonho.
Mas Freud deixa claro que não há interpretação completa. Esta só vai
até um certo lugar que deve permanecer em sombras, porque aí existe
"um novelo de pensamentos oníricos que não se deixam desenredar (...).
É o umbigo do sonho, o lugar em que ele [sonho] se assenta
no não conhecido" (Freud, 1900:519). É deste lugar opaco que "se eleva
o desejo do sonho como o cogumelo de seu micélio" (Id.Ibid.: 519).
Podemos pensar este umbigo do sonho, lugar do não conhecido, mas a
partir do qual "os pensamentos oníricos ramificam-se em todas as
direções" (Id.Ibid.: 519), em analogia com o primeiro trauma de que já
falara Freud.
Ora, o umbigo, como metáfora da vida, remete à origem sempre perdida,
buraco que se fecha, mas deixa uma cicatriz, um traço, como marca do
que se perdeu.
Se é a partir deste ponto central que os pensamentos se expandem no
inconsciente em todas as direções, por outro lado, este ponto também
fica como um limite à interpretação. E os pensamentos oníricos que a
partir daí se ramificam, suportam o desejo que só pode se elevar, como
o cogumelo se eleva do seu micélio, onde uma perda real é circunscrita
por uma trama de pensamentos inconscientes. Trama do simbólico, na
medida em que os pensamentos inconscientes são, para Freud, cadeias de
representações e, para Lacan, cadeias de significantes.
É no item sobre Regressão, do capítulo VII da Interpretação dos
Sonhos, que Freud marca o inconsciente como outra cena, ao afirmar que
"a cena dos sonhos é outra que não a da vida de representações da
vigília" (1900:529). Diz também qual é "o caráter psicológico mais
geral e notável do sonhar: um pensamento, geralmente pensamento
desejado, é objetivado no sonho, é figurado como cena, (...), é
vivenciado" (Id.Ibid.: 528).
A partir daí vai poder afirmar que "o sonho não é outra coisa senão
uma realização de desejo" (Id.Ibid.: 543). A condição para tal
realização Freud a apresenta quando descreve o que ficou conhecido em
psicanálise como a primeira "experiência de satisfação". Descrevê-la é
também uma forma de apresentar a fundação do inconsciente e a
constituição do desejo. Trata-se de uma experiência que podemos
considerar como mítica, no sentido de que remete a uma perda
originária. Diz-nos Freud: "Das percepções que nos chegam, em nosso
aparelho psíquico fica um traço (...)" (Id.Ibid.: 531).
Fica um traço porque a própria percepção se perde. E é a partir destes
traços primeiros que o inconsciente poderá se constituir. Quando um
bebê recém-nascido grita ou chora pela primeira vez, a mãe, supondo-o
com fome, interpreta a necessidade manifestada pelo grito ou choro da
criança como necessidade de mamar. Dá-lhe então o seio, oferece-lhe
este objeto particular. A fome, como necessidade, é satisfeita e,
neste sentido, a criança faz "a experiência da vivência de satisfação
que cancela o estímulo interno" (Id.Ibid.: 557). Mas "um componente
especial desta vivência é a aparição de uma percepção
particular" (Id.Ibid.: 537) do seio; esta, no entanto, se perde.
Porém, sua "imagem mnêmica fica, daí em diante, associada ao traço que
deixou na memória a excitação produzida pela necessidade" (Id.Ibid.:
557). Algo ficou, portanto, definitivamente marcado na memória como
traço do que se perdeu. Fica a lembrança de uma percepção perdida que
implicou uma satisfação a mais. Esta satisfação a mais que se perde
está relacionada com a excitação produzida pela necessidade.
É justamente no contato da boca com o seio, quando a criança recebe o
alimento, que se dá a percepção desta satisfação a mais que, com a
própria percepção, se perde. E se perde no instante mesmo da
experiência, deixando-a, então, como incompleta. É, pois, uma
satisfação perdida, mas que deixou lembrança, que a criança tentará
repetir porque dela ficou no seu próprio corpo um resto de satisfação
a mais. Podemos aqui falar de instauração da sexualidade, na medida em
que este resto de gozo se relaciona com a erogeneização da boca.
Por outro lado, quando a mãe interpreta o grito ou choro da criança
como necessidade de mamar e oferece-lhe o seio, esta interpretação se
dá a partir do próprio desejo da mãe. É ela que, ao dar-lhe o seio,
deixa no corpo da criança a marca de seus próprios significantes -
aqueles com que, por seu desejo, traduziu o grito ou choro como
demanda de mamar.
A partir de então, o grito da criança interpretado passa a ter um
sentido. Separado do que seria apenas necessidade, este grito é agora
uma demanda rudimentar, possibilidade da linguagem. Linguagem que é
então recebida de um Outro - a mãe - , mas que nada permitirá que a
criança diga sobre o a mais que, no corpo, como resto, lhe ficou.
Podemos aqui nos referir também ao primeiro trauma: trauma sexual, na
medida em que a sexualidade chega sem que dela a criança possa falar.
É enlaçada a esta mítica primeira experiência de satisfação que Freud
inicia a conceituação do desejo. Voltemos ao texto.
Da próxima vez que sobrevenha [a necessidade] (...) surgirá
um impulso psíquico que procurará investir novamente a imagem mnêmica
daquela percepção, isto é, (...), restabelecer a situação da
satisfação primeira. Um impulso desta natureza é o que chamamos
desejo; a reaparição da percepção é a realização do desejo, e o
caminho mais curto para isto é o que leva da excitação produzida pela
necessidade até o investimento completo da percepção. Nada nos impede
supor um estado primitivo do aparelho psíquico em que este caminho era
realmente percorrido desta maneira e, portanto, o desejo terminava em
um alucinar (1900:557-8).
O desejo surge então como busca da satisfação com um objeto perdido
que apenas na alucinação do sonho pode encontrar. Nasce como um
impulso psíquico que o empurra por um caminho regressivo. Este caminho
é o que vai dos traços de memória à imagem mnêmica de uma percepção
que só alucinatoriamente se produz, justamente porque o objeto não
está lá.
A partir da chamada primeira experiência de satisfação surgem três
termos - necessidade, demanda e desejo - que necessariamente convocam
o conceito de pulsão.
A linguagem do Outro primordial - a mãe - constitui o sujeito na sua
impossibilidade quando, ao separar a necessidade da demanda,
estabelece o objeto como perdido. É o que possibilita que o desejo se
instaure como impulso psíquico. E o que desde então o impulsiona é a
pulsão.
Há um enlace fundamental entre pulsão e desejo. Este enlace se dá pela
via da sexualidade que se instaura, como já foi dito, no momento em
que os significantes do Outro, ao marcarem o corpo da criança, ao
mesmo tempo o erogeneizam. É a partir de então que se constituem
simultaneamente a pulsão e o desejo.
À diferença do instinto (Instinkt), determinante biológico que rege o
comportamento animal, a pulsão (Trieb) é definida por Freud como uma
"força constante" (Freud, 1915a:114) que tem como meta alcançar a
satisfação. Buscará então repetir uma satisfação perdida que deixou no
corpo um resto de gozo. Percorrendo o traçado do mesmo caminho, o
desejo, que nasce então como sexual, impulsionado pela força constante
da pulsão, tratará de realizar-se, mas apenas na alucinação do sonho
isto será possível - só a imagem mnêmica da percepção perdida pode ser
reinvestida. Não há como continuar a regressão, pois esta não pode
avançar além dos primeiros traços deixados pela percepção que se
perdeu. Isto leva a uma torção da pulsão. A força constante impulsiona
agora progressivamente.
Há, pois, um movimento que se repete em um sentido regressivo-
progressivo. Assim, ao buscar satisfazer-se com o que está perdido, é
apenas em seu próprio movimento que a pulsão pode encontrar
satisfação.
Como "uma medida da exigência de trabalho" (Id.Ibid.:117) psíquico, a
pulsão abre caminho ao desejo que vai, então, fazendo seu percurso,
através dos significantes que se inscreveram no inconsciente como
representantes psíquicos da pulsão. Neste sentido, é pelas voltas da
pulsão que o desejo também vai dando a sua volta. Mas se a pulsão
busca a satisfação completa, impossível - e aí está a questão do gozo
-, o desejo sexual só pode encontrar a realização possível e,
portanto, sempre faltosa. É neste sentido que lemos a afirmação de J.
C. Cosentino: "(...) em Freud, enquanto o desejo aponta à realização,
a pulsão aponta à satisfação, e introduz o gozo, que não é
prazer" (Cosentino, 1993:109).
Ao falarmos de desejo e pulsão, é ao campo do inconsciente que estamos
nos referindo, considerando sempre que o recalque é a operação que o
funda.
Se antes dissemos apenas que o recalque separa o inconsciente da
consciência, fazendo coincidir o inconsciente com o recalcado, lemos
agora Freud na introdução a O inconsciente, de 1915:
Todo o recalcado tem que permanecer inconsciente, mas queremos deixar
claro desde o começo que o recalcado não recobre todo o inconsciente.
O inconsciente abrange o raio mais vasto; o recalcado é uma parte do
inconsciente (Freud, 1915b:161).
Com isto antecipa o que afirmará em 1923: "Discernimos que o Icc não
coincide com o recalcado; continua sendo correto que todo recalcado é
icc, mas não todo Icc é, por sê-lo, recalcado" (Freud, 1923:19).
Há, pois, algo que, sendo inconsciente, permanece fora do recalcado e,
portanto, sem inscrição possível. Retomamos aqui novamente a
experiência mítica da primeira vivência de satisfação, também uma
forma de apresentar a fundação do inconsciente, mas tomando-o agora já
no seu "raio mais vasto": tanto o recalcado como o inconsciente não
recalcado. O que se coloca então é o recalque originário. Não mais o
que separa o inconsciente da consciência - para Freud o recalque
propriamente dito -, mas o traço que opera ao nível mais primário.
Ao fundar o inconsciente como recalcado, o recalque originário só pode
fazê-lo deixando fora algo do inconsciente como irrepresentável, como
real excluído da ordem do simbólico. "A experiência de satisfação
introduziu estruturalmente a perda (...). Agora podemos agregar: a
perda inaugural - esta mítica primeira satisfação - do
gozo" (Cosentino, 1993:221).
Sabemos que é da mãe, enquanto primeiro Outro, que a criança, no seu
desamparo inicial, recebe o seio, instaurando-se assim a sexualidade
como vivência de gozo. Gozo que é um resto da satisfação perdida que
deixou lembrança, possibilitando que o inconsciente recalcado se
constitua. Mas isto só pode acontecer porque há uma lei separadora,
estrutural, que desde o início vigora, interditando o gozo primordial
mãe/filho.
Estamos nos referindo à barreira do incesto que implica a função do
pai. É esta lei dita do pai que, ao operar como interditora,
estabelece o recalque fundante, originário.
Dizemos "dita" do pai porque, em verdade, o pai é apenas o
significante do desejo da mãe, que a criança vai encontrar como limite
que a relança ao seu próprio desejo. Esta é a estrutura que de fato
sustenta o famoso Complexo de Édipo, pilar da teoria psicanalítica e
de outros campos do saber.
O que é excluído do recalcado, como objeto irremediavelmente perdido,
deixa uma falta real que a fantasia inconsciente busca encobrir. Nisto
o analista está implicado em uma análise e é no terreno da
transferência que vamos perceber como se dá esta implicação.
2.3 Transferência e desejo do analista
Ao privilegiarmos o conceito de transferência, escutamos Freud ao
iniciar seu texto de 1915 Pontuações sobre o amor de transferência,
quando afirma que das dificuldades que se apresentam ao psicanalista,
"as únicas realmente sérias são aquelas com que se depara no manejo da
transferência" (Freud, 1915:163).
São inúmeras as dificuldades com que se defronta um analista na
direção de um tratamento, mas se Freud dá tal ênfase à transferência é
porque somente a partir de sua instauração uma análise é possível. Por
isso, diz Lacan em sua Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista
da Escola: "No início da psicanálise está a transferência" (Lacan,
1968:18).
Ainda no texto acima mencionado, Freud afirma que o fenômeno do amor
de transferência "constitui uma das bases da teoria
psicanalítica" (Id.Ibid.:164), isto é, um de seus fundamentos. É o que
reafirma Lacan em 1964, com Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise.
Se no texto de 1915 Freud enlaça a transferência ao amor, foi bem
antes, nos seus Estudos sobre a histeria, de 1895, que "a
transferência (Übertragung), comparada a uma falsa ligação, assumiu a
acepção que mantém hoje, a de envolver o analista na psicanálise de um
sujeito" (Porge,1996:548). Vejamos como Freud o diz, na parte IV de
seu texto, intitulada Sobre a psicoterapia da histeria:
A transferência para o médico acontece por enlace falso.(...) Primeiro
havia aflorado na consciência da paciente o conteúdo do desejo, mas
sem as lembranças colaterais que poderiam tê-lo ressituado no passado;
e em virtude da compulsão a associar, dominante na consciência, o
desejo agora presente foi enlaçado a minha pessoa, com quem era lícito
que a paciente se preocupasse; por causa desta mésalliance - eu a
chamo enlace falso - desperta o mesmo afeto que muito antes forçara a
paciente a repudiar este desejo proibido (Freud, 1895:306-307).
Em nota de rodapé à pagina 306, está afirmado que é neste trecho onde
aparece pela primeira vez o termo Übertragung (transferência) no
sentido psicanalítico, embora numa acepção muito mais restrita que em
escritos posteriores.
Em 1917, na 27a conferência das suas Conferências de introdução à
psicanálise, Freud apresenta uma outra definição mais ampla: "Cremos
que se trata de uma transferência de sentimentos sobre a pessoa do
médico" (Freud, 1917b:402). No entanto, esta "transferência de
sentimentos" se dá no discurso, através da articulação de
significantes - é falando que o analisando se dirige ao analista.
Como afirma L. Hanns (1996:418), "aos poucos o conceito freudiano de
'transferência' abarca fenômenos cada vez mais complexos e de maior
alcance teórico e clínico". Portanto, se o amor é um fenômeno
essencial e mesmo inaugural da transferência, a ponto de Freud dedicar
um de seus Trabalhos sobre técnica psicanalítica (1911-1915) ao amor
de transferência, ele não é, no entanto, o único - resistência e
repetição lhe fazem companhia, participando ativamente da sua
dinâmica.
São dois fenômenos que fazem parte da própria estrutura do
inconsciente e que, como tais, se atualizam na transferência
psicanalítica. Uma análise é trabalho do inconsciente e o campo deste
trabalho é a transferência. Campo que, no entanto, só pode se
constituir na própria análise, como diz Freud no seu texto de 1912
Sobre a dinâmica da transferência, ao afirmar que esta "se produz
necessariamente em uma cura psicanalítica e alcança seu conhecido
papel durante o tratamento" (Freud, 1912a:97). Trata-se, pois, de um
dispositivo indispensável, que deve ser produzido, e sem o qual não há
possibilidade de análise. Um dispositivo que vai implicar o analista,
ainda que produzido pelo analisando.
O analista está em causa. Ele deve estar a postos com o seu desejo
quando alguém o procura para uma análise. Trata-se do desejo do
analista, um conceito formulado por Lacan, a que vamos nos referir
mais adiante.
É o desejo do analista que deve provocar a transferência, desencadear
a sua mis-en-scène quando o paciente lhe chega, às vezes com um
simples pedido de ajuda de alguém que sofre e não sabe por quê. Não
sabe que, sofrendo por seus sintomas, queixando-se dos outros, da vida
ou do próprio destino, é de sua miséria de neurótico que está falando.
Não sabe o quanto ele mesmo é responsável por aquilo de que se queixa
e que o faz sofrer. Vem nesta condição miserável, na esperança de que,
assim como seu sofrimento é percebido como lhe sendo infligido de
fora, também poderá ser-lhe extirpado por um outro que, no caso, seria
o analista. A expectativa é, pois, de uma relação de pessoa a pessoa;
trata-se, no entanto, de um sujeito que deve ser conduzido a sua
verdade, e de um analista que está em sua função, operando com o
desejo. Mas se quem sofre com seu sintoma ainda não pode sequer se
reconhecer implicado no mesmo, sentindo-o como um corpo estranho, fica-
nos claro que uma análise não começa apenas porque o paciente ali
chegou.
Há um tempo prévio, preliminar ao início do trabalho analítico
propriamente dito, necessário à instauração da transferência. Tempo
que é lógico e não cronológico, uma vez que obedece à temporalidade do
inconsciente, particular a cada sujeito.
Um tempo é então necessário para que o sujeito possa reconhecer a sua
responsabilidade pelo que o faz sofrer - e nisto o analista está
implicado. Ao invés de responder diretamente às perguntas que lhe são
formuladas, o analista questiona o sujeito, no sentido de que este
mesmo possa se perguntar sobre o que lhe acontece, sobre o que ele
próprio tem a ver com o seu sintoma: Por que faço isso? Por que sinto
isso? Afinal, quem sou eu? O que querem de mim?
São perguntas que já revelam uma implicação do sujeito nas suas
próprias questões, ainda que sejam elas dirigidas ao analista, suposto
ter sobre o sujeito este saber que lhe é demandado. Aqui está outro
conceito formulado por Lacan - o de sujeito suposto saber.
Não tendo este saber, caberá ao analista pontuar as perguntas que lhe
são dirigidas, devolvendo-as ao próprio sujeito, de tal forma que este
possa nelas se reconhecer. Por isso, afirma Lacan em seu escrito
Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano:
"(...) é do Outro que o sujeito recebe a própria mensagem que
emite" (1998:821).
Quanto a este Outro lacaniano, cabe dizer que foi a partir da
apresentação feita por Freud da estrutura do chiste que Lacan pode
nela situar, como afirma E. Vidal em seu texto Na trilha do sujeito
suposto saber,
(...) o lugar do Outro radical, terceiro necessário para que o
discurso se articule e realize a verdade como estrutura de ficção
(...). À diferença do cômico, que se limita a dois elementos - o
sujeito e o objeto - o chiste inclui três termos na sua estrutura.
Freud introduz a função da terceira pessoa, o ouvinte, (...) lugar em
que se espera a realização do efeito de prazer ( Vidal, ...:20).
Se o chiste é tomado por Lacan como o modelo das formações do
inconsciente, é porque revela a posição do analista por excelência,
enquanto lugar do ouvinte. "O chiste prova que o sujeito constitui a
sua mensagem no Outro, de quem a recebe em forma invertida.(...). O
analista enquanto Outro se constitui em endereço do
inconsciente" (Id.Ibid.:20).
Ao demandar-lhe que responda e encontrando, ao revés, o valor de sua
própria pergunta, aos poucos o analisando entra na via da associação
livre. O inconsciente se põe a trabalhar para que se elabore o saber
que responda à pergunta do sujeito. O analisando, de certa forma, se
dá conta de que não há que esperar do analista respostas sobre
questões que são suas, que ele mesmo terá que construí-las, embora
necessitando do analista como causa e testemunha do seu trabalho. Há
agora uma transferência instaurada; de fato, começou uma análise.
Mas, afinal, o que é a transferência?
Já sabemos que se trata de um dispositivo "necessariamente produzido
em uma cura analítica", causado pelo analista, e que envolve a questão
do amor: "O amor transferencial (...) é provocado pela situação
analítica" (Freud, 1915:171) e "não temos o direito de negar o caráter
'genuíno' ao enamoramento que aparece no tratamento
analítico" (Ib.Ibid.:171). A transferência então é amor. A questão é
saber que amor é esse.
Se a necessidade de amor de alguém não está inteiramente satisfeita -
e nunca estará porque não há objeto que a satisfaça - -, "ele se verá
forçado a se aproximar com representações libidinais antecipadas de
cada nova pessoa que apareça" (Freud, 1912:98) - o que já coloca a
questão da repetição. "E é muito provável que as duas porções de sua
libido, a que é capaz de tornar-se consciente e a inconsciente
participem dessa acomodação" (Id.Ibid.:98).
Assim, tanto o que é da ordem do inconsciente recalcado quanto o que
ficou como inconsciente sem representação possível participam na
determinação da vida erótica do sujeito, isto é, da sua sexualidade. E
"é perfeitamente normal e inteligível que o investimento libidinal
pronto por antecipação de alguém que está parcialmente insatisfeito se
dirija para a pessoa do médico" (Id.Ibid.:98). É assim que o analista
se torna o suporte da transferência.
"Este investimento incluirá o médico em uma das 'séries psíquicas' que
o paciente já formou" (Id.Ibid.:98). Neste momento, Freud se refere
aos protótipos edípicos, dizendo inclusive que "responde aos vínculos
reais com o médico que para semelhante seriação se torne decisiva a
'imago paterna'" (Id.Ibid.:98), embora acrescente que a transferência
também pode produzir-se seguindo a imago materna ou a de um irmão.
O analista é, pois, incluído na própria estrutura do inconsciente e a
transferência é esta estrutura trabalhando em análise. Como afirma
Lacan em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, "A presença
do psicanalista (...) deve ser incluída no conceito de
inconsciente" (1979:123).
