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unread,Sep 4, 2008, 6:47:32 PM9/4/08Sign in to reply to author
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to Midiateca da HannaH
WINNICOTT E A MÚSICA ou, WINNICOTT PARA MUSICOTERAPEUTAS
Davi Litman Bogomoletz
Um estudo do valor da música para D.W.Winnicott deveria merecer uma
dedicação bem maior do que a que me é possível no momento. Farei,
pois, uma despretenciosa abordagem introdutória, uma espécie de
‘cartão de visitas’. Um dia, espero poder realizar um estudo mais
extenso do tema, pois tanto a fonte, quanto os destinatários e o tema,
o merecem.
Gostaria de começar por algo que sempre ‘ouvi dizer’, mas de que não
mais localizo a fonte. É que Freud não gostava muito de música. Não
tinha, o velho mestre, muita paciência para com essa arte. Sabe-se que
viu a ópera "Carmen", em Paris, que muito o impressionou. Gostava
muito também do "Don Giovanni", de Mozart, mas "A Flauta Mágica", por
exemplo, não lhe agradou tanto. (Cf. Jones, "Vida e Obra de S. Freud",
Imago.) Ele era amigo do compositor Schoenberg, e tratou de Gustav
Mahler, mas não encontrei menções à obra dos dois. Fica-se, por fim,
com a impressão de que para Freud a música era um passatempo ‘menor’.
Foi muito bom encontrar, quando eu já não estava mais procurando, uma
referência textual a esta questão. Em "Lendo Freud", Peter Gay publica
um interessantíssimo ensaio a respeito da obsessiva busca de Freud
pela verdadeiro autor das obras atribuídas a Shakespeare. A certa
altura, analisando a forma pela qual Freud se interessava pelas obras
de arte, Gay diz: "Num artigo anônimo [o "Moisés de Michelangelo",
assim publicado primeiramente em Imago em 1914, tendo Freud assumido a
autoria somente em 1924] Freud se descrevia mais como um leigo que
como um conhecedor de arte, alguém que se sentia ‘mais atraído pelo
tema de uma obra de arte que pelas suas propriedades técnicas ou
formais’. Daí a música ser algo quase inacessível para ele, pois, como
confessava, só conseguia obter prazer de uma obra de arte se, depois
de contemplá-la por algum tempo, conseguisse ‘captá-la à minha
maneira, isto é, compreendendo os meios pelos quais ela provoca uma
determinada impressão.’ Ele atribuía a sua incapacidade de apreciar
aquilo que não conseguía compreender a ‘uma maneira de pensar
racionalista, ou talvez analítica.’ Não é muito fácil deduzir, pois,
que Freud, o homem, era - como se diz hoje em dia - regido pelo
hemisfério esquerdo do cérebero. Ele era fascinado pelo sentido, e
sabemos que na música há sentido de modo apenas remotamente indireto.
Seu reino era o reino da palavra, e não há dúvida de que, nesse reino,
ele foi um soberano de imenso poder e vastíssima sabedoria. Mas a
música não fazia parte de seus interesses pessoais.
Já Winnicott tinha, na música, uma companhia quase inseparável. Ele
adorava Bach. Suas referências aos últimos quartetos de Beethoven só
podem comparar-se à suprema admiração que Freud tinha pelo "Fausto" de
Goethe. Tivesse eu um pouco mais de tempo e menos preocupações,
tentaria fazer uma reflexão sobre a personalidade dos dois mestres, a
partir dessa sua relação com a música. É uma idéia tentadora, mas para
mim impossível agora. Winnicott tocava piano, e sempre alegrava as
festas e reuniões, e na última década de sua vida aderiu inteiramente
aos Beatles, de quem tornou-se um grande fã - tinha todos os seus
discos. (Quando eles surgiram, ele tinha já mais de sessenta anos.
Todo o mundo foi fã dos Beatles aos 14 anos. Mas beatlemaníacos
sexagenários não eram tão frequentes assim...) (Histórias contadas por
Claire Winnicott.)
