Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN

200 views
Skip to first unread message

Eduardo Ochs

unread,
Dec 8, 2021, 3:14:15 AM12/8/21
to logi...@dimap.ufrn.br
Meio off-topic, mas lá vai.
Pessoas da UFRN, como está sendo a repercussão disso na universidade
de vocês?

https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/construcao-do-reino-de-deus-novo-curso-da-ufrn-choca-estudantes-de-medicina-25309373
https://archive.md/TeS69

[[]],
E.

Carlos Augusto Prolo

unread,
Dec 8, 2021, 3:51:08 AM12/8/21
to Eduardo Ochs, logi...@dimap.ufrn.br
Oi Eduardo.
Nunca tinha ouvido falar sobre isto.
Confesso que fiquei um pouco curioso, li a reportagem, e vi que o nome do professor não me era desconhecido. 
Ele é médico, professor da UFRN, atua como psiquiatra da UNIMED aqui em Natal, e sei que é ligado ao Espiritismo.
No profile dele no sistema de registro acadêmico da UFRN não diz nada relativo ao assunto em tela.
Não vi problema em princípio na disciplina, mas poderia talvez me pronunciar melhor vendo a ementa.
Só que minha curiosidade não subiu ao ponto de achar que deveria dispender mais tempo com isso por enquanto além de dar essa breve resposta.

Abraço,

Prolo



--
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.
Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/CADs%2B%2B6hv5Ts2t%3DLUCVjp-a46O7MUh13L7k5L1kFvwyWtU1itSQ%40mail.gmail.com.

Joao Marcos

unread,
Dec 8, 2021, 10:53:46 AM12/8/21
to Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Eu também não sabia disso ainda, mas ao olhar o perfil acadêmico do
brilhante colega eu não me espanto nada:
https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1174356

%%%

Algumas respostas possíveis à sua provocação:

(1) A resposta do Conselho Federal de Medicina: isso deve ficar "a
critério do médico", que deve apenas obter "o consentimento livre e
esclarecido do paciente ou dos familiares".
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4
Tudo há de estar sempre baseado, afinal, "na autonomia do médico e na
valorização da relação médico-paciente". Troque "paciente" por
"discente", acima.

(2) A receita da médica alergologista à qual levei minha filha no mês
passado: "dê estas balinhas homeopáticas a ela; elas não fazem mal
nenhum".

(3) Este estudante mencionado na reportagem deve ser fake. Eu próprio
me chocaria, de fato, em descobrir que alguém aqui na UFRN (docente ou
discente) "se choca" com a mistura entre ciência e religião.

%%%

A ementa da disciplina "MEDICINA, SAÚDE E ESPIRITUALIDADE" é esta:

OBJETIVOS GERAIS
Integrar de forma compreensiva os conhecimentos técnicos científicos
na área da saúde com os conhecimentos teóricos da filosofia espiritual
conhecidos nas várias religiões. Contribuir e ampliar o ensino
universitário discutindo os vários conceitos religiosos e suas
relações na saúde como instrumento terapêutico.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1. Promover prioritariamente entre os estudantes do curso médico uma
apreensão mais ampla da saúde na sua manutenção e recuperação. 2.
Capacitar o futuro médico em atender melhor o paciente, interpretando
os fundamentos da fé raciocinada expressa na individualidade da pessoa
humana. 3. Seguir os princípios científicos através de uma abrangência
eclética, valendo-se dos conceitos abordados durante o curso.
CONTEÚDO: Utiliza-se como conteúdo, temas que envolvem assuntos
relacionados a medicina, saúde e espiritualidade, abrangendo conceitos
da física newtoniana e quântica, a conceituação de Deus na visão
religiosa, a anatomofisiologia multidimensional, a medicina
ayurvédica, a função do pensamento, das emoções e sentimentos como
instrumentos da cura da alma, a instrumentalização terapêutica da
prece e meditação, cuidados do ser como enfermo, os aspectos éticos da
humanização na prática médica. Competências e Habilidades: Capacitar o
aluno em atender seus pacientes com humanismo e ética.

