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unread,Aug 16, 2008, 2:19:17 PM8/16/08Sign in to reply to author
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to Midiateca da HannaH
FORA DA BELEZA NÃO HÁ SALVAÇÃO
Rubem Alves
Escrevo como poeta. Cummings disse que o mundo ilimitado de um poeta é
ele mesmo. Narcisismo egocêntrico? Não. Invoco a Cecília Meireles para
esclarecer. Dizia ela de sua avó: “Teu corpo era um espelho pensante
do universo.“ Os poetas, diferentes dos cientistas que desejam
conhecer o universo olhando diretamente para ele, só conhecem o
universo como parte do seu corpo. Poesia é eucaristia. O poeta
contempla a coisa e diz: “Isso é o meu corpo.“
Poeta, não sei falar cientificamente sobre o cristianismo. Só posso
falar sobre ele tal como ele foi se refletindo no espelho do meu
corpo, através do tempo.
Infância. Crianças não têm idéias religiosas. Nada sabem sobre
entidades espirituais. Crianças são criaturas deste mundo. Elas o
experimentam através dos sentidos, especialmente a visão. As crianças
não têm idéias religiosas mas têm experiências místicas. Experiência
mística não é ver seres de um outro mundo. É ver esse mundo iluminado
pela beleza. Essas são experiências grandes demais para a linguagem.
Dessas experiências brotam os sentimentos religiosos. Religião é a
casca vazia da cigarra sobre o tronco da árvore. Sentimento religioso
é a cigarra em vôo. Menino , eu voava com as cigarras.
As idéias religiosas não nascem das crianças. Elas são colocadas no
corpo das crianças pelos adultos. Minha mãe me ensinou a rezar. “Agora
me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem
acordar, recebe a minhalma, ó Senhor, Amém.“ Resumo mínimo de teologia
cristã: há Deus, há morte, há uma alma que sobrevive à morte. Depois
vieram outras lições: “Deus está te vendo, menino...“ Deus vira um
Grande Olho que tudo vê e me vigia. Meu primeiro sentimento em relação
a Deus: medo.
As crianças acreditam naquilo que os grandes falam. E assim se inicia
um processo educativo pelo qual os grandes vão escrevendo no corpo das
crianças as palavras da religião. O corpo da criança deixa de ser
corpo da criança: passa a ser o caderno onde os adultos escrevem suas
palavras religiosas.
Muitas são as lições do catecismo. Deus é um espírito que sabe todas
as coisas. Vê o que você está fazendo com as suas mãos, debaixo das
cobertas, com a luz apagada. Deus é onipotente: pode fazer todas as
coisas. Tendo poder absoluto, tudo o que acontece é porque ele quis. A
criancinha defeituosa, a mãe que morre de parto, as câmaras de
tortura, as guerras... As tragédias não acontecem. Deus as produz.
Diante das tragédias ensina-se que se deve repetir: “É a vontade de
Deus.“ É preciso fazer o que Deus manda pois, se não o fizer, ele me
castigará. Se eu morrer sem me arrepender serei punido com o fogo do
Inferno, eternamente. Essa vida do corpo, na terra, não tem valor.
Vale de lágrimas onde os degredados filhos de Eva lamentam e choram,
esperando o céu. O céu vem depois da morte. Deus mora no lugar que há
depois que a vida acaba. O mundo é um campo de provas minado por
prazeres onde o destino eterno da alma vai ser decidido. Para se amar
a Deus e o seu céu é preciso odiar a vida. Quem ama as coisas boas da
vida não está amando Deus. Negar o corpo: lacerações, abstenções,
sacrifícios: essas são as dádivas que se deve oferecer a Deus. Deus
fica feliz quando sofremos. De todos os prazeres os mais perigosos são
os prazeres do sexo. Assim, é preciso fazer sexo sem prazer, sexo para
procriar. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas revelou a sua vontade
a uma instituição: a Igreja, não importando se católica ou
protestante. A ela, Igreja, foi confiada a guarda do livro escrito por
inspiração divina, as Sagradas Escrituras, a “Grande enciclopédia dos
saberes e das ordens divinas“. Sendo assim “fora da Igreja não há
salvação“, porque fora da Igreja não há conhecimento de Deus.