Pelo que sei, Freud prezava muito a seriedade, apesar de ter sido um
grande contador de piadas. Já Winnicott era basicamente brincalhão,
ainda que inteiramente sério quando era o caso. A poesia com que Freud
se deleitava era a ‘Grande Poesia’, se assim se pode dizer. Sua
educação clássica e germanófila não foi imposta, foi adquirida com
prazer. Winnicott gostava dos clássicos, evidentemente, mas saboreava
com freqüência a poesia lírica de autores menos ‘grandes’. (Era a
Clare que lhe contava os poemas, enquanto ele lhe tocava as
músicas...)
Mas vamos ao que interessa. A música aparece explicitamente na obra de
Winnicott em termos muito interessantes. Ao refletir sobre a vida
intra-uterina do bebê, ele se refere à possibilidade nada desprezível
de que os sons corporais da mãe seriam percebidos e registrados pelo
feto. Os batimentos cardíacos, a respiração, os ruídos produzidos pelo
processo digestivo, e certamente a voz, são considerados por ele como
presenças inevitáveis no incipiente sistema sensório do feto. Tanto
assim é, que ele diz ter observado bebês brincando de ‘acertar seu
ritmo respiratório com a freqüência cardíaca (por exemplo, respirando
uma vez a cada 4 batimentos cardíacos). Algum tempo depois é possível
encontrá-lo (ao bebê) lidando com a diferença entre o seu ritmo
respiratório e o da mãe, procurando talvez criar situações de
relacionamento baseadas primeiramente numa respiração de freqüência
dupla ou tripla’. ("Natureza Humana", pág. 168).
Mas não é só. Duas páginas antes, ao falar da questão tão angustiante
do parto anormal, Winnicott diz algumas coisas que, ocorre-me, seriam
de especial importância para os musicoterapêutas.
‘Com (tudo) isto, quero dizer que o bebê tem uma série de impulsos e
que a progressão em direção ao nascer surge no interior da capacidade
do bebê de se sentir responsável. Sabemos obviamente que o nascimento
foi provocado pelas contrações uterinas. (Mas) Do ponto de vista do
bebê, foi o seu próprio impulso que produziu as mudanças e a
progressão física, em geral começando pela cabeça, em direção a uma
nova e desconhecida posição. (...) Estou presumindo, portanto, que no
nascimento normal não há antecipação nem adiamento. (...) A variável
mais importante aqui é o adiamento, muito freqüente nos processos de
parto pelo fato de, em nossa cultura, as mães começarem a ter bebês um
tanto tarde. Isto, somado às inibições típicas da civilização,
acrescido ainda do fato representado pelas dimensões da cabeça do bebê
humano, produz um estado de coisas no qual podemos esperar uma elevada
taxa de partos anormais. Ligeiros graus de adiamento superiores à
capacidade do bebê de tolerá-los devem ser bastante comuns, e
clinicamente é possível encontrar aqui a base para um interesse
intelectual na questão do tempo, do parcelamento do tempo, e do
desenvolvimento de um senso de timing.
‘Muitos seres humanos trazem memórias corporais do processo de
nascimento, como um exemplo marcante de um adiamento para além da
compreensão, já que para o bebê que reage à intrusão de um parto
adiado não há precedentes nem unidades de medida possíveis pelas quais
mensurar o adiamento ou prever as consequências. Não há meios de fazer
o bebê saber, durante um parto demorado, que meia hora ou algo
equivalente será suficiente para resolver o problema, e por esta razão
o bebê é apanhado por uma espera indefinida ou ‘infinita’. Esse tipo
de experiências dolorosas fornece uma base muito poderosa para coisas
tais como a questão da forma na música, onde, sem a rigidez da
moldura, a idéia do fim é mantida diante do ouvinte desde o início. A
música sem forma aborrece. E a inexistência de formas é infinitamente
enfadonha para aqueles que se sentem particularmente aflitos por esse
tipo de ansiedade, por conta de adiamentos impossíveis de compreender
ocorridos em sua primeira infância. A música dotada de estrutura
formal clara é reasseguradora em si mesma, para além de seus outros
valores musicais propriamente ditos.