Continuando seu percurso no referido texto, mostra-nos Freud que "a
transferência, comumente o mais poderoso fator de sucesso" (Freud,
1912:99) numa análise, é, ao mesmo tempo, "o meio mais poderoso de
resistência" (Id.Ibid.:99) ao tratamento. Freud enlaça esta
resistência ao analista, enlace que diz respeito ao lugar que o mesmo
ocupa na estrutura inconsciente do sujeito:
Se perseguirmos um complexo patogênico desde sua representação no
consciente (...) até sua raiz no inconsciente, logo entraremos em uma
região onde a resistência se faz sentir com tanta nitidez que a
associação seguinte tem de levá-la em conta e aparecer como um
compromisso entre suas exigências e as do trabalho de investigação.
Neste ponto, segundo testemunha nossa experiência, ocorre a
transferência. Se algo do material do complexo (...) é apropriado para
ser transferido sobre a pessoa do médico, esta transferência se
produz, dá como resultado a associação seguinte e se anuncia por
indícios de uma resistência - por exemplo, por uma detenção das
associações. Desta experiência inferimos que a idéia transferencial
irrompeu até a consciência à frente de todas as outras associações
possíveis porque ela acata também a resistência (Id.Ibid.:101).
Se o trecho acima é bastante complexo, está, no entanto, de acordo com
a própria complexidade do lugar que o analista ocupa na transferência.
Esse ponto em que ocorre a transferência e onde, ao mesmo tempo, se
anuncia uma resistência que detém as associações, é o que Freud está
chamando de "raiz no inconsciente" (lembremo-nos do umbigo do sonho),
ponto impossível de entrar nas associações porque se trata daquilo que
do inconsciente está fora do recalcado, sem representação possível.
Temos aqui o registro lacaniano do real, onde o que está em jogo é a
falta de objeto, resistente a toda significação e, portanto, a
qualquer associação.
No entanto, na análise há momentos em que se dá uma aproximação
excessiva deste ponto em que o sujeito terá, inevitavelmente, que se
confrontar com sua falta essencial. A fantasia inconsciente - que
Lacan formulou como fantasma - já quase não serve de tela para velar o
real. É então que ocorre a transferência: algo do material do complexo
é transferido para a pessoa do analista que é assim incluído na
própria fantasia inconsciente do sujeito. Irrompe como objeto
imaginarizado, para tamponar a emergência do real da falta de objeto.
A idéia transferencial, isto é, "uma associação que concerne ao
analista" (Silvestre, 1991:61) "irrompeu até a consciência à frente de
todas as outras associações possíveis porque ela acata também a
resistência. Um processo assim se repete inúmeras vezes na trajetória
de uma análise" (Freud, 1912a:101) e se manifesta freqüentemente
através de hostilidades, reclamações ou elogios ao analista, podendo
mesmo chegar, por exemplo, a "confissões" de sonhos eróticos com o
mesmo.
São os momentos de fechamento do inconsciente, quando o analista deve
intervir com a interpretação que levará a sua abertura, possibilitando
que a análise prossiga. A este respeito, afirma Lacan:
O que Freud nos indica, desde o primeiro tempo, é que a transferência
é essencialmente resistente (...). A transferência é o meio pelo qual
se interrompe a comunicação do inconsciente, pelo qual o inconsciente
torna a se fechar. Longe de ser a passagem de poderes ao inconsciente,
a transferência é, ao contrário, seu fechamento.
Isto é essencial para marcar o paradoxo que se exprime muito comumente
nisto - que pode ser encontrado mesmo no texto de Freud - de que o
analista deve esperar a transferência para começar a dar interpretação
(Lacan, 1979:125).
De fato, "vencida aquela parte, os outros ingredientes do complexo
oferecem já poucas dificuldades" (Freud, 1912a:101). E Freud nos diz
como, pela interpretação, vence a transferência na sua face de
resistência:
Fica excluído ceder às demandas do paciente derivadas de sua
transferência, e seria absurdo recusá-las inamistosamente ou com
indignação; superamos a transferência quando demonstramos ao paciente
que seus sentimentos não provêm da situação presente e não valem para
a pessoa do médico, mas repetem algo que lhe aconteceu uma vez,
anteriormente. Desse modo o forçamos a mudar sua repetição em
lembrança (Freud, 1917:403).
Diante da resistência em lembrar e elaborar, o paciente repete a mis-
en-acte de sua fantasia - como está claro em outro texto de Freud, de
1914, Recordar, repetir e elaborar.
O que Freud sempre afirmou é que a transferência é o único campo
possível de trabalho em uma análise, pois é nele que "todos os
conflitos têm que ser franqueados" (1912a:102), ao mesmo tempo que, no
tratamento analítico, "nos aparece sempre, desde o início, como a arma
mais poderosa da resistência". E se pergunta então: "Como é possível a
transferência servir tão excelentemente como meio da
resistência?" (Id.Ibid.:102). Responde, dizendo:
É claro que se torna muito difícil confessar um impulso de desejo
proibido diante da mesma pessoa sobre quem este impulso recai. Este
constrangimento dá lugar a situações que parecem quase inviáveis na
realidade. Mas essa é a meta que o analisando quer alcançar, quando
faz coincidir o objeto de seus impulsos emocionais com o médico
(Id.Ibid.:102).
Não se trata apenas da difícil confissão de um desejo proibido. Trata-
se do impossível de dizê-lo porque o terreno aqui é o da fantasia
inconsciente, instância de gozo por excelência. Gozo é uma categoria
de que Freud só poderá se aproximar mais tarde, ao reconhecer que há
um mais além que o princípio de prazer não regula, um excesso que a
este escapa. E é chamando-o de satisfação que Freud se aproxima do
gozo. Ainda em 1912, no entanto, só pode reconhecê-lo como "impulso
proibido de desejo" que proporciona satisfação na fantasia
inconsciente.
Ao fazer coincidir o objeto de seus impulsos emocionais com o
analista, isto é, ao colocar o analista no lugar do objeto
imaginarizado do fantasma, é ao gozo que o sujeito visa. Gozo da ordem
do real, impossível de confessar porque dele não há como falar, mas
que leva o sujeito a viver situações só viáveis na fantasia
inconsciente. Por isso lhe é tão difícil se desfazer do seu sintoma
que, se o faz sofrer, ao mesmo tempo lhe permite gozar, como já foi
dito anteriormente. E é por isso também que a transferência para o
analista, ao invés de facilitar a "confissão", a impede.
Acompanhamos até aqui a dinâmica da transferência na sua face de
resistência. Percebemos como esta resistência se relaciona ao lugar
que o analista ocupa na fantasia inconsciente, o que impede a
emergência do real da falta de objeto, possibilitando o gozo
fantasmático do sujeito.
Mas a transferência não é apenas fechamento do inconsciente, não se
apresenta somente como resistência. Se assim fosse, não haveria
possibilidade de análise. Quando Freud aponta que é pela interpretação
que o analista pode ir vencendo a transferência, é justamente porque
há um outro aspecto da mesma que não se apresenta como resistência.
Não vamos entrar na discussão sobre a interpretação. Nem tudo em uma
análise é interpretável, assim como não se trata, na interpretação, de
dar explicações ao paciente. Disto, só bem mais tarde Freud pôde se
dar conta e por isso escreveu, em 1937, Construções em análise. O
aspecto da transferência que considera como "portador do êxito" (1912a:
103) de uma análise ele o relaciona à sugestão. Não se trata, porém,
de sugestão no sentido de influenciar o paciente, dirigindo-o no
tratamento. Tanto é assim que afirma:
Velamos pela autonomia última do paciente, aproveitando a sugestão
para fazê-lo cumprir um trabalho psíquico que tem como conseqüência
necessária uma melhora duradoura de sua situação psíquica (Id.Ibid.:
103).
É esta "autonomia última do paciente" que Lacan reafirma em seu
escrito A direção do tratamento e os princípios de seu poder:
O psicanalista certamente dirige o tratamento. O primeiro princípio
desse tratamento (...) é o de que não deve de modo algum dirigir o
paciente. A direção da consciência, no sentido do guia moral que um
fiel do catolicismo pode encontrar neste, acha-se aqui radicalmente
excluído.(...). A direção do tratamento é outra coisa (Lacan,
1998:592).
Talvez possamos dizer que a Freud faltam elementos que lhe permitam
formular melhor esta vertente da transferência que Lacan tão bem
conceituou como sujeito suposto saber. Certamente, porém, para a
formulação deste conceito, a Lacan não escapou o que diz Freud em
1917, ao falar da relação do analisando com o analista:
Na medida em que sua transferência é de signo positivo, reveste o
médico de autoridade e se transforma em crença nas suas comunicações e
concepções. Sem esta transferência (...), sequer daria ouvido ao
médico ou a seus argumentos. A crença (...) é um derivado do amor e,
no princípio, não necessitou de argumentos (1917b:405).
Este trecho pode ter servido a Lacan para falar da transferência como
instauração do sujeito suposto saber, função que o analista deve
sustentar, mesmo sabendo que não tem o saber que lhe é demandado. É
neste sentido que Lacan marca que o amor de transferência se instaura
como demanda de amor ao saber - saber que ao analista é suposto.
O caminho percorrido até agora não deixa dúvidas quanto às
dificuldades com que se defronta o analista no manejo da
transferência, dado o lugar paradoxal que deve ocupar. Por um lado, ao
ser incluído na fantasia inconsciente do sujeito, presta-se a servir
de obstáculo à emergência do real da falta de objeto, ao seu
reconhecimento e aceitação; justamente aquilo com que o sujeito deve
se confrontar. Por outro lado, o analista deve sustentar a função de
sujeito suposto saber, na medida em que é esta "transferência
afetuosa" (Freud, 1912a:104) que possibilita a análise.
Se já nos referimos à questão da repetição associada à resistência,
cabe aqui colocar o que diz Freud em A dinâmica da transferência sobre
a repetição em ato, uma expressão também da resistência:
Os impulsos inconscientes não querem ser recordados como o tratamento
analítico o deseja (...) o paciente atribui condição presente e
realidade objetiva aos resultados do despertar de seus impulsos
inconscientes: quer atuar (agieren) suas paixões sem atender `a
situação objetiva (Id.Ibid.:105).
Não se trata de que os impulsos inconscientes não queiram ser
recordados, porque não há como recordá-los. O que aqui está em jogo é
a posta em ato do gozo fantasmático, fora do recalcado e, portanto,
sem representação possível. Não há como recordar o que não está como
cadeia de significantes recalcados. Por isso, o sujeito repete em ato
ao invés de recordar, põe em ação a fantasia inconsciente, montando
diante do analista a cena fantasmática, justamente porque não pode
incluí-la em uma cadeia associativa - que seria o recordar.
É ao analista que, na transferência, se dirige esta encenação. Cabe-
lhe, pois, dar em troca uma interpretação para que ao menos algo deste
até então irrepresentável possa vir a entrar no simbólico.
Como já dissemos, disto Freud ainda não sabia em 1912. No entanto,
desde os tempos inaugurais da psicanálise já apontava que é em torno
do analista com o seu desejo que se dá o percurso de uma análise.
Lacan o reafirma em 1964, no texto já citado Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, quando designa "pelo nome de desejo do
analista (...) esse ponto pivô (...) em torno do que o movimento gira
(...) no processo em que [o analista] conduz seu
paciente" (Lacan, 1979:218-19).
Sem entrarmos no desenvolvimento deste difícil conceito ao longo da
teoria lacaniana, marcamos que, desde o início de sua formulação,
Lacan aponta que o desejo do analista está diretamente relacionado a
sua própria análise, é o que dela resta, e deve operar em cada análise
que o analista conduza, funcionando como causa do trabalho analítico.
Enlaçado a este conceito, Lacan apresenta no mesmo texto o sujeito
suposto saber como estrutura da transferência, afirmando: "Desde que
haja (...) o sujeito suposto saber (...) há transferência" (Id.Ibid.:
220). Na sua já mencionada Proposição de 9 de outubro de 1967, dirá:
"O sujeito suposto saber é, para nós, o pivô no qual se articula tudo
o que se relaciona com a transferência" (Lacan, 1968:19). Voltando ao
texto anterior, lemos também: "O analista mantém esse lugar, no que
ele é objeto da transferência" (Lacan, 1979: 221).
Trata-se do analista em sua função de causa, relacionada ao desejo do
analista que nada tem a ver com o analista como sujeito. Lacan
pergunta: "Quem, desse sujeito suposto saber, pode sentir-se
plenamente investido? Não é aí que está a questão" (Id.Ibid.: 220). E
continua mais adiante:
Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir
ao encontro do desejo inconsciente. É por isso que eu digo que o
desejo é o eixo (...) graças ao qual se aplica o elemento-força (...)
que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente,
como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto comum desse
duplo machado é o desejo do analista, que eu designo aqui como uma
função essencial.(...) esse desejo (...) é precisamente um ponto que
só é articulável pela relação de desejo a desejo (Id.Ibid.: 222).
O analista tem a hipótese de um saber inconsciente do lado do
analisando e, por isso, o faz falar. O analisando, por sua vez, supõe
um saber ao analista - é, pois, deste lado que fica o sujeito suposto
saber. Mas, se sujeito suposto saber e desejo do analista coincidem no
mesmo ponto, são, no entanto, operadores diferentes, até que o
trabalho de análise revele que só há saber inconsciente, sem sujeito,
seja de um lado ou do outro. O desejo permanece e qualquer sujeito
suposto ao saber será destituído. A elaboração deste saber
inconsciente será o trabalho de análise, trabalho da transferência a
ser realizado pela via da associação livre, sustentado pelo desejo do
analista. "A direção da cura é assim retificada pelo analista com o
apoio que deve encontrar em seu desejo, no qual é preciso reconhecer
(...) o desejo do analista (...)" (Silvestre, 1991: 61).
Ao paciente que chega alienado em sua miséria neurótica, com uma
demanda ainda inespecífica, mesmo que o pedido de ajuda seja às vezes
direto, o que o analista tem a oferecer é seu desejo posto em ato. Ato
que é oferta de uma escuta avisada e vai, por isso, possibilitar ao
sujeito fazer de sua demanda inicial uma questão sobre o seu desejo.
Se esperava respostas ou sugestões, agora é ao trabalho psíquico que o
sujeito está lançado. Trabalho que não é sem tropeços, paradas e
voltas na repetição que o gozo impõe. A este gozo, no manejo da
transferência, contrapõe-se o desejo do analista, forçando o caminho
para a frente.
Algo do gozo o sujeito vai perdendo e, com isso, surge o inédito do
desejo. Ao ir deixando para trás a antiga miséria neurótica, o sujeito
promove agora mudanças em si e pode agir de forma transformadora sobre
o mundo que o cerca.
É este o caminho possível para aquele que se decide a fazer uma
análise; independe, portanto, das condições econômicas, sociais e de
escolaridade, podendo ser construído por qualquer um que seja passível
do inconsciente. Para iniciá-lo, se não pode pagar em dinheiro para
trabalhar, basta que encontre em um Centro de Saúde, por exemplo, um
analista decidido com o desejo posto em ato.
Através das entrevistas realizadas com três destes analistas, vamos
nos deter agora nas vicissitudes e possibilidades que encontram no
exercício de sua práxis nos respectivos Centros de Saúde em que a
exercem.
CAPÍTULO III
A PSICANÁLISE À MEDIDA DO POSSÍVEL
3.1 Introdução
Concordamos com L.D. Castiel quando afirma que "a psicanálise se faz à
medida do possível", como reitera na dedicatória com que nos agraciou
no lançamento de seu último livro. A primeira parte do título é
justamente a medida do possível... (embora com o a sem crase).
Se a prática da psicanálise se dá à medida do possível, e isto se
evidencia nos Centros de Saúde, não se trata, porém, de tentar sua
adequação à demanda, buscando torná-la possível. Esta pesquisa também
não visa estabelecer a medida impossível da práxis psicanalítica
nestes Centros, pois ela constrói o seu possível ao fazer valer a
falta inaugural do sujeito, reduzindo o quantitativo da pura demanda
ao qualitativo ou singular do desejo.
Nosso objetivo era, a partir da palavra dos analistas entrevistados,
dar a conhecer as condições em que se efetiva a prática da psicanálise
em três Centros de Saúde. Neste sentido, dois aspectos foram
considerados: o primeiro se refere à maneira como se inserem estes
psicanalistas nas respectivas instituições em que trabalham; o segundo
diz respeito a sua própria prática clínica, tomando como eixo central
o conceito de transferência articulado ao desejo do analista.
Estabelecidos estes pontos, buscamos então conhecer os fatores que
possibilitam ou se constituem como dificuldades para os analistas que
exercem ali a sua práxis.
Partindo dos pressupostos teóricos já expostos nos capítulos
anteriores, seja no que diz respeito ao campo específico da
psicanálise, seja no que se refere à relação paradoxal desta última
com a saúde mental, fizemos então as entrevistas já mencionadas. À
medida que as mesmas eram realizadas, surgiram alguns aspectos
importantes colocados pelos próprios analistas que não estavam
diretamente incluídos no roteiro da entrevista.
A nortear-nos, esteve sempre presente a convicção freudiana de que o
sofrimento que a miséria neurótica traz ao sujeito independe das
condições econômicas, sociais ou de escolaridade daquele que em suas
malhas está enredado.
É o trabalho com estas entrevistas, realizadas com os três
psicanalistas que generosamente se dispuseram a nos falar do cotidiano
de sua prática nos respectivos Centros de Saúde em que a exercem, que
agora apresentamos. E o faremos lançando mão de fragmentos dos
discursos enunciados em resposta a algumas perguntas fundamentais,
comentando-os à medida que julgarmos necessário. Estes fragmentos, se
bem que textuais, foram retrabalhados e sintetizados. Comparando-os,
extraímos os temas diretamente relacionados ao objetivo de nossa
pesquisa, assim como outros que emergiram igualmente importantes,
apontando similaridades e diferenças.
3.2 Com a palavra os psicanalistas
Iniciamos as entrevistas basicamente com uma questão sobre a forma de
inserção dos psicanalistas nos respectivos Centros de Saúde em que
trabalham. Buscávamos saber se fazem parte de algum programa ou se o
serviço em que exercem sua prática é de Saúde Mental. Resumimos o que
escutamos com a proposição abaixo:
A psicanálise nos Centros de Saúde: um paradoxo
A primeira resposta é de uma jovem psicóloga, graduada somente há dois
anos, e que apenas iniciou sua formação psicanalítica lacaniana. Há um
ano e oito meses vem exercendo sua prática em um Centro de Saúde do
interior do Estado, onde existem as mais variadas especialidades
médicas e de outros profissionais da saúde. Diz-nos:
Não temos nenhum Serviço. Cada um faz o seu trabalho da forma que
quer, atende quantos pacientes quer e não há controle nenhum sobre
isso, a não ser numérico, para ver a sua produtividade no final do
mês.
Há uma pessoa que participa de umas reuniões (entendemos que na
Secretaria Municipal de Saúde); - seria chefe de Saúde Mental - , mas
eu não sei até que ponto isso realmente funciona ou visa apenas a
gratificação porque nós não participamos de nada... (o "nós" inclui os
demais psicólogos);. Somos os psicólogos e não sabemos absolutamente
nada.
Ao perguntar-lhe como se posiciona a direção do Centro em relação a
isso, obtemos a seguinte resposta:
Não tem nenhuma posição. Há um ponto em que isto ajuda e há um ponto
em que atrapalha. Ajuda, no sentido de que você pode fazer o seu
trabalho e ninguém vai se meter, dizer o que pode e o que não pode,
achar que psicanálise não pode ser feita aqui. Isto é um ponto bom.
Mas há um aspecto ruim que é você ficar totalmente solta. Eu faço o
meu trabalho e ponto final. Vejo aí uma única vantagem - eu tenho essa
liberdade.
Para atender seus pacientes, a entrevistada paga uma supervisão
particular, considerando-a como parte da sua formação psicanalítica. É
a única profissional que, neste Centro, trabalha com a psicanálise.
Deixou-nos claro que não há nenhuma articulação da sua prática com os
demais profissionais, nem qualquer coordenação de programas ou
serviços.
É interessante observarmos que esta jovem praticante da psicanálise
considera que o mesmo fator que se constitui como um aspecto negativo
- o isolamento em seu trabalho - , por outro lado lhe dá liberdade
para exercer a sua prática. Que não se confunda, no entanto, a
liberdade para exercer a prática da psicanálise, por exemplo, em um
Centro de Saúde - sentido que a entrevistada dá aqui ao significante
liberdade - , com liberdade do analista no exercício de sua práxis. Ao
trabalharmos anteriormente o conceito de transferência e a formulação
lacaniana do desejo do analista, esperamos ter deixado ao menos
relativamente claro quão pouco livre é o analista na direção de um
tratamento. Quanto a isso, constatamos que nossa entrevistada já não
se engana, ainda que esteja apenas no início do árduo percurso para
tornar-se analista. E, mesmo assim, trabalha neste Centro de Saúde em
que falta estrutura para a assistência ambulatorial em psicanálise ou
mesmo em psicologia, como nos deixou perceber.
Se a única preocupação institucional é com a produtividade numérica -
quantos pacientes atendidos ao final do mês -, isto não a impede de
escutar seus pacientes, cujo número aliás não é pequeno, e parece
satisfazer os anseios de produtividade da instituição.