Já foram oferecidas 22 turmas desde 2015, nas quais estiveram
matriculados mais de 500 alunos. Na última turma, as 50 vagas não
comportaram as 73 solicitações de matrícula que foram feitas. O
público é variado: estudantes de Medicina, Enfermagem, Farmácia,
Fonoaudiologia, Nutrição, Odontologia e Ecologia. Uma estudante de
Engenharia Química teve a sua solicitação de matrícula indeferida. No
semestre anterior a procura foi menor, mas a amplitude de cursos
atendidos maior: havia também estudantes de Direito, Fisioterapia,
Saúde Coletiva, Filosofia, e Letras.

%%%

Por fim, note-se que é simplesmente falsa a alegação de que a
disciplina "não utiliza dinheiro público".

JM

PS: Alinhado à iniciativa de internacionalização da UFRN, proponho que
a disciplina seja oferecida na língua dos anjos.


On Wed, Dec 8, 2021 at 12:14 AM Eduardo Ochs <eduar...@gmail.com> wrote:
>
> --
> Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
> Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.
> Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/CADs%2B%2B6hv5Ts2t%3DLUCVjp-a46O7MUh13L7k5L1kFvwyWtU1itSQ%40mail.gmail.com.



--
http://sequiturquodlibet.googlepages.com/

Walter Carnielli

unread,
Dec 8, 2021, 11:20:43 AM12/8/21
to Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Colegas,
Vejo que isso é um passo para o criacionismo. Tramitam na Câmara
diversas propostas dispondo da obrigatoriedade do ensino religioso,
da Bíblia ou do criacionismo nas escolas, nenhum (que eu saiba) ainda
rejeitado.

-Senador Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus
(PRB) , discurso em 2009 no
Congresso defendendo o direito a ensinar o criacionismo

- Marco Feliciano, pastor da Assembleia de Deus,Partido Social
Cristão (PSC); PL 8099/2014: "Ficam inseridos na
grade curricular das Redes Pública e Privada de Ensino, conteúdos
sobre Criacionismo".

- Deputado Jefferson Campos, pastor da Igreja do Evangelho
Quadrangular (PSD): PL 5336/2016 "incluir a
‘Teoria da Criação’ na base curricular do Ensino Fundamental e Médio".


Segundo a Bancada da Bíblia, a teoria do Big Bang está correta, e
nao precisa de mais nada, porque a Biblia disse
"Faça-se se a luz "...

Quanto à sugestão do João de usar a língua do anjos , pode se também
ensinar "em línguas",

Abraços de Trento, com bastante neve,
Walter
> Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/CAO6j_Lj1iW2X7qzDBa20dRJPC9ffSg3VQad-nzb6tqXuMyMV0g%40mail.gmail.com.



--
===========================
Walter Carnielli, Professor
Centre for Logic, Epistemology and the History of Science and
Department of Philosophy
University of Campinas –UNICAMP
13083-859 Campinas -SP, Brazil
Phone: (+55) (19) 3521-6517
Institutional e-mail: walter.c...@cle.unicamp.br
Website: http://www.cle.unicamp.br/prof/carnielli

Julio Stern

unread,
Dec 8, 2021, 12:06:16 PM12/8/21
to Walter Carnielli, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Caros: 
No caso em tela, sou menos radical. 

-  Sou absolutamente contrario a ter disciplinas deste carater como Obrigatorias no curriculo.  
-  Todavia, creio ser aceitavel ter disciplas Optativas sobre "Conhecimentos Alternativos". 

Na minha opiniao, erigir barreiras muito rigidas eh um tiro que pode sair pela culatra. 
(argumento do pendulo Kantiano) 
Acho melhor abrir um espaco de debate (nunca em carater obrigatorio) 
e submeter os conteudos ao debate e argumentacao critica. 

Tudo de bom, 
---Julio Stern 
  


From: logi...@dimap.ufrn.br <logi...@dimap.ufrn.br> on behalf of Walter Carnielli <walt...@unicamp.br>
Sent: Wednesday, December 8, 2021 11:20 AM
To: Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA <logi...@dimap.ufrn.br>
Subject: Re: [Logica-l] Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
 

Joao Marcos

unread,
Dec 8, 2021, 12:14:48 PM12/8/21
to Julio Stern, Walter Carnielli, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Não entendo bem a sua sugestão, Julio. Quem vai "debater" o conteúdo
da disciplina (cura quântica e outras charlatanices)? Os alunos?!