‘Este é um exemplo bastante sofisticado. Muitas pessoas não conseguem
utilizar a forma para reassegurar-se contra a sensação do infinito.
Para estas, é necessária uma programação rígida, baseada em marcações
rigorosas comandadas pelo relógio, para não serem avassaladas pelo
aborrecimento. A idéia de um adiamento infinito deriva muito
provavelmente de um processo de nascimento não inteiramente normal,
tornando especialmente importante para certos bebês a habilidade de
adivinhar as probabilidades mentalmente, de modo a poderem prever a
hora da comida baseando-se nos sons que vêm da cozinha, ou tolerar uma
eventual demora pela compreensão das razões que impedem a sua mãe de
ser pontual.
‘No processo de nascimento ocorre essa grande mudança devida ao início
do ato de respirar. Possuo evidências provenientes do trabalho clínico
que mostram que o bebê pode se tornar consciente da respiração da mãe,
no sentido de perceber os movimentos abdominais ou as mudanças
rítmicas de pressão e ruído, e como após o nascimento o bebê pode vir
a necessitar de um reatamento do contato com as funções fisiológicas
da mãe, especialmente sua respiração. Por esta razão, acredito ser
provável que certos bebês precisem do contato pele a pele com a mãe, e
especialmente da sensação de serem movimentados pelo sobe e desce de
sua barriga. É possível que para o bebê recém-nascido a respiração
significativa seja a da mãe, enquanto sua própria respiração acelerada
não tem sentido algum, até que esta comece a se aproximar da
freqüência do ritmo respiratório da mãe. Com certeza muitos bebês, sem
saberem o que estão fazendo, brincam com ritmos e contra-ritmos...’
Fiz questão de citar tão longamente o texto winnicottiano, porque
pareceu-me que a profusão de detalhes significativos não poderia ser
suprimida. Sei, por meu contato com a musicoterapia, que uma das
palavras chave nesse tipo de trabalho é o termo ‘regressão’, indicando
aquilo que em psicanálise se refere à retomada de experiências
primitivas, desenterradas do fundo da memória para servirem de base
sólida para o esforço de retomar o processo de crescimento alguma vez
interrompido, ou prejudicado. Sobre isto, Winnicott tem obviamente
muitíssimo a dizer, pois suas formulações sobre o verdadeiro e o falso
selves são conhecidas de todos.
Que a música seja uma linguagem não verbal, por isso especialmente
apropriada para estabelecer contato com o verdadeiro self pouco
amadurecido, escondido no fundo do falso self, nada tem de novidade. O
que gostaria de acrescentar aqui, é uma outra dimensão da teoria
winnicottiana, não tão conhecida quanto a questão do verdadeiro self.
Trata-se do conceito de ‘Espaço Transicional’. Todos conhecem as
formulações de Winnicott sobre o ‘objeto transicional’, o mais que
famoso ursinho de pelúcia que certas crianças carregam como se fossem
quase partes do próprio corpo. A natureza especial desse objeto,
sempre um objeto físico (e às vezes uma pessoa), é que ele é vivido
pela criança como se fosse ao mesmo tempo um produto de sua fantasia.
Ou seja, o objeto transicional está a meio caminho, digamos, entre uma
imagem de sonho e um objeto material propriamente dito. Melhor
dizendo, ele é as duas coisas ao mesmo tempo, ainda que
filosoficamente isto pareça uma impossibilidade. Essa é, porém, a
verdadeira ‘natureza’ do objeto transicional, constituindo-se ele,
portanto, num paradoxo.
Esta idéia foi sugerida por Winnicott pela primeira vez em 1951. Já no
fim da vida, em 1967, ele publicou um trabalho no livro "O Brincar e a
Realidade", denominado "O Lugar da Experiência Cultural", em que a
idéia do objeto transicional foi levada às suas últimas conseqüências.