Em resposta à mesma pergunta sobre a forma de inserção, escutamos de
um segundo entrevistado que exerce sua prática em um Centro de Saúde
da zona norte:
É, chamamos aqui de Programa de Saúde Mental as atividades em que
trabalho. Isto não está formalizado, acho que não há nenhum
organograma, nenhum programa de fato a não ser na prática. A
quantidade de profissionais aqui varia bastante. No momento estamos
eu, um psiquiatra que trabalha em um programa de alcoolismo com idosos
na linha da psiquiatria biológica, uma psicóloga que atende crianças
seguindo uma orientação que não é psicanalítica e uma outra psicóloga
que chegou recentemente. Esta faz formação em psicanálise.
No entanto, só o entrevistado trabalha com os referenciais teóricos
lacanianos.
À nossa pergunta sobre como se articula a sua prática com os demais
profissionais e serviços do Centro, responde-nos:
Como um Centro de Saúde onde se trata do nível primário de
atendimento, aqui só há as atividades consideradas básicas: clínica
médica, pediatria, ginecologia e obstetrícia. Essas áreas se organizam
em um Programa do Adulto, um Programa da Mulher e um Programa da
Criança - como se mulher não fosse adulto...
Antes de eu vir para cá, havia aqui uma psiquiatra que tinha uma
formação em psicoterapia de grupo. Trabalhava como psiquiatra, com um
procedimento medicamentoso, e fazia o atendimento de grupo - chamavam-
se Grupos de Nervosos. Acho que esta era a única atividade de Saúde
Mental que existia aqui.
Também neste caso, o isolamento no trabalho é apontado pelo
psicanalista, no que diz a seguir:
Acho que não há muita articulação da minha prática com os demais
profissionais por uma questão teórica. É uma relação apenas de
encaminhamento. Os profissionais destes outros programas, quando
consideram conveniente, encaminham-me o paciente, solicitam que eu o
atenda - e eu atendo. Mas não temos tido muita oportunidade de troca,
de discussão conjunta de casos. Na prática isto não tem efetivamente
funcionado. A relação acaba sendo essencialmente de encaminhamento.
Trata-se aqui de um psicanalista com formação médico-psiquiátrica que,
num primeiro momento, se aproximara da psicanálise, chegando mesmo a
exercer a sua prática, mas que, pouco depois, dá outro rumo a sua
vida. Cerca de quinze anos mais tarde se reaproxima da psicanálise e
começa uma formação psicanalítica lacaniana, iniciando então a sua
práxis neste Centro de Saúde onde trabalha há onze anos. Interessante
percurso que nos faz pensar nas voltas que o desejo dá. Neste caso,
desejo de ocupar o lugar do analista que, por ter deixado suas marcas,
chama-o de volta à psicanálise, como que por uma escolha forçada.
Lembramo-nos aqui de Lacan, ao parafrasear a parábola: "Há talvez
(...) muitos chamados e poucos escolhidos, mas não haverá certamente
outros além dos que são chamados" (Lacan, 1979:50).
À diferença do Centro em que trabalha a primeira entrevistada, aqui o
psicanalista se refere a um Programa de Saúde Mental, mas deixando
claro que se trata mais de uma denominação do que de sua existência de
fato, como um programa estruturado. Da mesma forma que no primeiro
Centro, a psicanálise lacaniana está aqui porque há um psicanalista
que, por seu desejo, a exerce. Não se trata da psicanálise articulada
à Saúde Mental, mas é a Saúde Mental que viabiliza neste Centro a
presença da psicanálise.
Escutamos agora uma outra psicanalista, com graduação em psicologia,
que trabalha no mesmo Centro de Saúde da zona sul há mais de vinte
anos, dando também supervisão a estagiários. Sobre a sua forma de
inserção no referido Centro faz-nos um extenso relato que inclui
vários outros aspectos importantes.
Quando entrei aqui havia um programa de Medicina Escolar que hoje em
dia não existe mais. Foram contratados pediatras, psiquiatras,
psicólogos, etc. Pela primeira vez entravam psicólogos. Aqui é um
local de saúde pública, não é um hospital. Quando você vê o
organograma, trata-se sempre da prevenção. Então, quando fui
contratada, era para prevenção. O problema é como a gente se encaixa.
Primeiro foi na Medicina Escolar: para a criança se matricular na
escola tinha que estar com a carteira de vacinas em dia e tinha que
passar pelo pediatra, pelo neurologista e pelo psicólogo. Isto era um
grande problema, pois estava escrito: 'para a prevenção de
dificuldades de aprendizagem e distúrbios de conduta'. As crianças
tinham que passar pelo psicólogo porque, do contrário, não podiam
fazer a matrícula. Este foi um trabalho de início e o que salvou foi
que tínhamos uma coordenação oficiosa de psicologia na Secretaria
Municipal de Saúde. Não era de Saúde Mental.
Quando a coordenadora passou a ser uma psicóloga que é psicanalista,
mudamos bastante. Mas isto foi um longo trabalho... (inclusive
produzindo escritos sobre a impossibilidade de prevenir doença
mental).
A questão da "coordenação oficiosa de psicologia" mostra bem como a
presença da psicanálise nas instituições de saúde pública vai se
concretizando geralmente por caminhos marginais ou alternativos, mas
que, ao serem percorridos por um desejo decidido, possibilitam o
exercício de sua prática.
Vicissitudes da oferta e da demanda
A entrevistada relata-nos então como foi feito todo um trabalho para
criar uma demanda de tratamento:
No início eu dizia: Não é para quem precisa, é para quem quer. Hoje em
dia o 'precisa' passou a ser um critério. À medida que se for
oferecendo, a procura passa a vir.
De fato, a psicanálise não é para quem quer, mas para quem precisa. O
importante, no entanto, é que haja a oferta nos Centros de Saúde para
quem precisa e não pode pagar em dinheiro. O que e o como se oferece
modularão a demanda, na medida em que se trata de oferta a partir da
escuta avisada de um psicanalista.
Mais adiante, diz-nos:
Fui criando ao longo do tempo uma forma de ver como fazer para não
perder tempo, porque senão é uma procura enorme de gente que não fica
e há muita gente que quer e fica. Às vezes dava para fazer com a
criança uma coisa mais de entrevista com os pais, com a mãe, com a
criança e tentar dar uma resolução. O autor que nisto me ajudou um
pouco, além de Freud e enquanto eu não conhecia Lacan, foi Winnicott.
Me ajudou a escutar um pouco essa história de pais, de criança.
Não há dúvida de que aqui está a postos o desejo do analista. Ao
relatar-nos sua busca de um caminho para a práxis da psicanálise, é
deste desejo que nos fala a analista. Recorreu a Winnicott, que
podemos considerar o inventor da psicanálise sob demanda, justamente a
partir da psicanálise com crianças. E assim chegou a Lacan.
Construindo a posição do analista
"Eu me tornei psicanalista aqui" - diz-nos, referindo-se ao seu
trabalho no Centro de Saúde. É também em um Centro de Saúde que a
jovem graduada em psicologia há apenas dois anos inicia o seu
percurso, visando tornar-se psicanalista. Portanto, se o ambulatório é
"o próprio consultório tornado público", como afirma A.C. Figueiredo,
pode ser também o lugar a partir do qual alguém pode vir a autorizar-
se analista.
"Essa história do 'setting', de ser um mesmo material para todas as
crianças, de ser na sala que for, não tem a menor importância. Você
chega aqui e caem por terra várias destas coisas", continua.
De fato, se há um analista com o desejo posto em ato, tendo a norteá-
lo os conceitos fundamentais da psicanálise, cai por terra o ideal de
que a psicanálise necessita uma boa forma para o exercício de sua
práxis.
Refere-se então a entrevistada à questão de alguns autores afirmarem
que aqueles que buscam atendimento em instituições da rede pública de
saúde querem "uma coisa mais curta, mais imediata". E diz: "Não era
nada disso que eu via. Eu acho que aí está também a resistência do
analista".
Há aqui um questionamento da posição do analista, uma interrogação
sobre a posta em ato de seu desejo, pois sabemos bem que o querer "uma
coisa mais curta, mais imediata" não é apanágio daqueles que, no dizer
de Freud, pertencem às "camadas populares". Escutamos o mesmo nos
consultórios privados, uma vez que este "querer" é inerente não a uma
classe social, mas à própria miséria neurótica do sujeito, com a
resistência ao inconsciente que lhe é própria.
Diz-nos Lacan:
Eis o que manifesta para vocês o que é entrar no jogo do paciente - é
colaborar com a sua resistência. A resistência do paciente é sempre a
de vocês, e quando uma resistência é bem sucedida, é porque vocês
estão dentro até o pescoço (...) (Lacan, 1985-60).
Concordamos, portanto, com Letícia Nobre quando, ao referir-se em sua
tese de doutorado a esta mesma citação de Lacan, afirma:
Nessa conjugação de resistências (...), observamos, sob as mais
diversas formas, a lamentável produção de desvios - que podem mesmo
levar à inviabilização - da prática analítica, desvirtuada em seus
princípios, afastada de seu rigor ético. É assim também que
observamos, de acordo com a resistência do analista em sua prática,
uma certa caracterização do 'pobre' que parece aí ocorrer, levando a
uma interpretação generalizada e absolutamente inadequada, das
necessidades deste.
Perde-se, com isso, a possibilidade de escuta do sujeito em sua
singularidade - marca original da clínica psicanalítica (Nobre,
1998:135).
Continuando o seu relato, a mesma psicanalista nos diz então como lhe
foi possível participar de um trabalho de prevenção da AIDS com
adolescentes, sem abrir mão da escuta psicanalítica:
O negócio era o seguinte: como convencer a usar camisinha. Era um
trabalho em que tentávamos ajudar, que fazíamos junto com a
enfermeira. (Tratava-se de trabalhar com adolescentes a questão da
informação sobre a AIDS.) Então eu disse: Se nós não os escutarmos
falarem, não vai adiantar nada mesmo. Não adianta ir lá e fazer um
discurso. É a própria pessoa que precisa ir 'sacando'. Então, nisso, a
gente tentava ajudar.
Neste fragmento, aponta a intersecção possível e até desejável entre a
psicanálise e a prevenção. À diferença do exemplo anterior, em que
"estava escrito: 'para a prevenção de dificuldades de aprendizagem e
distúrbios de conduta' " - o que se constitui de fato em
impossibilidade para a psicanálise - , o exemplo acima deixa claro
como, a partir de sua escuta, o psicanalista pode se "encaixar" em um
trabalho de saúde que visa a prevenção. É dessa forma que a
psicanálise pode entrar na prevenção - "Só entra se você escutar o
sujeito mesmo", afirma a entrevistada.
À nossa pergunta sobre como se dá atualmente a sua inserção no Centro
de Saúde, se trabalha em algum programa de Saúde Mental, responde-nos:
Nos hospitais há mais psiquiatras e psicólogos, há uma chefia de Saúde
Mental. Aqui não. Ficamos subordinados a uma coordenadora de
programas. São os programas que têm a ver com os desgarrados. Há
neurologista, fonoaudiólogo, psiquiatra, psicólogo, nutricionista.
Somos poucos e todos coordenados por ela.
Ao nível central há uma coordenação de Saúde Mental. O que exigem é
mais uma coisa de números.
Também neste Centro, onde atualmente trabalham três psicólogas, duas
das quais com formação psicanalítica lacaniana, e alguns estagiários
coordenados pela entrevistada, o único registro que parece interessar
à instituição é o numérico - é esta a produtividade que conta.
Mais uma vez apontamos, agora através do significante "desgarrados"
enunciado pela psicanalista, a difícil articulação, que chamamos de
conjunção disjuntiva, entre psicanálise e saúde mental.
Neste "desgarramento", no entanto, o desejo determinado pode ir
abrindo algum espaço, inclusive físico, para a escuta da demanda dos
pacientes que chegam. Por exemplo, se antes não havia sequer uma sala
para a psicologia - "ficávamos na sala que estivesse vaga" -, agora
este espaço existe (é na psicologia que os psicanalistas, neste
Centro, se "encaixam"). Com isso, a marcação para atendimento não é
mais feita "lá embaixo", como acontece para as consultas médicas.
"Preferimos que não seja lá embaixo; (os pacientes) têm que vir falar
com a gente. Fomos determinando isso ao longo do tempo".
Chegada e encaminhamento dos pacientes: uma questão de escuta
Da primeira entrevistada - a que trabalha em um Centro de Saúde no
interior do Estado - , obtivemos o seguinte relato como resposta à
pergunta sobre este tema:
No princípio havia no Centro uma coisa assim: achavam que o paciente
só podia chegar se tivesse um encaminhamento médico. Eu comecei a
deixar claro que isso, para mim, não era o mais importante. Agora as
pessoas chegam e, se houver vaga, me procuram ou então vão para uma
fila de espera.
Neste Centro, onde não há registro dos pacientes, os que chegam pela
primeira vez dirigem-se ao guichê na entrada e dão o nome. Se há vaga,
são atendidos na hora; se não há, ficam na fila de espera. O número de
vagas, no caso da entrevistada, é fornecido por ela.
Continua:
Não é feita triagem. Algumas pessoas hoje em dia já chegam e me
procuram diretamente (porque já ouviram falar desta "psicóloga").
Outras passam por algum médico do Centro e este faz o encaminhamento
ao psicólogo. Eu estranho a forma como às vezes é feito este
encaminhamento porque muitas pessoas não têm necessidade de
tratamento. É aquela coisa: quando a pessoa vai ao médico e este não
sabe o que ela tem - às vezes porque nem ouve o que o paciente está
falando - , então joga para a psicologia.
Ao perguntar-lhe que médicos lhe encaminham pacientes, diz-nos:
"Normalmente é o clínico geral. É ele quem faz mais encaminhamentos".
Além de não haver registro dos pacientes que, para a instituição,
ficam como anônimos, sem marca simbólica - só interessa o quantitativo
da produtividade - , confirma-se aqui a freqüente questão da não
escuta do paciente por parte de profissionais que trabalham na rede
pública de saúde, principalmente médicos.
Como diz a entrevistada, o médico "às vezes nem ouve o que o paciente
está falando - então joga para a psicologia". Assim, além de anônimo,
o paciente é tratado como objeto que se joga para outro lado. Pode às
vezes até cair no lugar apropriado, por exemplo se suas dificuldades
são passíveis de uma escuta psicanalítica e o psicólogo que o recebe
ocupa o lugar do analista. Muitas vezes, porém, nada tem a fazer aí
porque o que procurava era mesmo uma consulta médica. Não
desconhecemos, entretanto, que há fatores externos que contribuem para
esta pressa em se livrar do paciente, sendo a exigência de um excesso
de produtividade, excesso de pacientes, certamente o mais freqüente.
Reproduzimos aqui o que lemos em A.C. Figueiredo:
Não cabe ao psicanalista exigir dos médicos que sejam menos médicos,
mas pode-se ousar provocá-los sobre o que mais podem fazer para
atender seus pacientes sem pressa de passá-los adiante (Figueiredo,
1997:53).
À nossa indagação sobre como distingue um encaminhamento feito de
forma adequada de outro que não é, responde:
Pelo que vou escutando para saber se esta pessoa tem uma queixa, um
motivo para estar aqui ou se veio apenas porque o médico disse que
tinha que vir. E tudo que um médico diz dentro de um Centro de Saúde
tem muito valor. A palavra do médico é fundamental. Mas algumas vezes
são encaminhadas pessoas que realmente precisam.
Mais adiante veremos que não são apenas os pacientes que atribuem
tanto peso à palavra do médico, ao qual é suposto um saber (e um
poder) quase absoluto.
Na prática, o lugar do analista
De um outro entrevistado ouvimos o seguinte relato sobre como lhe
chegam os pacientes:
Pelos mais diversos percursos. Chegam através dos outros
profissionais, dos médicos, numa linha que seria tradicionalmente um
programa de Saúde Mental dentro de um Centro de Atenção Primária.
Neste caso, chegam pela clínica - são encaminhados pelos médicos
quando, ao longo do atendimento, por algum motivo, consideram
conveniente que um paciente me procure. Acho que não há nenhum
programa, nenhuma orientação neste sentido, mas, na prática, os
Centros de Saúde onde existe um programa de Saúde Mental como esse
(mas não formalizado, como dissera anteriormente) acabaram se
colocando para a população como uma alternativa especial. É uma
alternativa de fato, que se estabeleceu na prática. Alguns pacientes,
sabendo através de outros pacientes ou familiares que existe esta
alternativa aqui, acabam vindo ou sendo trazidos.
Também na prática ficou estabelecido como rotina que me encaminhassem
diretamente estes pacientes. Então o primeiro contato que eles têm é
comigo mesmo. Os pacientes dos outros setores são recebidos primeiro
pela triagem, depois há um procedimento de enfermagem (limpeza,
preparo e tal). Isso é uma coisa muito complicada. Achei mais fácil
sugerir que estas pessoas me procurassem. Sabendo disso, os outros
profissionais, especialmente a enfermagem, encaminham diretamente para
o meu serviço.
Neste fragmento de relato chamou-nos a atenção a insistência com que
aparece o significante prática. Tal insistência revela que, nos
Centros de Saúde, é na prática mesmo que vão se construindo as
alternativas ambulatoriais de assistência àqueles que, pertencentes às
chamadas "camadas populares", necessitam ser escutados em seu
sofrimento psíquico.
Este psicanalista não faz críticas à maneira como lhe chegam os
pacientes:
Não existe nenhuma dessas formas que existem em outras instituições -
procedimentos de grupo, de triagem e tal. A ausência de rotinas e
coisas pré-estabelecidas permitiu que eu fosse criando formas de
trabalhar que me pareceram mais convenientes.
Embora trabalhando também de forma isolada, isto não faz com que o
entrevistado se sinta "solto", como acontece com a psicanalista
iniciante. Sem dúvida, a diferença se relaciona à experiência maior
deste psicanalista, inclusive com mais aprofundamento na própria
formação analítica. De qualquer forma, podemos questionar se é
desejável que as coisas se passem assim em um Centro de Saúde, apesar
de, na prática, isto acontecer com tanta freqüência.
Há exemplos interessantes de trabalhos em equipe, no que diz respeito
à chegada do paciente à instituição, ao primeiro atendimento e
posterior encaminhamento (ou não). A. C. Figueiredo cita a recepção:
O termo designa genericamente o primeiro atendimento, em geral em
grupos (mas pode não ser), e é usado muitas vezes no lugar do termo
triagem, que dá uma idéia mais burocrática e menos acolhedora do
atendimento (Figueiredo, 1997:42).
Tomando como referência os trabalhos de alguns autores, A. C.
Figueiredo discorre sobre a recepção de pacientes, dizendo então:
Definido o modelo, a primeira questão é saber se só os psicanalistas,
ou pessoas referidas à psicanálise, estariam aptos para a tarefa.
Penso que não só estes, mas, sem dúvida, o paradigma que sustenta a
proposta é psicanalítico (...). O trabalho implica um contato direto e
permanente com os diferentes profissionais que atuam no serviço, dos
atendentes aos médicos, atravessando as hierarquias funcionais e
burocráticas. A recepção pode ser um bom termômetro da instituição ao
tornar mais públicos, portanto mais transparentes, seus procedimentos
clínicos, seus problemas e soluções no percurso de cada paciente
(Id.Ibid.: 43-44).
A. M. Lobosque, uma outra autora já anteriormente citada, com
experiência clínica em Centros de Saúde, menciona a instituição do
chamado Pronto Atendimento em um Distrito Sanitário de Belo
Horizonte:
Qualquer pessoa que demande atendimento à Saúde Mental é encaminhada a
um dos membros da equipe, o qual, depois de uma rápida avaliação,
decide qual a maior ou menor urgência do atendimento: assim, o
paciente pode ter sua consulta marcada para o mesmo dia, para daqui a
uma semana, ou daqui a um mês. (...) Todas as pessoas que nos procuram
são atendidas ao menos uma vez, mas para boa parte delas não nos
parece adequada a permanência na Saúde Mental (Lobosque, 1996:47).
Trabalhando com a demanda ou despachando a demanda
Voltando aos nossos entrevistados, a psicanalista que trabalha em um
Centro de Saúde da zona sul nos fala sobre como lhe chegam os
pacientes:
A procura é enorme porque já sabem do serviço, sabem que aqui
atendemos e que isto não acontece em todo local. Mas há muito
encaminhamento errado. Embora aqui eu ache que até funciona muito bem,
há alguns médicos que fazem um atendimento muito rápido. Têm que
atender, além do número de pacientes já marcados, não sei quantos mais
que são agendados na porta. Então isto é um problema. Às vezes os
pacientes querem conversar um pouco com o médico e não podem. Há então
um tipo de encaminhamento que é feito por uma falta de paciência do
médico, mas também de tempo.
Trata-se aqui da mesma questão que já fora enunciada por outra
entrevistada. No entanto, aqui, se a pressa em se desfazer do paciente
corresponde à não escuta do médico, corresponde também a uma demanda
que se torna excessiva, diante da pouca oferta.