Ludwig Wittgenstein fala sobre o poder enfeitiçante das palavras.
Palavras enfeitiçantes: aquelas que nos possuem e nos impedem de
pensar. Assim são as idéias religiosas: os corpos dos homens estão
cobertos de palavras que, pelo medo, os dominam. “Possuídos“, não
conseguem pensar pensamentos diferentes. Qualquer outra palavra pode
significar o inferno. As inquisições, católica e protestante, jamais
enviaram para a fogueira pessoas por seus pecados morais. Os pecados
morais levam o pecador para mais perto da Igreja, pois ela tem o poder
de perdoar. Queimados foram aqueles que tiveram pensamentos
diferentes: Brunno, Huss, Serveto. Os crimes de pensamento afastam os
homens da Igreja. Consequentemente, afastam os homens de Deus. Quem
pensa pensamentos diferentes tem de ser eliminado ou pela fogueira ou
pelo silêncio.
Durante muitos anos vivi enfeitiçado por essas palavras. Feitiços não
se combatem com a razão. É sempre um beijo de amor que quebra o
feitiço... Quem me beijou? Um Outro que mora em mim. Porque em mim
mora não somente aquele que pensa mas aquele que sente. Barthes dizia:
“Meu corpo não tem as mesmas idéias que eu“. Meu “eu“ pensava as
palavras que haviam sido escritas no meu corpo. Mas o meu corpo
pensava outras idéias. A verdade do meu corpo era outra. Ele amava
demais a vida. Confesso: nunca me senti atraído pelas delícias do céu.
E desconheço alguém que morra de amores por ele. Prova disso é que
cuidam bem da saúde. Querem continuar por aqui. Conheço, entretanto,
pessoas que vivem vidas torturadas por medo do inferno.
Lembro-me, com nítida precisão, do momento em que tive a percepção
intelectual que libertou a minha razão para pensar. Eu estava no
seminário. Repentinamente, com enorme espanto, percebi que todas
aquelas palavras que outros haviam escrito no meu corpo não haviam
caído do céu. Se não haviam caído do céu, elas não tinham o direito de
estar onde estavam. Eram demônios invasores. Abriram-se-me os olhos e
percebi que essa monumental arquitetura de palavras teológicas que se
chama teologia cristã se constrói, toda, em torno da idéia do inferno.
Eliminado o inferno, todos os parafusos lógicos se soltariam, e o
grande edifício ruiria. A teologia cristã ortodoxa, católica e
protestante – excetuada a dos místicos e hereges – é uma descrição dos
complicados mecanismos inventados por Deus para salvar alguns do
inferno, o mais extraordinário desses mecanismos sendo o ato de um Pai
implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como
todo pai humano que ama sabe fazer), mata o seu próprio Filho na cruz
para satisfazer o equilíbrio de sua contabilidade cósmica. É claro que
quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor são sempre os pais
que morrem para o que o filho viva.
Hoje, as idéias centrais da teologia cristã em que acreditei nada
significam para mim: são cascas de cigarra, vazias. Não fazem sentido.
Não as entendo. Não as amo. Não posso amar um pai que mata o filho
para satisfazer sua justiça. Quem pode? Quem acredita?
Mas o curioso é que continuo ligado a essa tradição. Há algo no
cristianismo que é parte do meu corpo. Sei que não são as idéias. Que
ficou, então?
Foi numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo)
estava transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa
cristã. E eu fiquei lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa
de Bach, e a beleza era tão grande que fiquei possuído e chorei de
felicidade: “A beleza enche os olhos d\'água” (Adélia Prado). Percebi
que aquela beleza era parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada
do meu corpo. Durante séculos os teólogos, seres cerebrais, haviam se
dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não
lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas,
seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza.
Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza
que mora nessa tradição. As idéias? Chiados de estática, ao fundo...“
Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã erótico-
herética: “Fora da Beleza não há salvação...“