Pouca gente notou, até onde me foi dado saber, que esse trabalho
inscreveu Winnicott no mais moderno contexto da ciência atual, com
suas formulações cada vez menos mecânico-racionalistas, e cada vez
mais poético-oníricas. A velha distinção freudiana entre princípio da
realidade e princípio do prazer, com a qual ele próprio já havia
derrubado definitivamente o mito do ‘homem racional’, foi por sua vez
abalada pela Física contemporânea, que observa a "realidade" com olhos
cada vez menos ‘realistas’, cartesiano-newtonianos, e cada vez mais
zen-budistas. (Os papos do Capra podem até ser exagerados, sei lá, mas
certamente não são disparates).
Não sei se Winnicott estava consciente de que o ‘espaço transicional’
- tudo aquilo que não é nem sonho nem pedra, e no qual inscreve-se o
total da experiência propriamente humana, no sentido social da
palavra, ‘batia’ com essas novas formulações dos físicos a respeito da
‘imaterialidade da matéria’ e da indistinção radical entre observador
e observado, entre causa e efeito, entre agora, antes e depois. A
atemporalidade e a não-contradição do insconsciente, típicos até então
apenas do inconsciente com seu ‘princípio do prazer’, passaram do
porão à sala de visitas, e tornaram-se respeitáveis presenças na mais
sizuda assembléia de sábios. O fato é que, lendo esse seu trabalho,
onde ele fala principalmente de ‘cultura’ no sentido estético da
palavra (artes, etc.) mas deixa claro que a coisa não fica só nisso,
(e eu a estendo para o resto da experiência humana), surge à nossa
frente uma clareza de entendimento do fenômeno sócio-cultural que
repõe o indivíduo propriamente dito no interior de um contexto
‘transicional’, onde uma das metades vem de fora, na forma da assim
chamada ‘cultura’, e a outra vem de ‘dentro’, sob o nome de
‘criatividade’, desaparecendo assim o velho mito da dicotomia entre o
‘interno’ e o ‘externo’, entre o ‘subjetivo’ e o ‘objetivo’.
É essa forma singular pela qual cada um acolhe o seu quinhão de
‘cultura’ e a transforma quase sempre numa cultura própria que gera a
individualidade. O conceito de espaço transicional apaga as fronteiras
existentes entre os antigos compartimentos ‘objetivo’ e
‘subjetivo’ (embora não os torne uma única e mesma coisa). Nesse
território novo, com o qual Winnicott renomeia a área humana-social da
nossa vida, haveria dois habitantes permanentes: a Religião, e a Arte.
E ele afirma, para dar maior consistência às suas alegações: ‘Nessas
duas regiões, o homem volta e meia pára e descansa um pouco de sua
eterna tarefa de discernir entre a ‘realidade interna’ e a ‘realidade
compartilhada’.’ ("Natureza Humana", pág. 127)
É claro que existem as ‘realidades compartilhadas’, conforme as
denomina Winnicott, de modo que a ninguém cabe contestar a validade de
um contrato assinado, com firma reconhecida, nem questionar a
diferença entre um documento físico desse tipo, onde o ‘sonho’ de duas
ou mais pessoas é transformado em ‘realidade’, e o papo inteiramente
onírico e descompromissado de dois amigos bêbados jogando conversa
fora num botequim da esquina. Para tanto, a sociedade constrói todo um
edifício de leis e regulamentos, e ‘combina’ que um homem vestido do
que passamos a chamar ‘uniforme de policial’, com carteira de
identificação reconhecida por quem a expediu, terá o direito de bater
com seu bastão de madeira (ou borracha, tanto faz, desde que seja bem
‘real’...) na cabeça daquele que se negar a reconhecer essa
sutilíssima diferença.