Não deixa de ser interessante, porém, a diferença que a entrevistada
descreve entre encaminhamentos feitos por uma fonoaudióloga e por uma
psiquiatra. Depois de dizer que a maior parte dos encaminhamentos é
feita por médicos, coloca:
Hoje em dia há uma coisa que funciona quando se trata de crianças que
é a fonoaudiologia. Há uma fono excelente e trabalhamos muito em
conjunto. Ela conversa bem com os pais, faz um certo trabalho
preliminar e só encaminha os casos de que não dá conta. Encaminha bem
e estes pacientes ficam.
Relata então que uma estagiária fizera entrevistas, para um trabalho
do seu curso de graduação, com profissionais do Centro que encaminham
pacientes, e diz: "Era gritante a diferença entre o que a fono
respondeu e o que disse a psiquiatra".
A título de exemplo, reproduz a fala de pacientes que lhe chegam
encaminhados por esta última:
'Eu vim porque a doutora mandou', 'Eu adoro ela'. Em suma, a
psiquiatra está me transferindo o problema, e aí eu digo: 'Então
continua com ela'. E a resposta é: 'Eu quero continuar com ela, eu só
vim porque ela mandou'. 'Tudo que a doutora mandar eu faço'. E o que
falou na entrevista a psiquiatra? 'Eu mando logo embora para não criar
o vínculo'.
Vínculo que a psiquiatra não suporta diante, talvez, do excesso de
demanda, mas que sequer escuta como já estando estabelecido, tal a
pressa em passar adiante o paciente.
Felizmente, percebe-se que os encaminhamentos feitos de forma
inadequada não trazem grande dificuldade à psicanalista entrevistada,
uma vez que reafirma: "Eu acho que aqui, no geral, as coisas funcionam
muito bem". Certamente para isto conta e muito a sua longa experiência
neste Centro e um desejo decidido que a fez ir sempre buscando uma
forma possível de exercer a sua práxis. Foi assim que resolveu criar
os grupos que ora chama de recepção, ora de triagem, como forma de
modular a demanda:
Eu marco de dois em dois meses um grupo (deixa na sua porta um aviso
afixado com a data). Mesmo assim interrompem, batem na porta, mas aí
você diz: 'É dia tal'. Qualquer pessoa vai ter que passar pela triagem
(mesmo os pacientes encaminhados por outros profissionais do Centro).
Antes de iniciar, eu faço um discurso: 'Não tem vaga...'
O preço a pagar
Faço então a triagem mais grosseira em grupo, converso um pouco, aviso
que vai ter uma fila de espera. Para conversar uma vez digo que sempre
tem vaga, mas para atendimento (isso eu não digo) nunca tem vaga logo.
O que digo - e é verdade - é que a gente sempre chama, só não sei
dizer quando.
É com sua escuta que, nesta triagem, a psicanalista pode contar como
único instrumento para modular a demanda. Neste sentido, a situação
aqui não é diferente da que se coloca para o psicanalista também no
consultório - é sempre da escuta da demanda que se trata. Portanto, no
que diz respeito às instituições públicas de saúde onde a psicanálise
se faz presente, o problema não está na demanda e sim na oferta que o
Estado disponibiliza. E isto, como bem sabemos, não se refere apenas à
psicanálise. A questão, para o psicanalista, é como lidar com as
diferentes demandas, inclusive de "produtividade", com que se vê
confrontado. Para esta psicanalista, uma resposta foi a criação dos
grupos mencionados: "No grupão de triagem eu não deixo a pessoa entrar
com muito enredo. Às vezes dá para perceber um pouco o que é..." Pelo
menos os encaminhamentos inadequados já são resolvidos aí, bem como
algumas buscas de tratamento equivocadas.
Alem disso, o fato de o tratamento ser de graça contribui também para
uma demanda inicial um tanto selvagem. A este respeito, diz a
entrevistada: "Então resolvi que tinha que dificultar, no sentido de:
Quer mesmo? Pensa um pouquinho". Claramente tal colocação tem o
significado de um preço a pagar.
Diz-nos então:
As dúvidas ou as pessoas que podemos encaminhar para algum lugar que
não seja outro serviço público - porque aí vai sair da minha fila de
espera para a do outro - , a estas pessoas eu digo que fiquem para
conversarmos depois.
Uma postura de escuta está aqui implicada, em que à demanda massiva
outra resposta é dada que não o passar adiante o paciente de forma
apressada.
Ao perguntar-lhe sobre que pacientes ficam, responde-nos:
Há uns com os quais nem converso depois porque a pessoa fala um pouco
e eu já vejo que é caso para aqui, que vai ter que esperar para ser
atendido. Há casos que são mais urgentes, vão para a fila de espera
(mas com uma indicação de urgência). Há muitos que não vêm, quando
chamamos alguns meses depois. E aí, se perdeu a vaga, para conseguir
de novo vai custar. Esse é que é o preço.
Mais uma vez o tempo de espera é aqui colocado como um preço a pagar
por aqueles que não o podem fazer com os meios convencionais. Não se
trata, portanto, de que só pode haver psicanálise se esta for paga em
dinheiro. Se o desejo do analista está a postos, certamente ele poderá
inventar também outras formas de pagamento, em que algo o sujeito terá
que perder. E assim, tendo que esperar um novo momento de ser chamado,
quem sabe lhe advenha o desejo de iniciar uma análise?
As condições institucionais: facilidades e obstáculos à prática da
psicanálise
Sobre este tema, diz-nos a mesma psicanalista:
Eu acho que (a instituição) nem facilita nem dificulta. Por um lado
talvez dificulte porque é uma instituição médica. Antes vinham ordens
assim: 'O atendimento tem que durar seis meses', 'O atendimento tem
que ser em grupo'. E eu ia fazendo o que achava que era importante.
Porque o que querem é que você trabalhe e, é claro, eu estou aqui para
trabalhar. Então eu vou ver por onde posso trabalhar. Já estou aqui há
vinte e dois anos - muda chefe, muda diretor e eu continuo; portanto,
não têm muito como mandar.
Ao mesmo tempo que percebemos neste fragmento de discurso o que parece
ser um lugar comum no que diz respeito ao exercício da prática da
psicanálise em Centros de Saúde - a falta de entrosamento, de
procedimentos pactuados - , por outro lado fica patente que o lugar é
produzido por quem trabalha. Se a entrevistada nos diz que não
encontra obstáculos na instituição, é porque foi aos poucos
construindo aí o seu lugar de analista:
Fomos conseguindo instituir uma coisa meio diferente. Por exemplo, a
marcação não é feita lá embaixo. Embora haja uma ordem de cima quanto
ao número de pacientes que cada profissional tem que atender por
horário (de quatro ou cinco horas), conseguimos que o nosso
atendimento fosse de meia hora e não de quinze minutos, que é o tempo
considerado para a consulta dos médicos - e que eles fazem em cinco
minutos. Assim, o número de pacientes diminui e eu atendo no tempo que
quiser (trata-se aqui, é claro, do tempo variável das sessões, de
acordo com o postulado lacaniano do tempo lógico, e não de um tempo
que depende da vontade do analista).
Quer dizer: "Conseguimos manobrar um pouco, mas dando também um pouco
do que eles estão querendo".
Neste sentido, acentua que ao psicanalista não cabe fazer oposição,
mas aproveitar as brechas possíveis para construir seu lugar.
De fato, a questão que se coloca não é a de não fazer oposição e sim a
de tratar a demanda da instituição sobre ela, analista, com a operação
lógica do tempo, devolvendo-lhe o que é impossível. Ao mostrar a via
do manejo da demanda, fazendo aparecer o que é impossível de
responder, a psicanalista está dando a resposta possível à instituição
- uma resposta que nada tem a ver com o quantitativo e sim com o
instrumental que Lacan propõe para tratar a demanda. Fazer oposição
seria, na verdade, responder à demanda institucional com uma contra-
demanda. Por isso, diz-nos esta entrevistada:
Os psicanalistas que conheço estão sempre tendo um pouco que marcar
posição. Não é se opondo, mas cabe a nós mostrar o que é o nosso
trabalho, não só porque os outros profissionais não conhecem, mas
também porque a resistência à psicanálise existe.
Como exemplos do que pode ser feito neste sentido, refere-se às
palestras que faz e aos casos que às vezes apresenta no Centro de
Estudos da instituição:
Eu acho interessante porque é uma instituição médica, e é preciso que
você vá marcando aos poucos o seu lugar. Como querem que a gente faça
prevenção, não se trata de se opor a isto, mas de ir mostrando. Um
exemplo que eu sempre dou no Centro de Estudos é o daquele trabalho
com adolescentes (de prevenção da AIDS e da gravidez precoce). Fazia-
se todo um trabalho sobre a sexualidade, dava-se informação, e aquela
que era a adolescente mais interessada ficou grávida. Digo que não
acho que isso seja um fracasso, mas tento mostrar que os discursos são
diferentes (o da prevenção e o da psicanálise).
Uma vez levei um caso de psicanálise com criança e a pediatra
perguntou: 'Você não tem dificuldade de colher as histórias com as
mães das crianças aqui?' Respondi: 'Eu não, porque a história que vou
colher é outra. Não preciso saber direitinho como nasceu, em que idade
andou, etc.'.
São exemplos interessantes que nos levam a pensar no que pode ser
feito pelo psicanalista que trabalha numa instituição pública de
saúde, no sentido de tentar despertar os médicos para uma escuta mais
atenta de seus pacientes. Como diz a entrevistada: "O psiquiatra é
capaz de não perceber a ligação que o paciente tem com ele".
Respondendo à mesma questão sobre a organização do Centro de Saúde em
relação ao exercício de sua prática, afirma a entrevistada que
trabalha no interior do Estado que não há dificuldades porque "não há
uma organização". E continua: "Eu acho que o único interesse da chefia
é mesmo com a produtividade, é chegar ao final do mês e ter um bom
número de atendimentos".
Apesar das críticas que faz à falta de organização institucional,
considera-a ao mesmo tempo um facilitador do seu trabalho.
Fica muito tranqüilo porque eu tenho a vantagem de poder trabalhar da
forma que quero. Não há ninguém tomando conta de quantas pessoas
entram e de quanto tempo ficam na sala. Com uma chefia, neste aspecto,
podia ser mais complicado, podia não aceitar esta forma de trabalho.
À diferença da psicanalista anterior que, por ter uma longa
experiência no Centro de Saúde em que trabalha, podia dizer: "Muda
chefe, muda diretor e eu continuo; portanto, não têm muito como
mandar", aqui o discurso é outro. Há menos de dois anos no Centro,
esta jovem praticante da psicanálise diz, por exemplo, que uma chefia
poderia "tomar conta" e "não aceitar" sua forma de trabalho. Apesar de
tão diferentes, os dois fragmentos de discurso marcam que cabe aos
psicanalistas a construção do seu lugar na instituição pública de
saúde, a partir de seu próprio trabalho.
Percebemos, no caso da entrevistada de agora, que é também desde a
simples marcação dos atendimentos que ela vai estabelecendo uma
diferença de posição, inclusive em relação aos demais psicólogos (são
ao todo cinco; os outros trabalham numa linha comportamental).
Diz-nos:
Tenho a minha agenda, onde abro em média quarenta horários, e aí vou
marcando a hora de cada paciente (como a psicanalista do outro Centro,
esta aqui também reserva meia hora para cada atendimento). Então os
meus pacientes não precisam ir ao balcão pegar ficha ou falar com
alguém. É só irem à sala onde estou e, na sua hora, são atendidos.
O estranho nisto é que, na instituição, não há registro de que estes
pacientes foram atendidos por ela. Como anônimos, são englobados no
cômputo numérico da "produtividade".
Continua:
Para os outros psicólogos a marcação é feita no balcão e há um número
certo de fichas. Se o paciente consegue uma ficha, ótimo. Se não
consegue, terá que tentar na semana seguinte (isto acontece mesmo com
aqueles que já estão em atendimento...).
Quanto aos pacientes que chegam pela primeira vez, já sabemos que lhe
serão enviados, caso haja horários vagos, cujo número é fornecido por
ela a quem atende no balcão de entrada.
O psicanalista e o médico
À nossa pergunta sobre se encontra dificuldades em relação aos demais
profissionais de saúde, responde-nos:
Não. Eu não tenho nenhum contato com eles porque o Centro gira em
função do médico. Para os atendimentos médicos a coisa funciona muito
bem, é muito organizado. É a palavra do médico que tem valor - o que
ele diz ou quer é o que conta. O resto é o resto. Se houver apenas uma
sala vaga e eu a ocupar porque é meu dia de trabalho, se chegar um
médico que veio atender porque resolveu trocar seu dia, com certeza
quem vai ficar sem sala sou eu.
Ao indagarmos se isto já lhe acontecera, responde-nos que sim e relata
como a questão foi resolvida:
Fui falar com o administrador, ele me pediu muitas desculpas e me
perguntou se eu poderia ficar em outra sala - aceitei, mas disse-lhe
que isto não era o correto.
Perguntamos se não considerava a ocorrência de situações deste tipo
como uma dificuldade quanto aos demais profissionais. Diz-nos então:
Neste aspecto sim porque parece que o médico é alguém com quem não se
pode mexer. Tanto assim que alguns funcionários achavam que podiam
entrar na minha sala a qualquer hora só porque um médico queria algum
material. Fui deixando claro que não se funciona assim e que se o
médico quer alguma coisa que aguarde.
Neste Centro não há nenhuma sala destinada à psicologia. Os psicólogos
usam as salas de atendimento médico quando os médicos não as estão
usando.
De fato, os Centros de Saúde funcionam como instituições médicas, em
que a saúde é considerada apenas como uma questão médica, no sentido
biológico mesmo. Quando um "psiquiatra não é capaz de perceber a
ligação que o paciente tem com ele" - como dissera a outra
psicanalista entrevistada -, está provando que considera o psíquico
como biológico. Então, se achar que não é o caso de medicar, o melhor
é mandar o paciente embora o mais rápido possível para "não criar o
vínculo"...
Neste contexto, o médico emerge como senhor e mestre quase absoluto,
cuja palavra tem peso de lei no imaginário tanto dos pacientes como
dos funcionários do Centro de Saúde. No entanto, ao dizer a um destes
últimos que "se o médico quer alguma coisa que aguarde", é neste
imaginário que, em sua posição de analista, como resto mesmo, a
entrevistada vai estabelecendo um furo.
Esta jovem psicanalista revela, porém, uma posição por demais
ressentida em relação ao lugar que o médico ocupa em uma instituição
que, afinal de contas, é médica em seus próprios fundamentos.
A medicina não poderia deixar de estar no centro de uma instituição
que é um Centro de Saúde. Além disso, como diz L. Hegenberg em seu
livro Doença - um estudo filosófico, "é provável que a Medicina tenha
surgido com a humanidade. Vítima e testemunha do sofrimento, o ser
humano deve, desde logo, ter-se debruçado sobre os doentes, com o
desejo de curá-los" (Hegenberg, 1998:18).
Talvez seja neste sentido que M. Foucault afirme em O nascimento da
clínica: "Antes de ser um saber, a clínica era uma relação universal
da Humanidade consigo mesmo (...)" (Foucault, 1998:60).
Se é longa a história do saber médico, uma coisa é certa: foi a partir
da medicina que surgiu toda a problemática da saúde e da não-saúde.
Sendo condição de possibilidade de resgate do vivo, a medicina colocou
também o invisível da morte no discurso.
Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à experiência
médica que a doença pôde se desprender da contranatureza, e tomar
corpo no corpo vivo dos indivíduos. É, sem dúvida, decisivo para a
nossa cultura, que o primeiro discurso científico enunciado por ela
sobre o indivíduo tenha tido que passar por este momento da morte
(Id.Ibid.: 227).
Que a medicina esteja no centro de um Centro de Saúde é a única
possibilidade, da mesma maneira que a psicanálise não poderia ter
surgido a não ser a partir da medicina.
Do psicanalista que é também médico psiquiatra, obtivemos a seguinte
resposta à questão sobre a organização do Centro de Saúde e sobre os
demais profissionais, em relação ao exercício de sua prática:
A instituição nunca criou obstáculos ou dificuldades. Eu acho até que
facilitou em relação ao programa de Saúde Mental exatamente por esta
informalidade (anteriormente já mencionara a ausência de normas pré-
estabelecidas). Sempre me deixou à vontade para que eu trabalhasse da
maneira que achasse mais conveniente.
Quanto aos outros profissionais, tenho a impressão que ficam todos
muito satisfeitos pelo fato de terem esta alternativa porque boa parte
da demanda de atendimento em instituições como esta, de atenção
primária, inclui componentes psicológicos e psicossomáticos, em maior
ou menor grau. Então, a existência de um programa de Saúde Mental aqui
na instituição é bem vista pelos médicos. Eu acho que eles tratam isso
com certa externalidade, como se eu fosse um outro especialista para o
qual encaminham os problemas que não conseguem resolver.
O significante "informalidade" aqui empregado nos parece mais adequado
à psicanálise do que ao programa de Saúde Mental. É a prática da
psicanálise que, nas instituições de saúde pública, parece estar
sempre presente de maneira informal, viabilizada um tanto
alternativamente por um programa de Saúde Mental. Programa que, às
vezes, não passa de uma denominação, como apontara anteriormente o
entrevistado.
Se a chamada Saúde Mental mostra freqüentemente um distanciamento tão
grande entre o seu discurso e a existência de um programa efetivo,
mais evidente ainda é a falta de articulação entre o discurso da saúde
mental e o da psicanálise. A "in-formalidade" não será então a
condição de possibilidade mesma para que haja inserção do psicanalista
nas instituições da rede pública de saúde?
Outro ponto a marcar no fragmento de discurso acima é o lugar que,
neste Centro de Saúde, é dado ao psicanalista médico, justamente por
ser médico e não por ocupar o lugar de analista. Para os colegas
médicos ele é um dos pares, um "especialista" que resolve os
"problemas" que eles mesmos não conseguem resolver.
A diferença é enorme se compararmos o seu relato com o da psicanalista
psicóloga, já citada anteriormente. Isto só faz reafirmar, um pouco
pelo avesso e apesar de sua posição ressentida, o que esta nos dissera
a respeito do lugar do médico nos Centros de Saúde.
Consideramos importante marcar ainda uma diferença entre o Centro de
Saúde da zona sul e o da zona norte. O primeiro atende a uma extensa
região que compreende seis populosos bairros.
Quanto ao Centro de Saúde da zona norte, relata-nos o psicanalista
entrevistado:
Aqui há uma situação boa, pois a clientela deste Centro de Saúde é
restrita à população que reside aqui. Há uma certa área demarcada, com
uma população de trinta mil pessoas. Isto nos permite fazer um
trabalho continuado; as pessoas têm facilidade de vir porque o Centro
é próximo às suas residências.
Aparece assim a importância da proximidade do local de atendimento
como uma condição que facilita o trabalho clínico deste psicanalista,
o que já não acontece no que diz respeito ao Centro de Saúde da zona
sul. Este, por atender a seis bairros, certamente tem na distância um
fator que dificulta a vinda de vários pacientes, até porque implica em
gastos com a condução. Trata-se, mais uma vez, da questão de pouca
oferta: um único Centro de Saúde que atende a seis bairros populosos é
um bom exemplo de que é na patologia da oferta - e não na demanda -
que reside o problema.
Sobre a rotatividade: os que abandonam e os que ficam
Sobre a questão da rotatividade de pacientes, diz-nos a psicanalista
que trabalha no interior do Estado:
Há uma certa rotatividade sim. Tenho quatro pacientes que estão comigo
desde que comecei aqui, há quase dois anos. Mas a média de permanência
é de seis meses mais ou menos. As pessoas chegam com uma queixa, mas
conforme o problema se resolve, acham que não têm mais necessidade de
continuar vindo. Há casos em que acho que a pessoa deveria continuar o
tratamento, mas há outros em que concordo com a saída.
Nem todos os que chegam a um psicanalista iniciam de fato uma análise.
Mesmo nos consultórios privados são vários aqueles que não passam das
entrevistas preliminares, ou seja, do tempo prévio, preliminar ao
início do trabalho analítico propriamente dito, necessário à
instauração da transferência. São sempre poucos, na verdade, os que se
decidem a fazer uma análise e entram no dispositivo da transferência.
Afinal, se esta é causada pelo desejo do analista, há que se pensar
que não se trata de um desejo todo poderoso que sempre levará a uma
análise aquele que chega ao analista. O desejo do analista tem
limites.
O que importa, no entanto, é que haja um psicanalista a postos com seu
desejo para escutar cada um daqueles que o procuram e que não podem
pagar em dinheiro por esta escuta. Se há pessoas que chegam com uma
queixa e, "conforme o problema se resolve, acham que não têm mais
necessidade de continuar vindo", é justamente porque foram acolhidas
por uma escuta que certamente não foi passiva. Se "o problema se
resolve" é porque algo desta escuta operou. E por saber que a
psicanálise se faz à medida do possível, a psicanalista aceita que
estes pacientes deixem o tratamento, mesmo achando que deveriam
continuar e, em "outros casos", até concorda com sua saída.
