Oi João,
Você tem razão. O autor não é lógico e não aprofunda a discussão. Seu objetivo não é escrever para lógicos, nem mesmo para filósofos, mas para o público em geral. A petição de princípio vinculada ao argumento ontológico não é tão direta e evidente quanto ele dá a entender, mas, para mim, está lá sim.
O argumento ontológico é o melhor argumento que conheço em favor da existência de Deus. É, realmente, quase convincente. A única falha dele que percebo é exigir, de modo quase singelo, sutil mesmo, que seja concebível O SER MAIS PERFEITO CONCEBÍVEL e que a EXISTÊNCIA é uma das perfeições. São estas exigências que, se aceitas, envolvem, a meu ver, uma petição de princípio escondida.
Quando consideramos o Deus monoteísta judaico-muçulmano-cristão, e o que normalmente se pensa sobre ele, parece razoável aceitar que é concebível que ele seja definido como o ser mais perfeito concebível, e também não parece perigoso conceder que a existência possa ser considerada uma perfeição. Eu não preciso acreditar em Deus para aceitar estes dois pontos. Eles parecem razoáveis até para ateus.
Mas será mesmo concebível o ser mais perfeito concebível? Vou fazer uma pergunta diferente, mas muito parecida. Você acha que o maior número real menor do que um é concebível? Quando eu falo no maior número real menor do que um você entende minhas palavras. Elas não são completamente assignificativas. Mas você conhece os números reais suficientemente bem para saber não apenas que não existe o maior número real menor do que um, você sabe também que um número real assim definido não é nem concebível! Afinal o que seria, para um número, ser concebível mas não existir? O que é concebível deveria ser logicamente possível, mas eu não acredito que haja matemática modal, embora já tenha ouvido falar dela, entre filósofos, não entre matemáticos. A matemática é necessária. Em matemática não há diferença entre o possível, o necessário e o real. Se só o possível pode ser concebido, então tudo o que é concebível em matemática, além de possível, ocorre, ou seja, é também real e, inclusive, necessário.
Mas voltemos a Deus. Quando eu defino Deus como o ser mais perfeito concebível, acreditando ou não na existência de Deus, você também entende minhas palavras. Elas não são completamente assignificativas. Então parece bastante razoável admitir que tal ser seja concebível. Mas pode ser que esta admissão nos comprometa de um modo mais forte do que gostaríamos! Eu acho que é aqui que mora a petição de princípio escondida. Afinal Deus, assim como as entidades matemáticas, parece ser necessário. Pelo menos de acordo com as duas premissas do argumento ontológico, Ele é. Se Ele é o ser mais perfeito concebível e se a existência é uma perfeição, Ele existe e não poderia não existir. Se Ele existisse, mas pudesse não ter existido, Ele seria menos perfeito, no que concerne a existência, do que o número 7, que existe e não poderia não existir. Mas se Ele é menos perfeito que o número 7 em algum aspecto, Ele não é o ser mais perfeito concebível, afinal eu poderia conceber um ser idêntico a ele em tudo e que ainda fosse necessário, que existisse e não pudesse não existir.
Então, aceitar as aparentemente inofensivas premissas do argumento ontológico envolve uma certa petição de princípio simplesmente porque Deus é necessário, e para entidades necessárias “concebilibidade” (capacidade de ser concebível) e existência (realidade) são a mesma coisa. É o mesmo tipo de petição de princípio envolvida na regra de eliminação da conjunção. Não é uma falácia lógica formal, é apenas uma falácia argumentativa.
Mas aí, um defensor do argumento poderia reagir e me dizer: bem, você está dizendo que o argumento ontológico ao invés de provar a existência de Deus prova a sua incocebilibidade. Mas se há bons argumentos para que “o maior número real menor do que um” ou “o círculo quadrado” sejam inconcebíveis, qual é o argumento que você me daria para a inconcebilibidade de Deus? Não há! Ao invés de provar a inconcebilibidade de Deus o argumento ontológico continua provando, de fato, a sua existência, justamente porque podemos assim concebê-lo.
De fato, o ônus de argumentar pela inconcebilibidade de Deus é meu. E eu argumentaria assim: Deus, definido como o ser mais perfeito concebível, é tão inconcebível quanto é inconcebível o maior número natural, ou o maior número ordinal. Não há motivos para que eu não possa conceber as perfeições, ou pelo menos algumas delas, como ilimitadas. Suponha que tamanho seja uma “perfeição”. Então não há um tamanho máximo concebível. A qualquer tamanho concebível, posso conceber, a partir dele, um tamanho maior. Bondade, prudência, poder, tamanho, inteligência, existência,… é muito pouco plausível que TODAS as “perfeições” tenham que ser limitadas. Há “perfeições”, inclusive, que seria contraditório considerá-las limitadas. Pense na resposta a esta pergunta:
Deus é poderoso suficiente para criar uma pedra tão pesada que nem ele mesmo pudesse carregar?
Tanto a resposta afirmativa quanto a negativa mostram que Deus não é o ser mais poderoso concebível. Se ele não consegue criar a pedra, há algo que ele não consegue fazer, e portanto é concebível alguém mais poderoso que ele. E se ele consegue criar a pedra, há algo que ele não consegue carregar, e portanto é concebível alguém mais poderoso que ele.
Portanto, não é concebível que haja “um ser mais perfeito concebível”, simplesmente porque podemos conceber perfeições ilimitadas, tanto quanto são ilimitados os números naturais ou os ordinais ou os reais menores do que um.
A força do argumento ontológico está em sua aparente cogência, pois a conclusão parece dizer bem mais do que as premissas, mas a circularidade viciosa do argumento ontológico está no fato de que esta cogência é apenas aparente, pois concebilibidade e realidade (existência) são a mesma coisa para seres necessários.
Bem, falei demais e esqueci de Lula e Dallagnol. Isso comprova que minha mensagem não erra off-topic.
Saudações,
Daniel.