Temos, portanto, que reconhecer essa diferença, mas não devemos perder
a perspectiva e imaginar que o contrato é mais ‘real’ que o papo dos
dois amigos. Não. De ‘real’ aí entra apenas o cassetete do guarda, ou
a grade do xadrez, ou o rombo na nossa conta depois de paga a multa. O
resto é, haja o que houver, convenção social, e se somos melhores
cidadãos quando reconhecemos as decisões coletivas, tornamo-nos um
perigo para a sociedade quando levamos longe demais a ‘brincadeira’ -
de que certas facetas da cultura são ‘realmente’ reais, enquanto
outras não passam de ‘delírios’.
É nesse espaço que as coisas se passam, entre os homens. E ele é
transicional porque se situa entre, é uma transição entre a fantasia e
a pedra. (A pedra, por sua vez, só é pedra para o olhar humano. Do
ponto de vista do trator, nem toda pedra merece esse nome, e do ponto
de vista da dinamite, ou do raio laser, nenhuma. Mas enquanto as
pedras forem mais duras que as nossas cabeças, tenderemos a chamá-las
de ‘pedras’, independente do que dizem os físicos ou os geólogos.)
O espaço transicional tem, porém, uma característica muito especial:
ele não existe in natura. Ele próprio é uma criação, uma criação do
homem, muito parecido com o que Bachelard chama de logosfera, uma bela
expressão que designa o âmbito em que vigem as palavras. ‘Por de Sol’,
por exemplo, é um fenômeno que ocorre exclusivamente na cabeça de quem
o nomeia. No entanto, quando esse alguém o nomeia, e outro, que olhava
para outro lado, por acaso o vê, saem ambos dizendo para quem se
interessar: ‘Puxa, vimos um por-de-sol tão lindo...’ E os outros
acreditarão que, de fato, esses dois viram alguma coisa que estava lá
para ser vista. Pois essa é a logosfera, a esfera em que as palavras
voam de uma orelha a outra, dizendo coisas. Esse é justamente o espaço
transicional, creio eu. Mas esse espaço, diz Winnicott, só existe se e
quando o homem - o indivíduo - o cria. É, portanto, um espaço
potencial, que só passa a ser atual após ter sido criado por um
indivíduo. E essa criação se dá, novamente, entre, e agora entre o
bebê e sua mãe.
Winnicott descreve o processo: No momento em que o bebê, que está
junto à mãe, e que (como verificamos tantas vezes, ao longo das
psicoterapias) percebe a mãe como parte dele, como algo criado por
ele, a ponto de não lhe fazer sentido a idéia de que ela existe em si
mesma, quando pois esse bebê faz um gesto qualquer ou percebe alguma
coisa e lhe dá sentido, registra-a, tem uma experiência, nesse momento
essa experiência ao mesmo cria o espaço potencial e nele se inscreve.
E é por inscrever-se que ela o cria. Exemplo: Quando mergulhamos a mão
fechada na água ensaboada, e depois a abrimos, entre os dedos que
antes estavam juntos, e que agora se separam, surge uma película de
sabão. A película surge porque as características químicas do sabão
dissolvido em água permitem que as moléculas permaneçam presas uma à
outra, formando redes extensas, mas muito finas. Mas é a abertura dos
dedos que cria a película, que antes existia só em potência.
Assim ocorre também com esse espaço potencial. Ele é criado no momento
mesmo em que a criança tem uma experiência que nele virá a inscrever-
se. E a segunda experiência o ampliará, e assim por diante, e com isso
o bebê vai empilhando experiências entre ele e a mãe. E com isso ele
se separa dela, pois esse espaço, ao surgir, cria uma distância entre
ambos. Entendamos bem: Ao produzir - e assim ter - uma experiência
pessoal, o bebê cria com isso um espaço entre ele e a mãe, e assim
constrói uma distância, uma distância que o separa da mãe. Ele, então,
constrói a si mesmo ao mesmo tempo que constrói a distância entre ele
e a mãe. E assim, diz Winnicott, o bebê vai se separando da mãe,
interpondo experiências pessoais entre ele e a mãe, mas na medida em
que essas experiências começam em seu mundo interno e terminam ali
onde o seu mundo interno abarca a própria mãe, esse espaço potencial
que vai surgindo, vai sendo construído, ao mesmo tempo É A LIGAÇÃO
ENTRE O BEBÊ E A MÃE.