Um outro entrevistado relata o seguinte:
Muito freqüentemente as pessoas interrompem o tratamento. A maior
parte delas vem, faz algumas entrevistas e depois interrompe. Talvez a
situação específica que leve a isso seja a forma de chegada dessas
pessoas que, por vezes, são encaminhadas pelos clínicos - alguma forma
de chegada desse tipo, a partir da qual não se estabelece o vínculo
transferencial. Vêm um pouco por curiosidade, um pouco por obrigação
porque o clinico sugeriu que viessem. Não é uma coisa que parta da
própria pessoa. Eu acho que isso é muito claro numa situação
institucional como a daqui. Quando as pessoas vêm pela primeira vez,
chegam com uma demanda terapêutica como se fosse a um médico de outra
especialidade qualquer. Quando não se consegue uma rotação nesta
demanda, as pessoas abandonam. Acho que talvez seja esta uma das
fontes de abandono do tratamento num momento precoce. Mas com algumas,
no meio desse caminho, algo de novo surge.
Este mesmo psicanalista não fizera críticas à maneira como lhe chegam
os pacientes encaminhados por outros profissionais do Centro de Saúde,
especialmente médicos. No entanto, aponta agora este fator como uma
das causas do abandono precoce do tratamento - o que se constitui,
portanto, em dificuldade advinda de outros profissionais ao exercício
de sua prática.
Aqui também aparece o peso da palavra do médico: os pacientes "vêm um
pouco por obrigação porque o clínico sugeriu". Se dele aceitam a
sugestão é porque foi com ele que estabeleceram algum vínculo
transferencial; era a escuta do médico que buscavam e não encontraram.
Mas não é a sugestão que leva alguém a um tratamento psicanalítico;
como deixa claro o entrevistado, é preciso que a busca "parta da
própria pessoa".
Ao dizer que, quando não consegue "uma rotação na demanda terapêutica"
que lhe é dirigida como a um médico, as pessoas abandonam o
tratamento, o entrevistado está apontando também ao limite do desejo
do analista. Por outro lado, se com alguns pacientes "algo de novo
surge", ou seja, uma transferência psicanalítica pode se instaurar, é
justamente porque, em um Centro de Saúde, encontraram um psicanalista
a postos para escutá-los no sofrimento que a sua miséria neurótica
lhes traz. Nestes casos, era isto mesmo o que tais pacientes buscavam,
ainda que sem saber bem como expressá-lo.
Sobre a mesma questão, diz-nos a outra psicanalista:
Há muitos que abandonam, mas eu acho que a questão toda é na procura.
Muita gente procura e a porcentagem dos que ficam é pequena. Quando
chegam os estagiários novos e começamos a chamar a fila de espera, dos
dez que cada um chama ficam quatro, três, às vezes dois. Há uma
facilidade na procura porque é de graça. Então, eles vêm mais
facilmente do que iriam a um consultório particular. Por isso, eu
dificulto (dá como exemplo a triagem): 'Foi em maio, agora só em julho
tem triagem'. Mesmo assim podem chegar e dizer: 'Não, não vou ficar
falando. Quero um conselho, quero um remédio'. Aqui é uma instituição
médica; então, as pessoas procuram muito por um remédio ou esperam
encontrar um médico. Quando chegam aqui, às vezes começam agradecendo
muito - 'Que bom, consegui uma vaga, muito obrigada' -, mas quando
vêem que é outra coisa, quando vêem o que é, ou param de agradecer e
começam a trabalhar ou saem rápido.
Acho que há toda uma questão do momento em que chegam, como são
encaminhados, se têm mesmo uma demanda de análise ou não. Às vezes
podem não ter antes, mas podem chegar e isso se estabelecer. Penso que
é mais um problema das entrevistas preliminares. Mas aqueles que
ficam, ficam mesmo e aí a questão é saírem - não há jeito de
largarem...
Há aqui pontos em comum com o relato do entrevistado anterior. Neste
Centro de Saúde também muitos pacientes se vão logo no início. A
diferença está em que, enquanto esta psicanalista atribui um peso
maior ao fato de o atendimento ser de graça, o que facilita a procura
inicial, mas leva a um abandono precoce, o psicanalista anterior dá
maior ênfase à forma como os pacientes são encaminhados pelos médicos.
Se diz, no entanto, que há os que vêm por curiosidade, certamente não
desconhece que isso se relaciona ao fato de se tratar de um
atendimento gratuito. Neste sentido, é interessante percebermos que a
entrevistada de agora volta a colocar o tempo de espera pela triagem
como um certo preço inicial a pagar, uma primeira forma de fazer
surgir alguma demanda de análise. "Por isso eu dificulto", diz, para
acrescentar em seguida: "Não é um dificultar por dificultar" - ou
seja: não se trata apenas de um artifício para reduzir a fila de
espera. É nos referenciais teóricos da psicanálise que se sustenta
para estabelecer esta interdição inicial que, ao introduzir uma falta
(o atendimento não é imediato, há que esperar), vai possibilitar, ao
menos a alguns, a emergência de algo da ordem do desejo que se
articulará em uma demanda primeira de análise.
Também aqui muitos pacientes se dirigem de início ao psicanalista como
"se fosse a um médico de outra especialidade qualquer": querem um
remédio ou, no mínimo, um conselho médico. Afinal, vêm a uma
instituição médica que, apesar de não ser apenas médica, faz com que o
saber seja suposto sobretudo ao médico. Mas, como diz o entrevistado
anterior, "com algumas pessoas, no meio desse caminho, algo de novo
surge". É o que reafirma a entrevistada de agora: "Às vezes podem não
ter antes (uma demanda de análise), mas isso pode se estabelecer".
Quer dizer, pode se dar uma rotação da "demanda terapêutica" dirigida
ao médico a uma demanda de análise. Quando isto acontece, sabemos que
o desejo do analista operou, no sentido de provocar a transferência.
Um saber já é então suposto ao analista que vai, assim, sendo
instituído como sujeito suposto saber.
Diz a psicanalista: "É um problema das entrevistas preliminares". De
fato, é neste tempo prévio que a transferência se instaura - ou não.
No caso negativo, os pacientes não entram em análise e interrompem o
tratamento. No caso positivo, pode então se iniciar o trabalho de
análise: pela via da associação livre o inconsciente se põe a
trabalhar.
O problema que está agora se colocando para esta psicanalista é o que
fazer com a transferência quando, depois de anos de tratamento em um
Centro de Saúde, com a "fila de espera do tamanho de um bonde" (como
diz mais adiante), "não há jeito" de o paciente ir embora... A isso
voltaremos ao final do trabalho com as entrevistas.
É possível uma análise porque "um sujeito quer falar"
A respeito de como percebe quando uma análise é possível, diz-nos a
jovem psicanalista:
Penso que o que há de mais fundamental é a questão da fala e de como
esta é escutada. Você pode ouvir achando que é você quem sabe sobre
aquele sujeito e que é você que vai resolver sua vida. Mas você pode
escutá-lo de outra forma, trabalhando na transferência - penso que é
por aí. Apesar de não haver pagamento, de o Centro não dar condições
físicas, como um divã, por exemplo, e uma série de outras coisas, é
possível fazer (uma análise em um Centro de Saúde); porque o mais
importante é um sujeito que quer falar e quer modificar a sua posição
na vida.
Está implícito neste fragmento de discurso que a entrevistada
considera a instauração da transferência como o essencial para que um
tratamento psicanalítico seja possível. Sabe que sem este dispositivo
não há possibilidade de análise e que, para a instauração do mesmo,
não são as condições físicas, não é o chamado setting que importa. O
fundamental é que o desejo do analista esteja posto em ato para
provocar a transferência, possibilitando que aquele que fala produza o
dispositivo.
"Algo de novo surge": demanda de análise e transferência
Ao pedir-lhe que nos dê um exemplo do que considera a formulação de
uma demanda de análise, diz-nos:
Eu pensaria em uma paciente que está comigo desde o princípio (há
quase dois anos). Veio porque tinha depressão há dez anos e já passara
por vários tratamentos que nunca deram certo. Chega um momento em que
pode dizer que não davam certo porque tinha que pagar. Como não
trabalhava, quem tinha que pagar era sempre o marido. Quando começa a
perceber que aqui é ela quem paga - porque paga de uma outra forma,
trabalhando -, a coisa começa a funcionar. Há uma mudança no discurso
dela, pois até então tudo era culpa do marido ou da mãe. Passa a falar
em trabalhar para poder pagar as suas próprias coisas. Diz que tem que
trabalhar não só fora, mas também aqui. Se tivesse o divã, eu pediria
que se deitasse naquele momento.
Ao queixar-se do marido e da mãe, a paciente não sabia que era de sua
miséria neurótica que falava. Um tempo era necessário para que pudesse
reconhecer a sua responsabilidade pelo que a fazia sofrer. Se antes os
tratamentos não davam certo porque, como não trabalhava, era o marido
quem tinha que pagar por eles, chega o momento em que pode perceber
que, neste tratamento de agora, é ela quem paga com o próprio trabalho
a que, ali, está lançada. É porque o analista está em sua função,
operando com o desejo, que a paciente pode dizer então que tem que
trabalhar para pagar suas próprias coisas, mas tem que ir também
trabalhar em análise. É o inconsciente que, pela via da associação
livre, se põe agora em trabalho - uma transferência se instaurou. Por
isso, marcando o momento da entrada em análise, diz a analista: "Se
tivesse o divã, eu pediria que se deitasse".
Relata então um segundo exemplo:
Penso em uma outra paciente, de vinte e cinco anos, que me procurou
porque tinha as ditas 'crises de pânico'. Fala disso, mas acha que não
vai resolver vir aqui porque tem pressa, quer alguma coisa rápida. No
que vai falando, vai escutando o que está dizendo. É isto que me chama
a atenção: quando a própria pessoa passa realmente a escutar o que
fala. Ela vai se escutando e chega a um ponto em que as tais crises de
pânico somem. Então ela me fala assim: 'Eu acho que eu até podia parar
aqui, mas acho que a gente pode continuar porque tem mais coisas para
a gente fazer'.
Parece-nos importante marcar aqui a posição do analista. Sem responder
à demanda de pressa da paciente, de "alguma coisa rápida" que lhe
tirasse o "pânico", até porque não havia mesmo como responder, a
analista, sem pressa, a escuta. Certamente pontua o discurso que lhe é
dirigido e, por isso, "no que vai falando", a paciente "vai escutando
o que está dizendo". Confirma-se aqui a proposição lacaniana: "É do
Outro que o sujeito recebe a própria mensagem que emite" (Lacan,
1998:821).
Se a paciente pode se escutar, ou seja, se reconhecer em sua própria
mensagem, é porque o que era antes "pânico" - real sem representação
que a invadia -, foi, de alguma forma, posto em palavras e, assim,
simbolizado. E nisto o analista teve a sua parte.
As "crises" desaparecem e agora, já sem pressa de fugir do "pânico", a
paciente dirige à analista sua demanda de análise como proposta de um
trabalho conjunto: "Acho que a gente pode continuar porque tem mais
coisas para a gente fazer". Uma outra transferência se instaura e,
para fazer o trabalho de análise, a paciente precisa do analista como
causa e testemunha do mesmo.
No relato destes dois exemplos da formulação de uma demanda de análise
e instauração da transferência, chamou-nos a atenção o fato de que
ambas as pacientes chegam à analista já tendo um nome para aquilo de
que sofrem: depressão e pânico. Entre várias outras, trata-se aqui de
duas "categorias que patologizam o cotidiano em suas bases
fundamentais", como afirma Amarante (1999:51).
Ao invés de aceitar e concordar com os rótulos, a psicanalista oferece
sua escuta operante ao que estas pacientes têm a lhe falar sobre o
que, em sua miséria neurótica, as faz sofrer. Aponta-lhes, assim, um
caminho novo que lhes permita lidar, no cotidiano de suas vidas, com o
incurável mal-estar de ser humano. Se pode fazer isso, é certamente
por pensar as "bases fundamentais" do cotidiano em consonância com o
mal-estar na cultura, ao invés de contribuir para patologizá-lo ainda
mais.
Ao fazer a outro entrevistado a mesma pergunta sobre a escuta da
possibilidade de um tratamento psicanalítico e sobre questões
relativas à demanda de análise e à transferência, obtemos o seguinte
relato:
Depois destes dez anos aqui, acho que as dificuldades são as da
psicanálise em qualquer situação. São questões que aparecem tanto aqui
quanto no consultório, com outros significantes, outras representações
imaginárias, como não poderia deixar de ser, adequadas à cultura de
cada um. Com outras palavras e outras imagens, as pessoas falam de si
e das suas questões fundamentais. Aqui falam coisas referentes ao
tráfico de drogas, à igreja, ao pastor, ao baile funk. Acho que isso
precisa ser observado, mas é possível sustentar esta escuta.
Penso que se instaura uma demanda de análise quando a pessoa vai além
da demanda terapêutica inicial. Mesmo a um consultório privado ninguém
chega para uma primeira entrevista com uma demanda de análise já
formulada. As pessoas geralmente chegam com uma demanda terapêutica,
ou seja, com o mesmo tipo de demanda que dirigiriam a um médico, a um
psicólogo, a um técnico qualquer, portador de alguma especialidade. A
situação inicial geralmente é essa: tenho um problema, não entendo por
quê, vou então procurar alguém que me disseram que sabe e deposito o
meu problema nessa pessoa que aplica o seu saber e resolve. É isto que
estou chamando de demanda terapêutica.
Talvez o que seja específico em uma instituição como essa aqui é que
os pacientes vêm mais marcadamente com este tipo de expectativa, como
se fossem a um médico que, aplicando o seu saber, pudesse resolver o
problema.
Importante depoimento de alguém que, depois de dez anos em uma
instituição pública de saúde e tendo também seu consultório privado,
pode dizer a respeito de sua prática em um Centro de Saúde: "As
dificuldades são as da psicanálise em qualquer situação. São
dificuldades que aparecem tanto aqui quanto no consultório". Em poucas
palavras, desfaz a idéia tendenciosa de que ao pobre, em renda e
escolaridade, a Saúde Pública só pode oferecer, quando muito, uma
"psicanálise de pobre".
É também contra a mesma tendenciosidade que afirma a seguir: "Com
outras palavras e outras imagens as pessoas falam de si e de suas
questões fundamentais".
Neste sentido, diz-nos Benilton Bezerra Jr., em seu artigo
Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental:
Um paciente que não consegue traduzir verbalmente com fluidez o que
sente nem sempre está resistente ao tratamento ou com problemas
transferenciais. É possível que o vocabulário que possui para designar
experiências íntimas seja efetivamente restrito (...); daí o recurso a
expressões genéricas como nervoso, zonzeira, agonia, e a localização
corporal dos sintomas (...). Com ouvido atento (o analista) poderá
passar da fase de decepção para a de curiosidade e daí para a de
pesquisa séria em busca do código específico de descrição dos estados
subjetivos utilizado pelo paciente e aí encontrar terreno fértil
(Bezerra Jr., 2000:159-160).
É, pois, ao analista que caberá acolher com sua escuta o que está
sendo dito para, só então, provocar a emergência do inconsciente nas
entrelinhas do discurso da consciência. Antes disso, porém, é
necessário um tempo para que o paciente possa se reconhecer implicado
no seu sintoma. Deixando de senti-lo como um corpo estranho que lhe
pode ser extirpado pela aplicação de um saber, poderá então vir a
formular uma demanda de análise. E isto se passa assim tanto em um
consultório privado como em um Centro de Saúde porque se trata de uma
questão da psicanálise "em qualquer situação". Como o próprio
entrevistado deixou claro, se ao Centro de Saúde os pacientes chegam
mais especificamente com o mesmo tipo de demanda que dirigem a um
especialista, isto pode acontecer também em um consultório.
Diz ainda:
Se o psicanalista consegue, pela não resposta à demanda terapêutica,
fazer com que eles (pacientes) prossigam, em algum momento produz-se
uma mudança - começam a surgir as questões fundamentais do sujeito.
Parece que aí se poderia falar propriamente de uma demanda de análise.
Que este percurso seja feito e que a transferência se instaure vai
depender também da direção do tratamento. E não será certamente um
analista passivo que poderá causar a transferência e escutar a sua
emergência através, por exemplo, do surgimento de alguma formação do
inconsciente.
A este respeito, o mesmo psicanalista nos relata o seguinte exemplo:
Lembro-me de uma paciente que, em certa ocasião, estava falando do
casamento da filha. Contava com detalhes o que aconteceu e aí disse
assim: 'Ela pegou a grinalda e a jogou para as amigas'. Achei aquilo
estranho e perguntei: 'Jogou a grinalda?' Então ela disse: 'Não, jogou
a grinalda não, jogou o buquê'. E continuou: 'É que a grinalda também
é de flores e aí eu fiquei com a grinalda na cabeça'. Achei mais
estranho ainda e perguntei: 'Você ficou com a grinalda na cabeça?' Ela
disse então: 'Poxa, mas que coisa esquisita eu falei!' Interrompi
neste momento e, quando veio para o atendimento seguinte, sugeri que
ela passasse a se deitar ao invés de continuar sentada como estivera
até este momento.
Mais aquinhoado que as outras duas entrevistadas, este psicanalista
tem em sua sala um sofá muito simples que lhe serve de divã.
Trata-se, no exemplo relatado, de um ato falho que, ao revelar a
divisão do sujeito na sua própria palavra, indica que o inconsciente
se pôs a trabalhar porque já há uma transferência instaurada. E é
desta maneira que o "analista enquanto Outro se constitui em endereço
do inconsciente" (Vidal,...:20). Por isso, a paciente diz espantada:
"Que coisa esquisita eu falei!" Ao se escutar, pôde perceber que
falara sem saber o que dizia, dizendo outra coisa que não o que
pensava dizer.
Constatamos assim que é mesmo onde o discurso da consciência tropeça e
falha que o inconsciente se manifesta, revelando um saber não sabido.
Para que algo de novo possa surgir
"Eu acho que você tem sempre que oferecer a escuta e ver o que é que
vem de lá; marcar a posição do analista para ver se vai surgir uma
demanda de análise ou não" - diz-nos a outra psicanalista. E
acrescenta: "Não posso dizer que todos que estou atendendo estejam em
análise".
De fato, como já dissemos anteriormente, não são todos os que estão em
atendimento que entram em análise. São vários aqueles que não passam
das entrevistas preliminares, tanto em um Centro de Saúde como em um
consultório privado.
Através da fala de uma paciente, a entrevistada dá então um exemplo do
que é estar em análise, com a transferência operando:
'Mesmo quando tem feriado, não tem problema porque eu continuo
conversando com você durante a semana'. Vê-se então que é uma pessoa
que faz análise, há um suposto saber instituído, ela continua
trabalhando, se pergunta, não quer que eu dê uma resposta.
Interessante a maneira que, em sua singularidade de sujeito, esta
paciente encontrou de apresentar o analista enquanto Outro a quem se
dirige o inconsciente em seu trabalho.
O inconsciente não tem idade: dois percursos possíveis
Esta mesma psicanalista relata-nos fragmentos do percurso de análise
de uma paciente idosa:
Era uma senhora de setenta anos. Já está comigo há uns três anos. Veio
porque a médica a encaminhou e eu achei que era um desses casos que só
fazem as entrevistas iniciais, ficam um pouquinho e vão embora. Mas
esta queria mais. Tentei até mandá-la para um programa da terceira
idade, mas ela não quis. Começou assim: 'É a velhice, eu não posso, eu
já estou velha'. Dizia também: 'Eu sou assim, se vou à casa dos outros
eu levo um presente. Não tem jeito, eu não vou chegar lá de mãos
abanando'. Mas houve uma mudança no discurso; ela começou de fato a se
questionar: 'Mas por que eu sou assim?'
Mora no Rio há cinqüenta anos, é viúva, tem duas filhas e netos. Foi
ao Nordeste e voltou a me procurar.
A analista relata então como foi mudando o discurso da paciente em
relação à velhice e à morte:
Antes era assim: 'Já estou meio morrendo', 'Moro há cinqüenta anos no
Rio e não conheço nada', 'Antes eu não fazia nada por causa do meu
pai, depois casei e vim para o Rio e não conheço nada aqui'. Aí eu
comecei: 'Mas por que você não sai?' E ela: 'Porque eu não tenho
dinheiro, porque eu sou velha...' E eu: 'Mas por que é que não pode?
Tem tanto lugar de graça'. Aí dizia: 'Mas o que é que vão achar, eu
uma velha?' 'Que é que vão achar que estou querendo?' E eu: 'Pois é, o
que é que você está querendo?'
Se de início se queixa da velhice e diz que "não tem jeito", ao
encontrar uma analista que, por escutá-la, a questiona em suas
queixas, não tem outro jeito a não ser se perguntar sobre o que lhe
acontece - "Por que sou assim?" Mudança no discurso que já revela uma
implicação do sujeito em suas próprias questões, ainda que sejam as
mesmas dirigidas ao analista.
Instituído como sujeito suposto saber, o analista sabe que não tem o
saber que lhe é demandado. Cabe-lhe então pontuar as perguntas que lhe
são dirigidas, devolvendo-as ao próprio sujeito, de tal forma que este
possa nelas vir a se reconhecer. É o que acontece aqui: "Que é que vão
achar que eu estou querendo?" "Pois é, o que é que você está
querendo?"
