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unread,Aug 21, 2008, 3:35:01 PM8/21/08Sign in to reply to author
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to Midiateca da HannaH
RESENHA - Santo Agostinho e Hannah Arendt: inspiradores da clínica de
Gilberto Safra.
Por Sonia Novinsky
No curso O diálogo entre Hannah Arendt e Santo Agostinho o Prof.
Gilberto nos revela alguma das bases do seu pensamento clínico: de
como esse diálogo lhe abriu as possibilidades clínicas para além do
nível psíquico dos pacientes, tal como é trabalhado pela Psicanálise
tradicional. Neste curso, ao mesmo tempo em que descobrimos a
ontologia e teleologia de Hannah Arendt, desvela-se a matriz do
pensamento de Gilberto, sua concepção de clínica, sua visão da
condição humana.
Santo Agostinho é considerado o primeiro pensador auto-reflexivo
rigoroso do Ocidente e Hannah Arendt, no seu doutorado, perplexa com
os acontecimentos mundiais de então (segunda guerra mundial, com todos
os seus horrores) se volta para este filósofo que se coloca a si mesmo
como questão e encontra no Amor transcendente uma resposta e uma
pacificação de sua alma. Tentarei enumerar alguns tópicos deste curso,
sem a pretensão de esgotar os inúmeros temas propostos por Gilberto ao
longo destas quatro aulas. O que se segue é uma exposição da leitura
que o professor nos oferece sobre o diálogo destes dois pensadores.
É importante para a clínica a noção paradoxal de nascimento e morte
explicitada por Hannah Arendt, como fenômenos que acontecem em
comunidade. Isto significa que nascer e morrer não se esgotam enquanto
fenômenos meramente biológicos, mas acontecem num mundo criado e
estabelecido pelos homens. Mas, paradoxalmente, ao nascer uma criança,
se reinicia a história do mundo. Ou seja, a criatividade é ontológica.
Esta posição se articula com a posição winnicottiana que afirma que a
originalidade, o gesto, nasce da tradição e é uma faculdade humana que
jamais se perde, pois é ontológica, inerente ao Ser do homem.
Desta forma se introduz a reflexão sobre o lugar do Outro na vida
humana e Hannah Arendt irá pesquisar como Santo Agostinho trabalha a
questão do amor e do desejo. Com este último podemos perceber que o
desejo não é um fenômeno derivado (como quer a Psicanálise), mas o
desejo é ontológico, é um movimento, um anseio em direção a algo bom,
o que já implica a idéia da instabilidade do ser humano que é, assim,
um ser em trânsito.
Gilberto nos mostra que Santo Agostinho define o amor como uma forma
de desejo que, dentro da temporalidade, se coloca como anseio de se
apropriar deste algo bom: seja por recuperação do que já se teve ou
alcançando o que ainda não se tem. Mas o problema é que este desejo de
posse implica o medo: medo de perder, medo de não alcançar, que remete
de novo o homem à instabilidade, que por sua vez gera o movimento.
Agostinho se volta para a questão última do amor como anseio de
superação do medo, do isolamento e da instabilidade, o que implica a
superação da própria temporalidade. A vida, na temporalidade, é um
entre: entre o não mais e o ainda não. Conforme Gilberto, Agostinho
afirma que o homem é aquilo que ama e, para ele, quem não ama não é
nada. E, portanto, adverte, é necessário ter cuidado em relação ao que
se ama, no sentido de estar atento ao que se ama. O que o homem ama,
onde põe a atenção, ali está o seu destino. Agostinho encontra duas
formas de amor que se diferenciam, dependendo de qual seja o nosso
objeto de amor: cupiditas e caritas.
Cupiditas é o amor em relação às coisas do mundo inseridas na
temporalidade (amor que tende à reedição do prazer originário, que
tende à equação simbólica, dentro da linguagem psicanalítica), amor
que visa posse e que perde a transcendência do objeto. Esta perda tem
implicações graves: pode levar à barbárie, à banalização do mal, a
situações clínicas em que se diagnostica o paciente em termos de
patologias, à violência – enfim, à perda da ética. Como este é o amor
que tende à apropriação e manipulação do objeto amado, tem como seu
corolário o medo da perda e a instabilidade.
O anseio por superação do medo não se resolve em cupiditas. Se
trabalharmos clinicamente apenas em função do desejo, tal como a
Psicanálise tem colocado, permanecemos no horizonte de cupiditas. Em
busca de um amor que escape à limitação de cupiditas, que nos
fragmenta e dispersa, Agostinho introduz o conceito de amor enquanto
caritas.
Caritas, nos diz Gilberto, é o amor que aceita a transcendência do
objeto, ou seja o amor ao eterno, que não implica apropriação ou
fechamento do desejo. Estamos perto de Lévinas ao falar da face
transcendente do Outro e de Bion, quando este fala da realidade não
sensorial. Este é um amor que se volta para a memória da origem e para
o Real (visível apenas por suas transformações). Caritas implica um
olhar sobre o mundo em que todo objeto é símbolo e há sempre algo para
além dele. Este símbolo jamais se detém em si mesmo (Safra, primeira
aula sobre Hanna Arendt e Santo Agostinho - 19-3-2002).
A noção de objeto transicional, aquele que resiste à função
socialmente convencionada para ele, pode ser incluída na dimensão de
caritas. Assim como o amor materno, enquanto devoção, que pode
perceber na criança um Outro. Caritas possibilita o EU SOU, a
integração do homem e, portanto, sua cura da dispersão. Desta forma,
Agostinho introduz a idéia de Deus como aquele que É, que contém o
Ser, o eterno, enquanto nós apenas participamos do ser e o recebemos
como oferta, como graça, em total gratuidade. Podemos amar o
transcendente porque o recebemos como oferta, há um Outro dentro de
nós mesmos. Pelo amor ao transcendente, ao que está fora do tempo, me
junto a Deus e supero o isolamento e o medo. E este amor me remete à
memória do originário, que me recupera da dispersão. A memória, a
história, nos possibilita o retorno ao conhecido: guardamos em nós o
gesto que nos criou, a presença do criador, um Outro em nós mesmos.
Seguindo Gilberto, esta memória ontológica ao mesmo tempo dá sentido
ao nosso projeto do futuro e permite que compartilhemos com os outros
homens uma mesma origem. Esse originário que nos une a todos é a fonte
de uma ética possível e do que geralmente se conhece por amor ao
próximo. A gratidão pela origem, nessa visão, é o que nos salva do
medo da morte, da instabilidade e, neste ponto, Hannah Arendt se
distancia de Heidegger, para o qual o que define o homem é ser um ser
frente à morte. Da mesma forma, o perdão se faz necessário e possível:
donare per = dar totalmente , tem a mesma raiz da gratuidade, da
gratidão e da graça. Apenas por curiosidade, o termo perdão, segundo
um estudo de Antoni Bosch- Veciana, intitulado Perdoar, surgiu pela
primeira vez em uma tradução latina de uma fábula de Esopo e o podemos
encontrar na linguagem dos trovadores: amarai donc in perdos, isto é,
amarei em troca de nada, gratuitamente (...).
Todos esses elementos nos ajudam a recolocar a clínica contemporânea
para além da dimensão do psiquismo e desenhar uma clínica voltada para
o Ser e para a dimensão ontológica que, sem dúvida, responde à nossa
demanda por uma ética compatível com o respeito, a liberdade, a
comunidade de destino.