O famoso livro "Simbiose e Ambiguidade", de Bleger, uma das grandes
obras da escola kleiniana, fala da incapacidade do indivíduo não
amadurecido de viver a dúvida, a incerteza, a escorregadia
probabilidade. Só com o amadurecimento, isto é, a separação, é que a
ambiguidade, a flexibilidade, a incerteza podem tornar-se toleráveis.
Esta foi, sem dúvida, uma grande contribuição de Bleger, mas agora
surge, com essa noção winnicottiana do espaço transicional, uma
explicação teórica talvez mais apropriada para o fenômeno descrito por
Bleger: Pois no espaço transicional O PARADOXO É A LEI, não é uma
exceção ou um ‘caso’. A ambiguidade de que fala Bleger é justamente a
ambiguidade do paradoxo, a capacidade de conviver com o ‘talvez’, a
capacidade de existir sem o poder de controlar todas as variáveis. E o
paradoxo só é possível no interior do espaço transicional, criado pela
atualização do espaço potencial. E esse próprio espaço é por sua vez
paradoxal, pois é o espaço que simultaneamente liga E separa.
Tudo isto vem para explicar o conceito de ‘espaço transicional’, esse
espaço onde, na verdade, passamos toda a nossa vida. (Se, por um lado,
a fantasia inconsciente não faz parte do espaço transicional, sendo um
espaço eminentemente privado, o fato é que ela tampouco pode ser
chamada de ‘pessoal’, já que a própria pessoa tem tão pouco acesso a
ela quanto os outros, e às vezes até menos, quando pensamos no caso do
terapêuta.) E vem para tornar mais legítimas ainda (se é que
precisava) essas duas idéias winnicottianas tão utilizadas na
musicoterapia, mas a meu ver mais conhecidas por sua eficácia que por
sua origem: as idéias de regressão e da criação de um espaço
apropriado para que a mesma ocorra.
Aqui entra (de novo) a música, como instrumento de trabalho. Como
psicanalista, eu também uso música em meu trabalho, e gostaria de
explicar o que digo, pois não é algo óbvio. Quando um paciente entra
em meu consultório, e depois de cumprimentá-lo eu fico quieto e não
digo nada até ele começar a falar (com algumas exceções, em situações
muito especiais), não tenho dúvida alguma de que esse meu silêncio,
sendo inteiramente voluntário e conscientemente produzido, é ‘música’.
Música num sentido primário da palavra, um conjunto (embora vazio) de
sons coerentes entre si. É um silêncio ao mesmo tempo artificial (na
medida em que eu evito rompê-lo) e natural (na medida em que nenhum
som é artificialmente ‘produzido’), e a tradição psicanalítica atribui
a ele grande importância. Antigamente, justificava-se a produção desse
silêncio como forma de criar um ambiente ‘impassível’, ‘não falsamente
acolhedor’, diferente da situação social ‘normal’, criando uma
situação atípica à qual o paciente teria que reagir com aquilo que
mais verdadeiramente o caracterizava. Era esta a forma clássica de
induzir a ‘neurose de transferência’. Atualmente, esse silêncio é
visto como a criação de um ambiente facilitador, como dizia Winnicott,
capaz de permitir ao paciente ‘ouvir’ a si mesmo de forma mais direta,
e comunicar-se com o terapêuta a partir de um nível interno mais
verdadeiro, ainda que nem todos os pacientes consigam agir desta
maneira, tornando-se às vezes necessário ‘ajudá-lo’ um pouco.