Eu diria que precisamos ser menos lenientes e fazer uma força maior
para não permitir que as nossas instituições participem disso.

[]s, Joao Marcos
> --
> Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
> Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.
> Para ver essa discussão na Web, acesse https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/CPYP284MB1431407F3EC9DA17EA4BC3C8B66F9%40CPYP284MB1431.BRAP284.PROD.OUTLOOK.COM.



--
http://sequiturquodlibet.googlepages.com/

Manuel Doria

unread,
Dec 8, 2021, 3:25:40 PM12/8/21
to Joao Marcos, Julio Stern, Walter Carnielli, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Esses temas podem ser discutidos abertamente como parte do conteúdo de matérias de critical thinking, antropologia da religião, psicologia social ou metodologia científica.

Paul Boghossian trazia como palestrantes convidados para seus cursos de demarcação do conhecimento científico em filosofia da ciência proponentes da teoria da terra plana e de outras posições altamente heterodoxas, em diferentes graus de plausibilidade e sofisticação.

[ ]'s

Walter Carnielli

unread,
Dec 8, 2021, 3:35:15 PM12/8/21
to Manuel Doria, Joao Marcos, Julio Stern, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Oi Manuel,

eu não estou  de acordo com isso não  
Dar palanque para a pseudo-ciência faz com que se argumente que se trata de una "discussão acadêmica " ou "divergência científica ", quando claramente  não é  isso.

Abs,
Walter 


--
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.

Joao Marcos

unread,
Dec 8, 2021, 3:38:33 PM12/8/21
to Manuel Doria, Julio Stern, Walter Carnielli, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
> Esses temas podem ser discutidos abertamente como parte do conteúdo de matérias
> de critical thinking, antropologia da religião, psicologia social ou metodologia científica.

Exato.

É importante deixar claro, não obstante, que, neste caso específico,
NÃO estamos falando de uma disciplina propondo o _debate_ sobre estes
temas. E aparentemente o momento de _debate_ sobre a própria *ementa*
da disciplina já passou, com a anuência dos demais professores do
curso de medicina tendo sido registrada.

> Paul Boghossian trazia como palestrantes convidados para seus cursos de demarcação do conhecimento científico em filosofia da ciência proponentes da teoria da terra plana e de outras posições altamente heterodoxas, em diferentes graus de plausibilidade e sofisticação.

Muito interessante!

[]s,
Joao Marcos

--
http://sequiturquodlibet.googlepages.com/

Manuel Doria

unread,
Dec 8, 2021, 6:48:47 PM12/8/21
to Walter Carnielli, Joao Marcos, Julio Stern, Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de LOGICA
Prezado Professor Walter, eu entendo o receio. Há várias críticas legítimas a esse tipo de abordagem.

Uma das muitas consequências indesejáveis desse tipo de exposição pode ser de alimentar, mesmo que inconscientemente, impressões de falsa equivalência epistêmica. Só por "dar o palanque para maluco falar".

O intuito de Boghossian não era o de fomentar um "anything goes"; diferentes pseudociências e ciências fronteiriças variam bastante em inúmeras dimensões. Por exemplo, algumas pseudociências como a teoria da informação complexa especificada de William Dembski exigem conhecimentos de ciência da computação teórica para serem endereçadas. No outro extremo, o terraplanismo pode ser refutado por um observador municiado com relativamente baixo conteúdo teórico - Aristóteles por exemplo deu ao menos dois exemplos de observações sem uso de instrumentos que permitiriam essa inferência de forma sólida.

Uma das muitas motivações (em minha opinião, nobres) de Boghossian era a de acostumar seus alunos a avaliar com responsabilidade e de forma sistemática a qualidade de argumentos mesmo quando as teses expressas provocam respostas viscerais intensas no agente - como o terraplanismo provoca na maioria das pessoas com mínimo de educação científica.