Assim se instaura a transferência e se inicia uma análise - um
percurso que não é nunca sem tropeços e que, no manejo da
transferência, convoca a cada momento o desejo do analista a forçar o
caminho para frente.
Diz a analista: "Um dia ela fez uma coisa que me deixou preocupada".
Relata então que a paciente - uma pessoa pobre, que vive de pensão,
faz ainda umas faxinas e mora com a filha - meio que se deixou roubar,
entregando a alguém um dinheiro que era a sua poupança. Foi um momento
difícil, de um certo desespero da paciente: "Era a poupança da minha
vida inteira! Eu nem contei para a minha filha". E a analista,
sustentando-a: "Não desista, continue fazendo suas coisas". E assim a
análise também continuou.
Até que um dia (diz a analista), na saída, já na porta, ela disse:
'Mas era o dinheiro do meu enterro!' E eu falei: 'Era o dinheiro do
seu enterro! Mas que ótimo, então você se livrou do dinheiro do seu
enterro!'
Foi então que entendi o que acontecera. E ela disse: 'Minha filha não
pode saber que era o dinheiro do meu enterro'. 'Como é que vai ficar a
minha filha?' E eu falei: 'Mas aí é um problema dela'. O dinheiro para
o enterro estava guardado porque, dizia ela, 'Eu não quero dar
trabalho a minha filha' - e também - 'Estou já me preparando para
morrer'.
Hoje em dia ela ri disso. Está cheia de mazelas, tem um problema na
perna, mas não desiste da vida, do desejo. Indiquei-lhe uns programas
para a terceira idade e agora ela vai, está curtindo: faz ginástica,
passeios, fez amigos, vai a lugares a que antes nunca fora. Mas
reclama: 'Por que só levam a gente a museus?' E diz: 'Eu reclamo, mas
adoro!' Outro dia chegou e disse: 'Estou com um tremor' - e, rindo,
acrescentou: 'Acho que a morte já está me avisando...' E eu caí na
gargalhada. Esta paciente, com toda certeza, está em análise.
Trata-se de fragmentos de uma análise que revelam como, no manejo da
transferência, o desejo do analista se contrapõe ao gozo paralisante,
mortífero, apontando ao sujeito o caminho do desejo.
É por isso que a paciente pôde, aos poucos, sair da posição em que, na
sua miséria neurótica, paralisada na velhice do gozo (e não dos
setenta anos), repetia suas queixas e se preparava para a morte. Ao
livrar-se do dinheiro do enterro e voltar-se para a vida, era o
caminho do desejo que, mesmo sem saber, já trilhava. Assim, pode agora
curtir os programas da terceira idade e divertir-se, sem precisar
pagar em dinheiro. Apesar de suas mazelas, ao invés de esperar pela
morte, já pode até fazer algum humor sobre ela e rir-se de suas
próprias reclamações.
Porque o inconsciente não tem idade, é o relato de fragmentos de uma
análise com criança, feito pela mesma entrevistada, que agora
apresentamos:
Foi um menino que atendi há muito tempo. Desde o início, ele queria
muito (o tratamento). Então, quando vinha com os pais, meio que dava
aula a eles, através dos desenhos que fazia. Era muito grudado na mãe
e dormia com os pais. Uma vez, bem no princípio, fez um desenho em que
jorrava água de algum lugar. Então ele dizia: 'Olha, a água está
caindo' - e colocou uma barreira.
Este menino fez um percurso muito interessante e a mãe também. Ela
teve que agüentar (a separação) porque ele foi colocando uma barreira.
Houve um momento em que ela falou: 'Ele está ótimo, mas agora não dá
mais aquela atenção que dava pra gente'.
Ele continuava, era um menino sequioso por fazer análise, sempre com
histórias. Dava para trabalhar muito bem com ele. Primeiro foram os
desenhos, depois apareceu a questão do futebol. Ele batia muito nos
outros. Apareceu então o tema do Edmundo (jogador de futebol) e ele
acabou falando que o Edmundo era bobo porque os outros provocavam e
ele ia lá e batia mesmo. Então você vê a transferência, vê isso com a
criança. Com este menino era assim: os temas foram mudando, até que
apareceu o Edmundo, o bad boy, com que ele ia se identificando, e isso
foi mudando. Você vê a transferência estabelecida.
Fiquei muito tempo com esse menino, já estava bem e nada de ir embora.
Aí comecei a falar disso e ele disse: 'Mas eu já estou acostumado'. No
princípio foi meio difícil até que acabamos encerrando.
Se apresentamos aqui fragmentos de uma análise com criança, está
implícito que, da mesma forma que com um adolescente ou um adulto, o
que está em jogo é o trabalho do inconsciente, que pressupõe a
transferência como única possibilidade de que uma análise aconteça.
Desde Freud e com Lacan sabemos que é pela entrada na ordem simbólica
da linguagem que nos constituímos como humanos, seres falantes e,
portanto, sujeitos do inconsciente.
Na psicanálise com crianças não é outro o sujeito que está em análise.
Trata-se, aqui também, do sujeito do inconsciente, dividido e
sintomático na medida em que fala (...). Há, no entanto, diferenças em
relação à análise com adultos e, portanto, no que diz respeito à
transferência. Um adulto, de uma forma ou de outra, busca análise. Uma
criança é levada à análise - a demanda inicial vem dos pais (...). É
esta demanda que faz com que nos tragam o filho. Isso vai supor também
a questão da transferência dos pais (Fernández, 1992:17-19).
Sem nos determos nestas peculiaridades, diremos apenas que a demanda e
a transferência dos pais são diferentes daquelas que se instauram no
dispositivo analítico mesmo. Se, no entanto, não se estabelece esta
"transferência" dos pais em relação ao analista a quem levam o filho,
não haverá possibilidade de que a análise com a criança aconteça.
No fragmento relatado, se a mãe pôde "agüentar" a barreira que o filho
lhe foi colocando - o que já era um efeito da própria transferência
analítica -, isto aconteceu porque confiava na analista e supunha-lhe
um saber para tratar do filho. E é mais ou menos isso que podemos
chamar de "transferência", no que se refere aos pais.
Quanto ao menino, se pôde ir se separando dos pais, sobretudo da mãe,
foi porque, na transferência, a analista, no lugar do Outro,
constituiu-se em suporte da lei da interdição. Por isso, o menino não
era mais o pintinho que em um dos desenhos aparecia no buraco
(barriga) da galinha (mãe). Passou então a ser o Edmundo ou o bad boy
que brigava e batia nos outros, mas pôde se dar conta, na
transferência, que agindo assim acabava ficando como bobo; e foi
mudando. Por isso a analista disse na entrevista: "Você vê a
transferência estabelecida".
No que se refere ao término deste tempo da análise com uma criança,
parece-nos que foi também a escuta da analista que o determinou. O
menino resistia a ir-se porque "já estava acostumado", ou seja, ainda
estava em transferência. No entanto, não se continua uma análise
porque se está acostumado - e estes significantes a analista escutou,
precipitando, sem pressa, o momento de concluir. Ainda que tenha sido
"meio difícil'", talvez não houvesse mesmo o que esperar mais naquele
momento; era então preciso trabalhar a separação, agora também da
analista. Certamente houve um tempo até que isso terminasse.
Quanto ao término de análise, também há diferenças fundamentais no que
diz respeito a análises com adultos e com crianças. Trata-se, no
entanto, de um tema bastante árduo e difícil, cuja discussão não cabe
no âmbito deste trabalho. Digamos apenas que se tratou aqui de um
percurso possível de análise com uma criança.
Sobre os fragmentos de análises apresentados, assinalamos que os
mesmos relatos poderiam ter sido feitos a respeito de análises
conduzidas em consultórios privados. Se os pacientes ficam em
tratamento psicanalítico em um Centro de Saúde, as vicissitudes com
que o analista se defronta no manejo da transferência não são maiores
ou diferentes daquelas que enfrentaria no consultório. E isso não
significa que o ambulatório seja um simulacro do consultório. Mais uma
vez reafirmamos com A.C. Figueiredo que se trata, isto sim, do
"próprio consultório tornado público", sem qualquer tendenciosidade.
Percebendo os resultados clínicos da própria prática
A esse respeito, ouvimos depoimentos e relatos que, em sua maioria,
apontam para as diferenças e mudanças de posição subjetiva percebidas.
Diz-nos uma das entrevistadas: "Há uma mudança do lugar em que a
pessoa se coloca na vida". E relata o seguinte exemplo:
Tive uma paciente de quarenta e três anos que vinha com essa tal crise
de pânico. Ficou comigo um ano mais ou menos. Não trabalhava, não saía
de casa e o marido mandava nela. Começou vindo uma vez por semana até
que pediu para vir duas vezes. Ela fez um percurso muito interessante
e que não foi fácil. Quando iniciou o tratamento, era uma pessoa
extremamente dependente, que não dava um passo sem pedir ao marido.
Quando saiu, já estava trabalhando e já ocupava um outro lugar na
própria vida, pois antes vivia apenas para os filhos e o marido. Ela
me dizia sempre: 'Eu não quero ser a Maria esposa do José, eu quero
ser a Maria da Conceição'. E ela saiu dizendo assim: 'Olha, eu sou a
Maria da Conceição, eu tenho a minha vida e eu acho que já posso
parar'.
Esta foi uma das pessoas que, quando decidiram parar, eu concordei.
Ela já tinha feito um percurso que considerava suficiente. Eu tenho
visto isso acontecer aqui com várias pessoas: não ficaram
cronologicamente muito tempo, mas conseguiram de fato uma mudança. É
claro que há pessoas que vieram e, quando começaram a ver que a coisa
aqui era um pouco diferente, sumiram e não voltaram mais. Mas se fosse
colocar em números, acho que atendi mais pacientes que tiveram alguma
mudança do que aqueles que desistiram. Penso que a psicanálise deixa
marca.
A marca certamente é a do desejo que implica em uma mudança de posição
do sujeito. Enquanto "Maria esposa do José", no gozo de sua miséria
neurótica, a paciente "não dava um passo" sozinha. Foi desta situação
que a deixava em pânico, paralisada nas mãos de um Outro a quem se
oferecia como objeto, que deu seus passos para sair.
Ao dizer não ao gozo de ser a Maria do José, como Maria da Conceição
pôde começar a conceber-se como sujeito do próprio desejo.
Trabalhando, saindo de casa e não vivendo mais apenas para o marido e
os filhos, certamente também provocou mudanças no universo familiar.
Talvez tenha sido apenas o início do caminho, mas um início nada fácil
e que, para ela, pelo menos naquele momento, foi o bastante. À
analista só cabia mesmo concordar, na medida em que, ao fazê-lo, dava
passagem ao desejo...
Diz a entrevistada: "Eu acho que isso é psicanálise. Esta paciente
teve um tempo dela, o tempo de que precisava".
Tempo do inconsciente, lógico e não cronológico, particular a cada
sujeito. Tempo que Lacan soube precisar, estabelecendo o seu estatuto
teórico. Assim, aqueles que precisam de análise e não têm os meios
convencionais, podem ser escutados durante o tempo de que precisam -
por exemplo, em um Centro de Saúde -, pagando o preço da espera na
fila, do deslocamento, do seu desejo, enfim.
Pensamos que esta é a medida do possível da psicanálise e que é assim
que se faz psicanálise à medida do possível. Por isso, esta analista
pôde dizer: "Acho que atendi mais pacientes que tiveram alguma mudança
do que aqueles que desistiram".
Também sobre os resultados clínicos da prática da psicanálise em um
Centro de Saúde, diz-nos a outra psicanalista: "São vários os que
percebo. Quando são crianças, às vezes elas próprias ou as mães dizem
das diferenças".
Por exemplo, sobre o menino que começou como um pintinho na barriga da
galinha, a mãe informou: "Ele está ótimo, mas agora não dá mais aquela
atenção que dava pra gente". Falava assim de uma mudança de posição do
sujeito, de uma separação necessária que lhe permitiu voltar-se para o
mundo externo, mesmo que, a princípio, como um bad boy.
Relata-nos então sobre uma outra paciente:
Ela fala muito de uma mudança, mudança de posição, porque a vida dela
não mudou.
Era empregada de um homem solteiro e teve uma filha dele. Foi embora
grávida, mas voltou depois a morar com ele, continuando como
empregada. Você olha e a situação objetiva continua sendo exatamente a
mesma; inclusive porque ele tem uma irmã de quem depende muito e que
implica bastante com ela. Voltou porque queria que a filha tivesse um
pai porque, como dizia, o pai dela, ela perdeu, etc.. Mas a situação
mudou. Antes se submetia a tudo e se queixava sempre (do pai da
filha): 'Ele me trata assim, ele me tratou assado', etc. Mas foi
mudando inteiramente de posição, na mesma situação concreta de vida.
Começou a fazer salgadinhos para fora, para ter um dinheiro dela,
porque lá não ganha nada. E agora ele já não a trata da mesma maneira
porque ela mudou de posição mesmo.
Ela é muito boa de trabalhar, é uma pessoa trabalhadora. Fala muito da
questão do pai. Procurou-o, foi visitá-lo e não adiantou nada - e ela
se dá conta disso. É uma paciente em trabalho analítico (agora está
trabalhando as suas questões relativas ao próprio pai).
É também de uma mudança de posição subjetiva que se trata aqui. À
diferença do que aconteceu com ela, para que a filha tivesse um pai
próximo, a paciente "se submetia a tudo". Mas o trabalho analítico foi
produzindo efeitos e, porque era trabalhadora - na análise e na vida
- , pôde sair da posição de gozo em que se colocava, queixando-se mas
permanecendo submetida a um Outro que a tratava mal. Ao encontrar
meios de, por pouco que fosse, produzir alguma coisa para si própria,
pôde também colocar uma certa barreira ao gozo desse Outro: "Agora ele
já não a trata da mesma maneira porque ela mudou de posição mesmo". No
entanto, se ainda fala muito em mudança, talvez seja porque já começa
a se dar conta de que precisa mudar a "situação concreta" de sua vida.
Quem sabe, percebendo primeiro que não é por continuar como empregada
deste homem, que sua filha terá um pai mais próximo que aquele que ela
mesma tem. E é sobre as questões com o pai que agora está falando em
análise. O desejo continua a caminhar...
Se apresentamos apenas estes, no entanto foram vários os relatos que
ouvimos, marcando que os resultados clínicos da prática psicanalítica
implicam em diferenças e mudanças quanto à posição do sujeito. Se a
práxis da psicanálise não é a "prática de resultados", tão em moda
hoje em dia, nem por isso deixa de ser uma prática que tem seus
resultados, inclusive em instituições públicas de saúde... Por isso,
escutamos a convicção com que os entrevistados afirmam o possível da
prática da psicanálise em Centros de Saúde.
Uma prática possível e os efeitos recolhidos
Apresentamos a seguir um pouco do que nos foi dito a esse respeito:
Eu diria que é extremamente possível porque você pode até não ter uma
série de condições, mas você está diante de um sujeito que se põe a
falar - e é com isso que uma análise pode ser feita. Qualquer outra
condição pode até facilitar, mas o fundamental é uma pessoa que se põe
a falar. É um trabalho assim que marca a diferença - porque você está
em uma instituição médica, com uma cultura médica, em que é o médico
que tem o saber. Então o paciente não fala, ele ouve aquilo que o
médico tem a dizer.
A princípio, quando batiam na minha porta, era isso o que esperavam
porque ninguém sabia o que eu fazia lá. Agora, a maioria das pessoas
que chegam até mim já vem me procurando. O fato de não ficarem só
ouvindo o que o médico ou mesmo o psicólogo tem a dizer já está
marcando uma diferença aqui no Centro - marca de uma diferença do meu
trabalho.
A mesma psicanalista que antes afirmara que a "psicanálise deixa
marca", referindo-se àqueles que se submetem a um tratamento
psicanalítico, fala agora da marca da diferença do seu trabalho.
Diferença que marca a própria psicanálise, implicando, desde o início,
um analista com o desejo posto em ato para escutar cada um daqueles
que, ali, se põe a falar. Pensamos que o mesmo diz um outro
psicanalista ao propor: "Vamos escutar as pessoas".
Voltando à analista anterior, diz ela que, em relação aos pacientes, o
efeito mais marcante que percebe é mesmo a mudança de posição na vida,
"quando a pessoa começa a se responsabilizar pela sua própria vida".
Mudança, portanto, de posição subjetiva que vem confirmar a palavra de
Lacan, ao dizer em seu escrito A ciência e a verdade: "Por nossa
posição de sujeito, sempre somos responsáveis" (Lacan, 1998:873). E
acrescenta a entrevistada:
Acho que este processo, que acaba ocorrendo dentro de uma sala
fechada, onde ninguém sabe o que estou fazendo, já tem efeitos fora
dessa sala, já marca uma diferença pelo que as pessoas vão ouvindo dos
próprios pacientes (refere-se aqui tanto aos que buscam tratamento
quanto aos próprios funcionários do Centro).
Ainda uma vez, citamos A. C. Figueiredo: "(...) o psicanalista tem que
fazer diferença sem cair no logro de bancar o diferente" (Figueiredo,
1997:57). A diferença, pensamos, diz respeito a sua escuta e à posta
(que é aposta) em ato do desejo em cada caso. Neste sentido, ao
afirmar que considera a prática da psicanálise "perfeitamente
possível" em Centros de Saúde, diz outra psicanalista:
Uma vez, quando uma estagiária falou: 'Eu acho que essa paciente não
tem demanda de análise'; eu respondi: 'Só vai ter se nós tentarmos;
então vamos primeiro apostar nisso'. E a paciente que parecia não ter
(demanda de análise) acabou engrenando direitinho. Eu acho sempre que
o que mais funciona para tentar que alguma coisa mude, que a pessoa
mude, é escutar e apostar.
Aposta que é outra forma de falar do desejo do analista avisado para
ir ao encontro do desejo inconsciente, na medida em que este emerge da
sua escuta.
Falando a respeito dos efeitos que recolhe do exercício de sua
prática, esta mesma psicanalista também considera que tais efeitos
dizem respeito sobretudo a mudanças de posição subjetiva. Refere-se
então a duas pacientes sobre quem já relatara fragmentos de seus
respectivos percursos em análise:
Se você pensa naquela que teve uma filha com o patrão, sua situação de
vida não mudou, mas ela mudou de posição diante da vida. A outra, de
setenta anos, continua ganhando a pensão, morando com a filha e o
genro que ela odeia - só que agora ela sai de casa! Está conhecendo o
Rio de Janeiro, foi ao Corcovado onde nunca tinha ido em cinqüenta
anos vivendo aqui e pode até dizer: 'De velha, não tenho mais nada'.
Certamente o que esta paciente já não tem são as velhas queixas com
que expressava a sua paralisia no gozo, apenas esperando e preparando
a própria morte. Ao seguir o caminho do desejo, apesar dos setenta
anos, vai em busca do novo e pode até prestar atenção em um cartaz que
anuncia: "Aulas de dança de salão para a Terceira Idade".
Um outro psicanalista nos diz pensar que os efeitos recolhidos do
exercício de sua prática em um Centro de Saúde são apenas
terapêuticos. No entanto, ao relatar que uma paciente, após uma
pontuação sua, disse: "Mas que coisa esquisita eu falei!", ele mesmo
acrescenta: "De alguma forma ela foi tocada". Foi tocada, pensamos
nós, em sua posição de sujeito, e isto não deixa de ser um efeito
recolhido por este psicanalista de sua prática - um efeito que não é,
portanto, apenas terapêutico.
3.3 Conclusão
Através da palavra dos três psicanalistas entrevistados, acreditamos
ter sido possível dar a conhecer os fatores que possibilitam e os que
se constituem em dificuldades ao exercício de sua práxis nos
respectivos Centros de Saúde em que a exercem. Seus relatos nos deixam
perceber que, se o analista está a postos com seu desejo para escutar
cada um daqueles que o procuram, as vicissitudes com que se defronta
não impedem que sua prática se efetive de acordo com "os ingredientes
mais eficazes e importantes" (Freud, 1918:163) da psicanálise.
Por isso, através dos fragmentos de análises relatados, pudemos
constatar como, a partir da instauração da transferência, o
inconsciente se manifesta onde o discurso da consciência tropeça e
falha, possibilitando a emergência do desejo, sempre impulsionado pela
força constante da pulsão. Assim, ainda que de forma disfarçada, uma
paciente começa a dizer alguma coisa do seu desejo justamente ao
cometer um ato falho: "... e aí eu fiquei com a grinalda na cabeça". É
também porque o inconsciente trabalha e o desejo caminha que uma outra
diz, com firmeza: "Eu não quero ser a Maria esposa de José, eu quero
ser a Maria da Conceição". E porque, no manejo da transferência, o
desejo do analista foi ao encontro do desejo inconsciente, uma
paciente de setenta anos pode sair da repetição de suas queixas, que a
paralisava na velhice do gozo, e começar a divertir-se em programas
para a terceira idade.