Outro aspecto ‘musical’ no meu trabalho consiste em falar com cada
paciente numa linguagem que a mim parece ‘afinada’ com a sua. Não digo
sempre o que penso na minha língua, como se o psicanalista fosse uma
espécie de médico que a cada paciente receita o remédio apropriado,
mas os nomes das doenças e dos remédios são sempre os mesmos,
independente do doente e da doença. A eu ver, cada paciente vem me ver
em busca de si próprio, não de mim, e eu é que devo adaptar-me a ele,
não ele a mim. Sigo, pois, o ensinamento do Jazz, criando sempre um
acompanhamento apropriado para a melodia tocada pelo paciente, em vez
de seguir o caminho da música clássica, onde há pautas e regras
escritas, e onde aquele que ‘desafina’ deve aprender a ‘tocar
direito’. Mas a música propriamente dita não faz parte de meus
instrumentos de trabalho, ao menos não por enquanto. Diz uma
musicoterapeuta amiga minha que um dia eu chego lá. Por enquanto,
ainda não cheguei.
E quanto à música propriamente dita, depois de tudo que falei de
Winnicott, creio que as reflexões a seguir se tornarão evidentes por
si mesmas.
A música em si, essa sequência de estímulos sonoros que, por lhe
atribuirmos valor estético (se bem que nem todos concordem quanto a
isso, em todos os casos) chamamos por esse nome, é um dos habitantes
privilegiados do espaço transicional. Por alguma razão (Chomsky
explica?) o cérebro do bicho homem tem uma vocação para a música,
assim como para a linguagem. Outros bichos também a apreciam, ainda
que não tenham tanta facilidade em apreciar a linguagem. Há algo
nessas sequências de sons que os estudiosos estudados por vocês
certamente analisam bem melhor do que eu. O que quero, no entanto,
dizer a vocês enquanto psicanalista é que a música é um dos elementos
de maior penetração nesse que Winnicott chama da espaço transicional.
Ou seja, a música é um dos elementos que mais fundo penetra nesse
espaço, que mais perto chega do espaço pré- transicional, onde se
localizam as fantasias mais internas e mais pessoais do indivíduo.
Talvez porque, sendo esta uma das mais antigas descobertas do homem
sobre a psicologia do bebê, é ainda no útero de sua mãe, e portanto
inteiramente fundido a ela, que o bebê inicia a sua aprendizagem
musical. Que a voz gravada da mãe acalma bebês aflitos é sabido. Que a
voz da mãe cantando uma canção de ninar é o melhor remédio contra a
aflição infantil também é sabido. Portanto...
Sendo uma forma de comunicação, e não só um ornamento sonoro - já que
não se trata de ‘barulho’ - e sendo uma comunicação não verbal, a
música se presta lindamente para penetrar sorrateiramente (isto é, sem
dor) nas defesas mais primitivas do paciente, buscando estabelecer
contato com o ser que se esconde lá dentro, e que é mais primitivo
ainda. Aqui não se trata de estimular, mas bem ao contrário, de
tranquilizar, de pacificar. Penso numa ‘Sonata ao Luar’ de Beethoven
(quando muitíssimo bem tocada), ou num daqueles belíssimos ‘poemas sem
palavras’ do Fregtman, para exemplificar o que quero dizer com
‘pacificar’. É óbvia a associação de certas melodias (no estilo
‘largo’ ou ‘adagio molto’) com os sons primordiais do interior do
corpo da mãe, principalmente de sua voz como deve soar no interior do
líquido amniótico. Certos ritmos e notas muito solenes com certeza
criam um ambiente mental tranquilizador, na medida em que levam a
pessoa a sintonizar com algo que, por sua lentidão, relaxa os ritmos
internos do ouvinte e, no melhor dos casos, reduz sua tensão.
Obviamente, recria-se nesses momentos o clima do colo materno, e
ressurge um sentimento de proteção e amparo - por oposição ao clima
persecutório da separação e do desamparo.