Para que haja análise, é necessário que se constitua o campo da
transferência, com a instauração do sujeito suposto saber; para que
uma análise termine, será necessária a destituição deste mesmo sujeito
suposto saber, com o que se desfaz o campo da transferência. Como já
dissemos, não vamos abordar a teorização relativa a este tema por não
caber no âmbito da nossa dissertação. Afirmamos, porém, que é também o
desejo do analista que, de certa forma, empurra o sujeito a este ponto
de separação. Podendo já se responsabilizar por sua posição de
sujeito, o analisando promove mudanças em si e pode até agir de forma
transformadora sobre o mundo que o cerca; por não precisar mais do
analista, lhe é então possível deixá-lo.
Se o problema com que se defronta agora uma das psicanalistas
entrevistadas refere-se ao que fazer com a transferência quando,
depois de anos de tratamento, "não há jeito" de o paciente ir embora,
no entanto ela mesma aponta a solução, ao relatar um fragmento de
análise com uma criança. Operando com o desejo do analista, escuta
quando o paciente diz que "já estava acostumado..." A analista
precipita, então, sem pressa, o momento de concluir, ou seja, a
dissolução do campo da transferência. E é isto que marca o término de
uma psicanálise, onde quer que sua práxis se efetive.
A pesquisa aqui realizada nos autoriza a afirmar que, se "a
psicanálise se faz à medida do possível" nos Centros de Saúde, esta
medida não é diferente daquela que vigora também nos consultórios
privados - o que não significa que o ambulatório seja um simulacro do
consultório. Na psicanálise, a única medida de que se trata é sempre a
do inconsciente, cuja dimensão de falta traz em si a possibilidade do
desejo, particular a cada sujeito.
Precisar a medida da prática da psicanálise, onde quer que ela se faça
presente, é então da ordem do impossível. No entanto, podemos afirmar
que se trata de uma práxis que possibilita àqueles que a ela se
submetem sair da miséria neurótica para assumir a responsabilidade por
uma nova posição como sujeitos do próprio desejo. É assim que "a
psicanálise se faz [sempre] à medida do possível". Por que
então dizer não à sua presença em instituições públicas de saúde, se a
própria Saúde Pública pode dizer sim, ainda que de forma paradoxal,
como pudemos constatar? É o que discutimos a seguir.
CAPÍTULO IV
UM NÃO À PSICANÁLISE: DO PARADOXO À ALIENAÇÃO SOBRE A FUNÇÃO DO
SUJEITO
"A psicanálise não é uma Weltanschauung nem uma filosofia que pretende
dar a chave do universo. Ela é comandada por uma visada particular que
é historicamente definida pela elaboração da noção de sujeito. Ela
coloca esta noção de maneira nova (...)"
(Lacan, 1964)
Que a Saúde Pública pode dizer sim à psicanálise é o que constatamos
pela presença efetiva desta última em instituições da rede pública de
saúde. Se assim não fosse, a realização de nossa pesquisa teria sido
impossível. No entanto, se o extenso capítulo anterior mostra como se
dá a presença da psicanálise em três Centros de Saúde, é justamente
porque a Saúde Pública pôde acolhê-la, ainda que de maneira informal.
Possibilitando sua viabilização através da chamada Saúde Mental, o
que, na prática, se concretiza de forma um tanto alternativa e
paradoxal, a Saúde Pública não impede que o exercício da práxis
psicanalítica se efetive de acordo com seus pressupostos teóricos
fundamentais.
Supomos que isto se relaciona ao fato de que a Saúde Pública
considera, através de vários de seus pensadores, que não seria
possível "assegurar as condições necessárias à manutenção e reprodução
da vida humana saudável" (Sabroza, 1994), concebendo saúde e doença
como um fenômeno puramente biomédico. É o que se depreende da leitura
de Carvalho (1996), de Minayo (1997) e de Cordeiro (1997), dentre
outros. Além disso, tais autores levam em consideração o sujeito em
sua singularidade e não apenas o coletivo - ainda que sua conceituação
de sujeito não seja, obviamente, a mesma que a da psicanálise. Deixam
claro também que não pensam o corpo apenas como biológico. O mesmo
acontece com a psicanálise, embora para esta o corpo tenha um estatuto
bastante específico.
Aceitando uma inclusão não-toda da psicanálise na Saúde Pública,
verificamos pelo exposto que nada impede a esta última o acolhimento
da práxis psicanalítica em suas instituições. Se obstáculos existem
neste sentido, não podem eles ser creditados à Saúde Pública. Nem
mesmo o fato de saúde mental e psicanálise terem ainda concepções tão
distintas em relação ao psíquico - como ficou amplamente evidenciado
no primeiro capítulo - constitui um impedimento ao exercício da
prática da psicanálise em instituições públicas de saúde. O não à sua
presença nas referidas instituições tem então outras origens. Trata-se
de um não que, freqüentemente enunciado de forma velada, acaba por
revelar tendenciosidades e preconceitos aos quais pensam se contrapor
justamente aqueles que o enunciam.
É sempre em defesa de um melhor e mais adequado atendimento aos
pobres, em renda e escolaridade, que compõem as chamadas camadas
populares ou classes trabalhadoras, que vários ideólogos da saúde
mental se opõem ao exercício da prática psicanalítica em instituições
da rede pública de saúde. Neste sentido, de fato ignoram a palavra de
Freud quando, em 1918, já previa que
mais cedo ou mais tarde, a consciência moral da sociedade despertará e
se lembrará que o pobre não tem menos direito à terapia da mente
quanto os que já tem em matéria de cirurgia básica. E que as neuroses
não constituem menor ameaça à saúde popular que a tuberculose e,
portanto, da mesma maneira que esta, não podem ser deixadas ao cuidado
impotente do indivíduo pertencente às camadas populares (...). Estes
tratamentos serão gratuitos (Freud, 1997:162).
Deixa-nos claro, portanto, que já então considerava como possível e
necessária a presença da psicanálise no campo da saúde pública, com o
rigor que sua práxis comporta, pois afirma também:
Qualquer que seja a forma futura dessa psicoterapia para o povo (...),
não cabe nenhuma dúvida de que seus ingredientes mais eficazes e
importantes seguirão sendo os que ela tome da psicanálise rigorosa,
alheia a toda tendenciosidade (Id.Ibid.:163).
Ao afirmá-lo, está marcando que seria tendencioso considerar que o
pobre, por suas condições econômicas, sociais e culturais, não é
passível de se submeter a um tratamento psicanalítico.
É então interessante constatarmos que, se a Saúde Pública pôde
realizar a previsão de Freud, aqueles que a esta se opõem parecem ter
dificuldades em escutar tanto um lado como o outro, e nisso revelam a
sua tendenciosidade.
Não pensamos, evidentemente, que a psicanálise é a solução com que
podem contar aqueles que buscam um alívio para seu sofrimento psíquico
em unidades públicas de saúde, da mesma maneira que muitas vezes
também não o é nos consultórios privados. No entanto, colocamos em
questão que em defesa do coletivo, de uma população ou de uma classe -
no caso, a trabalhadora -, se negue aos sujeitos que a compõem o
direito de serem escutados na sua singularidade, se for isto o que
alguns deles estão, de fato, buscando. Na medida em que não podem
pagar em dinheiro por este direito, ao não encontrarem nos serviços
públicos de saúde um analista a postos para escutá-los, o que se lhes
está negando é o próprio direito de escolha - e nisto, paradoxalmente,
acaba por se reproduzir a ideologia dominante: que o pobre aceite o
que lhe dão e já é muito bom que encontre alguma coisa que pensamos
como melhor para ele....
Não discordamos in totum de Duarte, L.F. e Ropa, D. quando, ao tecer
suas Considerações teóricas sobre a questão do "atendimento
psicológico" às classes trabalhadoras, afirmam que
o alto índice de reinternação e abandono do tratamento ambulatorial, a
ineficácia das práticas psicoterápicas foram alguns dos fatores que
tiveram por conseqüência alertar pesquisadores e profissionais quanto
a uma provável inadequação do nosso instrumental terapêutico no
atendimento a estas populações (Duarte & Ropa, 1985:178).
Concordamos em que cabe mesmo àqueles que pesquisam e trabalham nas
instituições públicas de saúde estar em constante questionamento sobre
as práticas que nelas se efetuam e os resultados que delas advêm.
Discordamos, no entanto, que se considerem ineficazes "as práticas
psicoterápicas" - onde geralmente incluem a psicanálise -, por serem
poucos os pacientes que permanecem em tratamento. Os que ficam e os
que se vão certamente puderam fazer alguma escolha, justamente porque
foram escutados na sua singularidade e melhor localizaram a sua
demanda. Não vamos discorrer sobre o assunto, pois pensamos que a
palavra dos três psicanalistas entrevistados, apresentada no capítulo
anterior, é muito mais eloqüente do que qualquer coisa que pudéssemos
acrescentar.
Também questionamos a posição dos autores quando escrevem:
Tanto a psicanálise quanto a umbanda, ao proporem uma explicação ou
versão diagnóstica para um estado de sofrimento ou mal-estar, tornam
possível reintegrar esta experiência em sistema, além de proporem
terapêuticas específicas para aliviar o sofrimento do sujeito,
apoiadas na visão de mundo que lhes é própria (Id.Ibid.: 184).
Ora, afirmar que a psicanálise torna possível a reintegração de uma
experiência em sistema, e que ela se apoia na visão de mundo, no
sentido da Weltanschauung filosófica, que lhe é própria, é negar
duplamente a palavra de Freud. Primeiro, porque ele deixa claro que a
psicanálise, à diferença da religião, não pretende formar nenhum
sistema. Afinal, se pôde fundá-la, foi somente a partir da descoberta
de uma incompletude inaugural do sujeito, como já vimos. Depois,
porque Freud é bastante explícito ao opinar, na 35a de suas Nuevas
conferencias de introducción al psicoanálisis, de 1933, que
a psicanálise é incapaz de criar uma visão de mundo particular (...);
ela forma parte da ciência e pode aderir à visão de mundo científica.
Mas esta dificilmente merece este nome grandiloqüente, pois não
abrange tudo, é muito incompleta, não pretende (...) formar um sistema
(Freud, 1997:168).
Ao trecho comentado, os autores acrescentam em seguida:
No entanto toda terapia só é possível se o paciente compartilha da
versão que lhe oferece o 'médico' (ou agente de cura). A eficácia
simbólica de um determinado sistema depende, portanto, (...) do
consenso social criado em torno desta prática (Duarte & Ropa,
1985:184).
Como afirmou, porém, Paulo Becker durante uma de nossas interlocuções,
mencionando Bachelard e Lévy-Strauss dentre outros autores,
a apreensão do real por um instrumental simbólico é vicissitude de que
pode padecer qualquer práxis da ciência. A epistemologia moderna já
inclui a função do código simbólico particular do observador na
produção da verdade científica. Isto não tem nada a ver com a
Weltanschauung filosófica. Portanto, considerando-se que a eficácia
simbólica afeta todo pensamento científico - que não deixa de ser
produto de uma cultura determinada em um determinado tempo -, seria
mais produtivo privilegiá-la como significante do que a categoria
consenso social.
Deixamos a palavra também com L. Nobre quando, ao referir-se ao mesmo
trecho citado, questiona:
Como exigir consenso social de uma prática que se funda no um a um de
cada caso, particularizada pelo estatuto do saber inconsciente em seu
valor de verdade para um sujeito? (Nobre, 1998:143).
A impressão que nos fica é a de que a busca de um consenso em torno do
social acaba por dificultar a escuta das diferenças inerentes ao
discurso particular de cada sujeito. Escuta que obviamente implica o
que Bezerra Jr. aponta no trecho já citado de seu artigo Considerações
sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental, e que voltamos a
transcrever em parte:
É possível que o vocabulário que [o paciente] possui para
designar experiências internas seja efetivamente restrito (...). Com
ouvido atento [o analista] poderá passar da fase de decepção
para a de curiosidade e daí para a de pesquisa séria em busca do
código específico de descrição dos estados subjetivos utilizado pelo
paciente e aí encontrar terreno fértil (Bezerra Jr., 2000:159-160).
Sem dúvida, este autor privilegia aqui a escuta do discurso singular
de um sujeito, deixando-nos perceber que considera que, se o analista
opera com seu desejo, este desejo o impulsionará a trabalhar
(pesquisar seriamente) para melhor poder escutar o paciente.
Em posição bem diversa, diríamos quase oposta, colocam-se os autores a
que estamos nos referindo, quando afirmam:
A apreensão dessa diferença dos códigos lingüísticos é mais um
elemento que aponta para o fato de que a dificuldade, ou mesmo o
fracasso, da relação psicoterápica nesses casos não está
necessariamente ligada nem à incompetência do terapeuta, nem à
incapacidade inata da clientela, mas sim aos limites sociais e
culturais de tal modalidade terapêutica (Duarte & Ropa, 1985:188).
Além de não levarem em conta a possibilidade de escuta, por parte do
analista, do discurso singular de cada sujeito, tal como Bezerra Jr. a
considera, estes autores parecem passar ao largo de alguns conceitos
fundamentais da psicanálise, tais como inconsciente e transferência.
Mais grave que isto talvez é o fato de, paradoxalmente, acabarem por
revelar certa tendenciosidade em relação, justamente, àqueles que
defendem. Tendenciosidade que se evidencia na consideração de que os
pobres não podem se submeter a um tratamento psicanalítico devido a
limites sociais e culturais que os deixariam, então, como sujeitos não
passíveis do inconsciente.
Ao longo desta dissertação, apontamos para a relação sempre paradoxal
entre saúde mental e psicanálise; estamos marcando agora como alguns
pensadores sérios expressam, eles mesmos, esta contradição. Por
exemplo, se B. Bezerra Jr. deixou clara a importância que atribui à
escuta das particularidades do discurso de um sujeito pertencente às
camadas populares, revelando assim uma posição de analista, no mesmo
artigo escreve também:
Para a maioria dos membros das classes trabalhadoras o futuro é
amanhã, o essencial é continuar vivo, e o leque de opções à sua
disposição é extremamente reduzido. Não surpreende, pois, que
eventualmente encarem o tratamento de maneira bem menos ambiciosa e
muito mais imediatista do que o terapeuta (Bezerra Jr., 2000:158).
Ora, justamente porque o seu leque de opções já é tão reduzido, se
tiverem o direito de escolher serem escutados individualmente nas suas
questões de sujeito, durante o tempo de que precisarem, não será esta
uma forma de ampliarem o referido leque? Aliás, foi o que ficou
evidenciado em alguns dos fragmentos de entrevistas que apresentamos,
e não temos dúvida de que Bezerra Jr. concordaria com isso. Surpreende-
nos, no entanto, que o autor atribua ao fato de serem membros das
classes trabalhadoras, com todas as premências de vida que isto
implica, a expectativa muito mais imediatista que têm estes pacientes
em relação ao tratamento. Pensamos, ao contrário, que os pobres no
Brasil têm muita paciência!... Além disso, esperar que o tratamento
seja rápido, com resultados imediatos, não nos parece ser
característica apenas de uma classe - o mesmo pode ser escutado também
nos consultórios privados. Neste sentido, fazemos nossa a interrogação
de L. Nobre:
Não seria mais conveniente atribuir a pressa em concluir o tratamento
à própria configuração da estrutura neurótica do paciente que às
diferenças de classe sócio-econômica existentes entre este e o
terapeuta? (Nobre, 1998:141-142).
Em continuação ao trecho citado, diz ainda o mesmo autor:
Nem sempre a interrupção precoce do tratamento por parte do paciente
implica desistência ou abandono. Ela pode significar que as
expectativas do cliente já tenham sido satisfeitas pelo menos até
aquele momento. A idéia de que a terapia deve ser profunda e longa o
suficiente para remodelar o funcionamento psicológico de modo a
conseguir um certo efeito (...) preventivo (...) não corresponde
sempre à representação que têm os pacientes acerca de uma terapia bem
sucedida. (...). Esta é uma questão de importância já que pode estar
em jogo um certo modelo - culturalmente moldado - de percepção do
papel das instituições de saúde e do recurso a elas (Bezerra Jr.,
2000:158).
Concordamos em que "a interrupção precoce do tratamento por parte do
paciente nem sempre implica desistência ou abandono". Como deixaram
claro os psicanalistas entrevistados, freqüentemente isto se deve aos
encaminhamentos inadequados feitos por outros profissionais da saúde,
sobretudo médicos - o que geralmente acontece devido às dificuldades
dos mesmos em escutar os pacientes. Dificuldades que não deixam de ter
relação também com a sua própria formação médica - a este ponto nos
referiremos mais adiante.
Quanto às demais considerações tecidas pelo autor neste trecho,
pensamos que elas abordam pontos fundamentais que tocam de perto a
formação e conseqüente posição do analista. Embora faça uso de
expressões que nada têm a ver com a psicanálise, tais como
"funcionamento psicológico", "cliente" e "modelo culturalmente
moldado", o certo é que o autor está novamente nos remetendo à questão
crucial da escuta do discurso de um sujeito.
Não cabe ao psicanalista impor modelos, até porque a psicanálise não
os tem, na medida em que sua práxis "se funda no um a um de cada caso,
particularizada pelo estatuto do saber inconsciente" (Nobre,
1998:143), singular a cada sujeito.
Se as expectativas do paciente já foram satisfeitas pelo menos até um
certo momento, foi porque, para satisfazê-las, sem dúvida ele teve o
tempo de que precisava: pôde, na transferência articulada ao desejo do
analista, fazer alguma mudança de posição subjetiva que já lhe permite
viver melhor, mais conforme com o seu desejo. E é isto que deve
interessar ao psicanalista, não estando aí implicado nenhum
imediatismo, seja de sua parte ou de parte do paciente.
Outro ponto da maior importância que o autor não deixa de colocar em
pauta é a idealização da própria psicanálise, de que muitos analistas
não estão isentos. Mesmo que não pensem em termos de "remodelação do
funcionamento psicológico de modo a conseguir um certo efeito
preventivo" com o tratamento, não é raro encontrarmos psicanalistas
cujo ideal do que seja uma psicanálise e seu término acabaria por
inviabilizar a presença da mesma em instituições públicas de saúde -
ou, no mínimo, por estabelecer um limite entre dois "tipos" de
psicanálise: a "privada", para os que podem pagar em dinheiro, e a "de
pobre ou pública" para os que não podem, mas a quem a psicanálise deve
fazer algum bem...
Este idealismo põe em causa a própria posição do analista. Como lembra
Neusa S. Souza em seu artigo Ética e clínica psicanalítica,
Lacan foi incisivo em suas criticas aos ideais. É que os ideais
invadem a experiência analítica, comprometendo-a com um humanitarismo
piegas e degradando-a numa pastoral - a pastoral analítica, assim
Lacan a batizou - pastoral esta centrada no ideal de querer-o-bem-do-
sujeito.
Querer o bem do sujeito sob a forma da pretensão de curar, é assim que
a ordem dos ideais se atualiza na prática analítica (Santos Souza,
1996:173).
Trata-se, neste caso, do analista que não pagou o preço do acesso à
posição que pretende ocupar: "a necessária perda narcísica [de
seus ideais] que se impõe ao analista na condução de um
tratamento" (Nobre, 1998:140). E, ao não pagá-lo, faltou ao seu dever
ético que não é o de fazer o bem, mas o de causar o desejo, de tal
forma que, com o tratamento analítico, o sujeito possa fazer alguma
mudança de posição que lhe permita viver melhor. Este é o bem proposto
pela psicanálise - um bem paradoxal, relançado como possibilidade após
a passagem necessária pela perda, sem relação, portanto, com um Bem
ideal alcançável e completo. Neste sentido, "viver melhor" é uma
direção e não um ideal.
Um analista assim certamente pagou muito dinheiro por sua análise,
durante um longo tempo, mas pode muito bem ter continuado na antiga
miséria neurótica... Afinal, neurose e dinheiro não são da mesma
ordem, a menos que o tomemos dentro do contexto da própria neurose. É
neste sentido que o pobre pode ser mais "rico" que aquele que, tendo
dinheiro, permanece na miséria da neurose por não pagar, com a perda
de gozo, inclusive dos ideais, o preço do acesso ao desejo.
Em situação bem diferente está uma analista que, trabalhando em um
Centro de Saúde, pode dizer: "Esta paciente teve o tempo dela, o tempo
de que precisava". Um tempo que cronologicamente não foi nada longo,
mas que foi suficiente para que fizesse alguma mudança de posição
subjetiva. Por isso, a analista diz sem idealizações: "Eu acho que
isto é psicanálise". Sua posição de analista está assim bem de acordo
com a palavra de Lacan quando, em suas Conférences et entretiens dans
des universités nord-américaines, de 1975, declara: "Uma análise não
deve ser levada muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz
em viver, é o bastante" (Lacan, 1976:15).
Quando pensamos que Lacan faz esta declaração já nos últimos anos de
seu ensino e depois de tanta elaboração sobre a difícil questão do
final de análise, só nos ocorre tomá-la como uma advertência aos
analistas quanto às idealizações sobre o tempo de duração de uma
análise e seu término.
Perguntamo-nos se não são justamente as idealizações em torno da
psicanálise que dificultam a presença da (mal) denominada psicanálise
freudiana ortodoxa no campo da Saúde Pública. Em nome de seus próprios
ideais, aqueles que, revelando até um certo saudosismo, talvez ainda
se considerem os únicos fiéis seguidores de Freud, acabam por se pôr à
margem do que este, desde 1918, já previra.
Colocar, como premissas para uma análise, a necessidade do setting com
seus divãs e poltronas, o número de sessões semanais, o tempo fixo de
duração das mesmas, o pagamento em dinheiro e uma longa duração é, de
fato, inviabilizar o exercício da prática psicanalítica em
instituições públicas de saúde. Como disse uma das psicanalistas
entrevistadas:
Essa história do setting, de ser um mesmo material para todas as
crianças, de ser na sala que for, não tem a menor importância. Você
chega aqui e caem por terra várias destas coisas.
Na verdade, como comentamos então, caem por terra os ideais de que a
psicanálise necessita uma boa forma para o exercício de sua práxis.
Impor-lhe uma tal "assepsia" é dar prevalência justamente à forma, em
detrimento talvez dos "ingredientes mais eficazes e
importantes" (Freud, 1997:163) da psicanálise. Justifica-se, pois, a
afirmação de Jurandir F. Costa:
A fantasia de alguns, e não a teoria psicanalítica, é que precisa de
estufas e dispositivos especiais de proteção contra o mundo de fora
(...). A psicanálise (...) é um produto da cultura humana, ao qual
todos têm direito a ter acesso (...). Trancafiar Freud em galerias
privadas, exclusivas de uns poucos happy few, é dar mostras de uma
timidez intelectual injustificada ou de um espírito iniciático e
sectário, avesso ao livre debate de idéias (Freire Costa, 1989:6-7).
No entanto, parece-nos paradoxal que um autor que se coloca de forma
tão contundente contra a idealização da psicanálise, e sua conseqüente
exclusão dos serviços públicos de saúde, exponha no mesmo texto -
Psicanálise e contexto cultural - posições que, de certa forma,
contradizem a afirmação acima.
Ao se propor, através do estudo do ego-imaginário, a "dar conta da
relação entre sujeito e cultura sem tirar o pé da
psicanálise" (Id.Ibid.:2), o autor conclui que "a psicoterapia de
grupo era o instrumento mais adequado para responder à
demanda" (Id.Ibid.:13) de pacientes cuja "sintomatologia clínica
driblava a nosografia tradicional: a doença dos nervos" (Id.Ibid.:17).
Temos aí um paradoxo: como não tirar o pé da psicanálise ao propor a
psicoterapia de grupo para determinados pacientes, quando o próprio
autor afirma - e com razão:
Não existem fundamentos consistentes para se falar de uma teoria
psicanalítica da cultura e da sociedade, e ainda menos de teoria de
grupo. Mostramos (...) que cada afirmação de Freud sobre o sócio-
cultural trará sua preocupação metapsicológica com o individual. O que
não significa que ele subestime ou despreze o valor do social (o grifo
é nosso) (Id.Ibid.: 3-4).
De fato, desde o início com suas primeiras histéricas, a preocupação
de Freud foi sempre com a particularidade discursiva de cada paciente,
buscando escutar, nas falhas do discurso consciente, a emergência do
sujeito do inconsciente. Se é isso que, de certa maneira, o autor
reconhece, por que forçar então o "pé da psicanálise" na psicoterapia
de grupo?
Não estamos negando a importância e mesmo a necessidade da presença
desta última nos serviços públicos de saúde. Concordamos em que há
pacientes que podem se beneficiar muito com um atendimento em grupo
que, justamente, abdica dos pressupostos fundamentais da psicanálise,
substituindo a dinâmica da transferência pela dinâmica de grupo.
Queremos apenas apontar a posição contraditória deste pensador, que
acaba por revelar uma certa idealização da psicanálise, na medida em
que demonstra tanta necessidade de incluí-la em uma modalidade de
tratamento que ele mesmo reconhece não ter relação com a psicanálise.
Será que é pela via da psicoterapia de grupo que se prova que a teoria
psicanalítica não precisa "de estufas e dispositivos especiais de
proteção contra o mundo de fora"? E que se abrem as portas para que
Freud não permaneça trancafiado nos consultórios privados? A estas
indagações, os três psicanalistas entrevistados puderam dar respostas,
através de exemplos de sua práxis em Centros de Saúde.
Outra contradição que o autor expressa diz respeito à questão da
classificação nosográfica tradicional: doença dos nervos. Ao citar uma
autora - Maria Cristina G. Souza - para quem a doença dos nervos é,
antes de mais nada, uma estratégia de sobrevivência, diz:
Neurose, sim! Mas com o selo inconfundível de um esquema cognitivo-
representacional, típico das populações de baixa renda, às voltas com
problemas de sobrevivência física, psíquica e social (o grifo é nosso)
(Id.Ibid.:20).
Ao que acrescenta em seguida:
Observamos certas peculiaridades na representação doença dos nervos
que desmentem a idéia de uma expressão essencial e universal do
distúrbio psíquico (o grifo é nosso) (Id.Ibid: 20).
O autor reconhece que a chamada doença dos nervos ("Neurose, sim!"),
como qualquer neurose, apresenta peculiaridades que desmentem a idéia
de uma expressão universal do distúrbio psíquico. No entanto,
considera-a como um selo (um rótulo, portanto) que diz ser típico de
um universo: aquele que se convencionou chamar "populações de baixa
renda".
Ora, assim é que se postula um universal. Obviamente a neurose, a
psicanálise, a física, pertencem a um certo "esquema cognitivo-
representacional", esperando-se que seja respeitada a teoria freudiana
das representações e do pensamento inconsciente. Ainda que específica
de uma determinada constelação simbólica, enquanto produto da cultura,
precisamos nos lembrar que, na sua teoria da neurose, Freud deixou
claro que o típico é o que obstaculiza o acesso ao sujeito no seu
particular.
Sabemos que as peculiaridades da neurose se manifestam na emergência
singular do inconsciente, que faz valer as falhas na superfície do
discurso do Outro que afeta de forma particular cada sujeito.
Portanto, em se tratando da neurose, com a miséria que lhe é inerente
e que independe da alta ou baixa renda, não seria melhor que se
pensasse primeiro na psicanálise em lugar da psicoterapia de grupo?
Como afirma E. Vidal, "a psicanálise emerge como discurso nesta
dimensão do não-todo. Há impossibilidade de universo. O real faz
obstáculo ao universo" (Vidal, 1989:115).
Ao se reconhecer como neuróticos os tradicionalmente classificados
como doentes dos nervos, parece-nos tendencioso pensar que, para eles,
o indicado é a psicoterapia de grupo, sem que antes tenham a
oportunidade de ser escutados por um psicanalista com o desejo
avisado. Até mesmo para que os que de fato preferirem o atendimento em
grupo sejam encaminhados de maneira mais adequada. Desta forma não se
perde, com "uma certa categorização do 'pobre' (...), a possibilidade
da escuta do sujeito em sua singularidade - marca original da clínica
psicanalítica" (Nobre, 1998:135).
Reafirmamos não desconhecer que, se o inconsciente sempre se
manifesta, suas formas de expressão não deixam de estar relacionadas
aos condicionantes sócio-culturais. No entanto, isto não justifica
que, em virtude do contexto sócio-cultural das chamadas classes
trabalhadoras, se coloquem obstáculos ao exercício da prática
psicanalítica nas instituições públicas de saúde, de acordo com os
princípios que a fundamentam. Ao fazerem-no, não estariam alguns
sérios pensadores da Saúde Mental contraditoriamente discriminando o
sujeito justamente naquilo que o particulariza como tal?
Embora resultante de fatores diferentes, é ainda a uma alienação sobre
a função do sujeito que não podemos deixar de nos referir, antes de
finalizar esta dissertação.
Como já ficou amplamente evidenciado nos relatos dos psicanalistas que
entrevistamos, grande parte das interrupções precoces do tratamento
por parte dos pacientes deve-se aos encaminhamentos inadequados feitos
sobretudo pelos médicos.
Constatamos com nossa pesquisa - e era o que já supúnhamos - que isto
acontece predominantemente devido às dificuldades dos mesmos em
escutar os pacientes. Como já dissemos anteriormente, não
desconsideramos os fatores externos que, nas instituições públicas de
saúde, pressionam os médicos no sentido de atendimentos rápidos. No
entanto, interessa-nos aqui um fator de outra ordem, onde localizamos
a origem daquelas dificuldades, e que diz respeito à própria formação
médica: a concepção do corpo como apenas biológico.
Tal concepção certamente se relaciona com
a dicotomia cartesiana do pensamento e da extensão, que elimina
completamente de sua apreensão todo o tocante, não ao corpo que
imagina, mas ao corpo verdadeiro em sua natureza (Lacan, 1985:92).
Este trecho de Psicoanálisis y medicina - uma intervenção de Lacan em
mesa redonda com o mesmo título, realizada no Colégio de Medicina, em
1966, na Salpêtrière - marca a diferença entre o corpo biológico
considerado pela medicina, conforme com a dicotomia cartesiana que o
imagina apenas como extensão, e o corpo na psicanálise.
O "corpo verdadeiro em sua natureza" é, para Lacan, o corpo que "não
se caracteriza simplesmente pela dimensão da extensão: um corpo é algo
que está feito para gozar, gozar de si mesmo" (Id.Ibid.:92). Trata-se
aqui do corpo erógeno, pulsional, que se constitui com a instauração
da sexualidade. Vimos isto em Freud quando, ao falar da chamada
primeira "experiência de satisfação", deixa-nos perceber com Lacan que
os significantes do Outro, ao marcarem o corpo da criança, ao mesmo
tempo o erogeneizam na medida em que deixam um resto de gozo.
Constitui-se, assim, o corpo pulsional, "feito para gozar", pois, como
afirma Cosentino (1993:109), "em Freud (...) a pulsão aponta à
satisfação, e introduz o gozo".
Não vamos, evidentemente, sugerir que a formação médica inclua no seu
currículo a psicanálise como disciplina, nem "exigir dos médicos que
sejam menos médicos" (Figueiredo, 1997:53). Pensamos, porém, que estes
poderiam ocupar melhor o seu próprio lugar se, no decorrer de sua
formação, lhes fossem transmitidos conhecimentos sobre o corpo levando
em conta que o mesmo, a partir da descoberta do inconsciente por
Freud, já não pode ser tomado em uma dimensão apenas biológica.
Sabendo que o inconsciente produz efeitos no corpo, certamente estarão
os médicos melhor preparados para atender seus pacientes nos serviços
públicos de saúde, sem pressa de passá-los adiante. Ao escutá-los um
pouco mais, perceberão que, embora falem às vezes de um sofrimento ou
mal-estar difuso no corpo, não se trata, no caso, de medicamentos a
receitar ou de exames a prescrever. É então o momento em que a melhor
indicação talvez seja a de que busquem o psicanalista que trabalha na
mesma instituição. Por reconhecer que a dimensão do corpo que está em
jogo é de outra ordem que não a biológica, poderão os médicos
encontrar meios de levar um paciente assim a buscar alguém que possa
escutá-los mais adequadamente no seu sofrimento. E mesmo que seja o
caso de medicar, terão condições de perceber que às vezes a indicação
de um tratamento psicanalítico também se faz necessária.
Ao aceitarem que
o corpo, tal como a psicanálise o concebe a partir de sua experiência
clínica, está enlaçado em três dimensões: a da imagem em que nos
reconhecemos, a do real do gozo e a do simbólico das marcas
inconscientes que recebemos do Outro na nossa história (Vidal,
2000:9),os médicos terão menos dificuldades em escutar seus pacientes
como sujeitos singulares. Não estarão, assim, efetivamente
contribuindo para que a Saúde Pública seja, de fato, mais pública?
CONCLUSÃO
Com o percurso realizado, é chegado o momento de concluir. Certamente,
ao investigar a intersecção da psicanálise com a Saúde Pública,
deixamos de abordar muitos pontos relativos ao tema. Não tínhamos
mesmo a pretensão de esgotá-lo, até porque seria impossível - o
próprio conceito de inconsciente se opõe à idéia de um saber
totalizante. Traçamos o nosso caminho e, dentro do possível, seguimos
a sua trilha. O que ficou à margem, pode ser tomado por outros que
desejem fazer seus próprios percursos. Teremos então diferentes
abordagens do tema sem que, por isso, formem juntos um todo harmônico
e completo; mas que vão contribuir para tornar mais clara a questão.
De nossa parte, pensamos ter dado, ainda que de forma indireta, alguma
resposta à pergunta de como se efetua a intersecção da psicanálise com
a Saúde Pública, através da investigação das condições em que vem
ocorrendo o exercício da prática psicanalítica em três Centros de
Saúde. Nossas indagações diziam respeito tanto às condições
institucionais quanto à sustentação teórica da referida prática,
sobretudo no que diz respeito à questão da transferência articulada ao
desejo do analista.
Constatamos que é a chamada Saúde Mental que geralmente viabiliza a
presença da psicanálise nas instituições públicas de saúde, embora a
existência de um programa ou serviço de Saúde Mental nestas unidades
seja freqüentemente apenas uma denominação. Por isso, através do termo
psíquico, investigamos a relação entre esta última e a psicanálise e
chegamos à conclusão de que se trata de uma relação bastante
paradoxal. Aparentemente a psicanálise está próxima da Saúde Mental,
na medida em que esta viabiliza a presença daquela no campo da Saúde
Pública; por outro lado, é impossível a inclusão da psicanálise na
Saúde Mental, pois enquanto a concepção que tem esta do psíquico
provém da Biologia - desde a sua origem na psiquiatria - , para a
psicanálise, a partir da sua fundação por Freud, o psíquico é
concebido segundo a tópica do inconsciente que, sabemos bem, nada tem
a ver com o biológico.
No entanto, através da bibliografia consultada, constatamos que há
autores que apostam nesta intersecção possível entre Saúde Mental e
psicanálise. Com uma prática clínica embasada na teoria lacaniana,
estes autores buscam "um espaço rigoroso de articulação" (Lobosque,
1996:62) entre psiquiatria e psicanálise, sem tentar uma síntese entre
ambas. A condição para isto, segundo a autora citada, seria justamente
que o psíquico a ser considerado pela Saúde Mental fosse o freudiano,
ou seja, o inconsciente: "(...) é à coisa mental freudiana que se pode
referir a formação do trabalhador em saúde mental (...)" (Id.Ibid.:
36-37). E, nisto, tais autores estão sendo rigorosamente freudianos,
uma vez que foi o próprio Freud que ofereceu o inconsciente como base
à psiquiatria, ao prever que "o futuro criará (...) uma psiquiatria
científica à que a psicanálise terá servido de introdução" (1923:247).
Outra conclusão possível diz respeito à relação da Saúde Mental com a
Saúde Pública: trata-se também de uma relação um tanto paradoxal. E é
em torno da questão do biológico que está, também aqui, o paradoxo.
Vimos que a Saúde Pública não considera o corpo apenas como biológico,
não concebendo saúde e doença como um fenômeno puramente biomédico.
Isto implica em levar em consideração o psíquico - um psíquico que não
seja pensado como biológico, embora não caiba à Saúde Pública defini-
lo como inconsciente. Já a Saúde Mental acabou ficando, em relação a
esta última, como ilha psiquiátrica organo-biológica, higienista, onde
bastam psiquiatras receitando medicamentos. Foge, assim, ao espírito
geral da Saúde Pública que não a vê apenas como operação biológica.
Não poderíamos pensar então que seja esta a razão ou, pelo menos, uma
das razões que levaram ao uso do termo Saúde Mental, como se este
denominasse um campo separado da Saúde Pública, configurando-se,
assim, dois campos distintos? Por isso, então, é mais fácil à Saúde
Pública do que à chamada Saúde Mental acolher a psicanálise em suas
instituições. Colocamos isso face à constatação da diferença de
posições entre autores que pensam a Saúde Pública e outros que se
posicionam a partir da Saúde Mental.
A conclusão de que a Saúde Pública acolhe a psicanálise, ainda que o
faça de maneira informal, e de que, por seu lado, o exercício da
prática psicanalítica se efetiva nos serviços públicos de saúde por
caminhos que designamos como geralmente marginais e alternativos, pode
ser pensada em consonância com fatores já expostos. Resumindo-os,
diríamos que isto é devido ao fato de que, além de não pensar saúde e
doença como um fenômeno puramente biomédico, nem o corpo apenas como
biológico, a Saúde Pública leva em consideração o sujeito em sua
singularidade, não o subsumindo no coletivo social. Quanto à
psicanálise, parece-nos que a "in-formalidade" é a condição mesma de
possibilidade de sua presença no campo da Saúde Pública. Neste
sentido, justifica-se que seja geralmente uma práxis embasada nos
postulados teóricos lacanianos a que de fato se efetiva nas
instituições públicas de saúde. Foi o que ficou constatado através das
entrevistas realizadas com os psicanalistas dos três Centros de Saúde
escolhidos. Seus relatos foram exemplos claros de que nada impede o
exercício da prática psicanalítica no campo da Saúde Pública, de
acordo com os "ingredientes mais eficazes e importantes" formulados
por Freud, ou seja, os conceitos fundamentais da psicanálise, alheios
a idealizações.
Os relatos dos psicanalistas entrevistados também nos levaram à
constatação de que, diferentemente de muitos dos pensadores da Saúde
Pública que favorecem o exercício da prática psicanalítica nos
serviços públicos de saúde, nem sempre o mesmo acontece no que diz
respeito aos médicos que neles trabalham. Não estamos com isso
afirmando que os médicos se posicionam contra a presença da
psicanálise no âmbito da Saúde Pública. Como já discutimos nesta
dissertação, os obstáculos que colocam - e, sem dúvida, não o fazem
intencionalmente - se traduzem sobretudo nos encaminhamentos
inadequados dos pacientes ao psicanalista. Vimos que isto acontece
predominantemente devido às dificuldades dos médicos em escutar seus
pacientes como sujeitos singulares, e atribuímos tais dificuldades à
própria formação médica, com sua concepção do corpo como apenas
biológico. Concepção que reflete a "racionalidade da medicina em
geral" (Silva Filho, 2000:96), conforme com a dicotomia cartesiana que
imagina o corpo apenas como extensão.
Interessante é então constatarmos que a relação paradoxal entre
psicanálise e Saúde Mental, entre esta última e a Saúde Pública ou
mesmo entre a própria Saúde Pública e muitos dos profissionais que, em
suas instituições, efetivam algumas de suas práticas, tem origem
sobretudo em uma concepção racionalista do corpo que encontra no
biológico a sua única sustentação.
Foi justamente à tentação de preservar o biológico como fundamento do
inconsciente que Freud não sucumbiu e, por isso, pôde fundar a
psicanálise como um campo novo que, separado da medicina, desde então
faz parte da cultura.
Podemos finalmente formular melhor a nossa resposta à questão de como
se efetua a intersecção da psicanálise com a Saúde Pública. Pensamos
que tal intersecção é possível porque, para ambas, o psíquico não é
biológico, assim como para a Saúde Pública o corpo não é considerado
apenas na dimensão organo-biológica. É, pois, no ponto em que um certo
não ao biológico se faz valer, que a Saúde Pública pode dizer sim à
psicanálise. E esta, na sua "in-formalidade", faz o que pode para
estar presente em um campo que Freud já previra como podendo acolhê-
la.
Quem sabe se já não é então chegado o momento em que, juntos, a Escola
Nacional de Saúde Pública e os psicanalistas interessados possam
pensar novas formas de tornar mais clara e operante esta intersecção?
Por exemplo, no sentido de possibilitar uma escuta mais
particularizada do sofrimento humano àqueles que, nas unidades da rede
pública de saúde, trabalham no atendimento às chamadas classes
populares.
Talvez se tenha aí um trabalho novo a começar...
Fernández, Myriam Rodrigues. A prática da psicanálise lacaniana em
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ANEXO
Entrevista
1ª Parte
Quanto tempo tem de prática na psicanálise?
E neste Centro, há quanto tempo trabalha?
Qual foi a sua motivação para trabalhar aqui?
Qual é a sua inserção neste Centro? Em que programa?
O serviço em que você trabalha é de Saúde Mental?
Como se articula a sua prática com os demais profissionais e serviços
deste Centro?
Como chegam os pacientes até você? Quem encaminha?
É feita alguma triagem para o encaminhamento dos pacientes?
Você considera que este encaminhamento é feito de forma adequada? Por
que?
A organização do Centro facilita ou não o exercício de sua prática? Em
que sentido?
E quanto aos demais profissionais de saúde?
2ª Parte
Há muita rotatividade de pacientes? Há muitos que abandonam o
tratamento?
Quanto aos pacientes que ficam, como você percebe que o tratamento
psicanalítico é possível?
Como considera que se instaura uma demanda de análise? Daria algum
exemplo?
Poderia dar exemplos de situações clínicas em que considera que está
presente a transferência?
Poderia falar um pouco de como percebe os resultados clínicos de sua
prática? Daria algum exemplo?
Através de sua experiência, o que você diria do possível da prática
psicanalítica ou da prática possível da psicanálise em Centros de
Saúde?
Como recolhe os efeitos desta prática?