Penso também na música como um ‘objeto transicional’ por excelência,
por um lado o grande ‘objeto transicional’ da pré-história mais
remota, pois nada impede de imaginar que, antes de terem sido
inventadas palavras suficientes para permitir uma conversação, as
pessoas naquelas eras de muito medo e pouca paz (‘A Guerra do Fogo’,
lembram?) talvez se comunicassem, quando juntas, tartamudeando alguns
sons ‘musicais’. Nada impede de imaginar, pois, que a música (o canto)
antecede a invenção, se não da palavra, ao menos da conversa digna
desse nome. A profissão de ‘contador de histórias’ ao redor do fogo
talvez seja posterior à profissão de ‘cantador de melodias’ na
escuridão da caverna.
A música é, ao mesmo tempo, o grande objeto transicional de gente da
mais sofisticada intelectualidade moderna, e não penso, obviamente,
nos músicos profissionais, mas em gente como Albert Einstein, Pablo
Picasso, José Saramago e Ingmar Bergman, e tantos políticos e
cientistas, e também industriais e artistas de outras áreas, e até
mesmo, hum, eu. Isto para não falar do povo como um todo, de todos os
povos, que, se prestarmos atenção, vivem cantando ou ‘tocando’ em
pensamento alguma melodia. Ou seja: a música vem de fora, muitas
vezes, mas ao reproduzí-la, e também ao ouví-la, nós na verdade a
‘criamos’, e não apenas ‘re-criamos’. O músico profissional é que ‘re-
cria’, pois aprende e exercita-se e está sempre consciente de que há
um ‘verdadeiro’ autor do que ele está tocando. Nós, reles amantes da
música, quando cantamos ou ‘tocamos’ uma melodia mentalmente, ou no
instrumento, e mesmo no aparelho de som, vivenciamos claramente o
prazer de inventá-la de novo, e é precisamente esta a definição
winnicottiana do objeto transicional: algo que não podemos definir
como tendo sido encontrado, pelo simples fato de que seu valor é dado
pela experiência de o haver inventado. (De que outra forma pode se
explicar o prazer que tanta gente (inclusive eu) tem em gravar uma
música ou uma série, ou comprar uma fita ou disco para depois exibí-
los aos amigos como uma conquista pessoal?) E não há melhor forma de
definir a experiência musical que esta, mesmo quando ouvimos outros
tocarem ou cantarem. Pois a música ressoa ‘lá dentro’, como se
estivesse sendo produzida, na verdade, ali. (Isto, obviamente, é muito
diferente de meramente ‘ouvir’ música.)
A música é pois, uma ponte entre o mundo interno, do eu mais pessoal e
intransferível, e o mundo externo, onde compartilhamos a ‘realidade’
com os outros. Se, para Freud, o sonho era a ‘estrada real para o
inconsciente’, a música é a ponte que leva ao eu mais profundo e
verdadeiro. E não vale dizer que o sonho vem de dentro para fora,
enquanto a música vai de fora para dentro, porque não se pode dizer
com convicção que a música realmente segue de fora para dentro: ou uma
música entra, e nesse caso ela já está dentro, mesmo que esteja sendo
ouvida pela primeira vez, ou ela não entra, e então nada acontece.
Utilizá-la para estabelecer contato com esse eu interno,
principalmente quando o mesmo se encontra oculto sob as defesas do
falso self, é não só legítimo enquanto prática, mas legitimado
teoricamente pela contribuição de Winnicott. Surgiu-me, enquanto
pensava no que eu iria dizer aqui, uma idéia por um lado engraçada,
por outro muitíssimo espantosa - ao menos para mim: A música é o
‘objeto’ mais transicional possível, depois de Deus. E cá entre nós,
na minha modesta opinião, a Ele certamente agradaria muito essa idéia.
Ou, dito de outra forma: Segundo uma velha piada judaica, (creio que
contada por Woody Allen), foi porque Deus percebeu que daria muito
trabalho encontrar-se ao mesmo tempo em todos os lugares, para tomar
conta de todo o mundo, que Ele inventou as mães. E, acrescento eu: Foi
porque mesmo as mães não podem estar sempre em todos os lugares, que
Deus resolveu aperfeiçoar a Obra um pouco mais, e criou a música.
Davi Bogomoletz é do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.