Muitas vezes nós rejeitamos tacitamente certas teses mesmo que não somos em última instância capazes de articular boas razões para compor um bom argumento para endereçar aos seus proponentes. Todos nós temos esses "pontos cegos" epistêmicos.

Julgo que esses casos extremos como terraplanismo também são um bom "sandbox" para testar novas propostas de ferramentas de critical thinking. Afinal, se elas são boas, parece ser esperado que elas irão funcionar bem com casos que são falsos com enorme confiança.

Um forte abraço.

Daniel Durante

unread,
Dec 9, 2021, 7:38:37 PM12/9/21
to LOGICA-L, eduardoochs
Oi Eduardo e colegas,

Nunca tinha ouvido falar deste curso. Não consigo ler o artigo do Globo. Tem um paywall.

Mas a ementa da disciplina "medicina, saúde e espiritualidade", que o João Marcos postou, me pareceu interessante. Pessoalmente, eu teria real interesse em cursar uma disciplina sobre medicina e espiritualidade, principalmente se ela fosse verdadeiramente pluralista no que tange à religião.

Antes da pandemia andei frequentando um grupo de estudos aqui do Depto de Filosofia da UFRN sobre os pensamentos indígenas brasileiros. A proposta não é antropologia, é filosófica mesmo. E é bem legal. Recomendo muito o livro "A Queda do Céu", do xamã yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert. Sem falar nos excelentes livros do Ailton Krenak.

A medicina "ocidental" acadêmica é ainda um luxo em muitos lugares do "Brasil profundo" e do raso também. Os passes, rezas, chás, impostação de mãos, promessas,... sempre estiveram lá, com os doentes e as doenças, muito antes da medicina chegar. E não vão embora quando as ambulâncias chegam. Em minha opinião, faz muito bem à universidade, aos médicos e demais profissionais interessados em saúde aprenderem um pouco sobre estas tradições, sob diversos aspectos, inclusive sob a perspectiva dos que a praticam e nelas acreditam.

Claro que eu não conheço este curso e não sei exatamente o que eles fazem. Mas enquanto ideia geral, me parece positivo. Afinal, a saúde é um conceito muito mais amplo do que aquilo que cabe na medicina e mesmo na biologia.

Saudações xamânicas,
Daniel.

Joao Marcos

unread,
Dec 9, 2021, 8:13:53 PM12/9/21
to Daniel Durante, LOGICA-L, eduardoochs
> Mas a ementa da disciplina "medicina, saúde e espiritualidade", que o João Marcos postou,
> me pareceu interessante. Pessoalmente, eu teria real interesse em cursar uma disciplina
> sobre medicina e espiritualidade, principalmente se ela fosse verdadeiramente pluralista
> no que tange à religião.

Boa, Daniel, então depois que você cursar a disciplina pode nos ajudar
a esclarecer os seguintes itens, abaixo.

> Seguir os princípios científicos através de uma abrangência
> eclética, valendo-se dos conceitos abordados durante o curso.

Gostaria de saber mais sobre o "ecletismo científico" que será seguido no curso.

> Utiliza-se como conteúdo, temas que envolvem assuntos
> relacionados a medicina, saúde e espiritualidade,
> abrangendo conceitos da física newtoniana e quântica,

Gostaria de saber quais os "conceitos da física newtoniana e quântica"
que serão abrangidos, e como.

> a conceituação de Deus na visão religiosa, a anatomofisiologia multidimensional, a medicina ayurvédica,

É, infelizmente o CFM já favoreceu faz tempo a inclusão das "Práticas
Integrativas e Complementares" no SUS.
https://aps.saude.gov.br/ape/pics
Discordo frontalmente, contudo, que isto seja pago com dinheiro público.

> a função do pensamento, das emoções e sentimentos como instrumentos da cura da alma, a instrumentalização terapêutica da prece e meditação,

Muito legal tudo isso, mas não funciona. Ou há estudos científicos
sobre essas coisas?

O(s) inexistente(s) currículo(s) do(s) nosso(s) colega(s) envolvidos
nesta disciplina não ajudam a passar uma boa impressão da empreitada
toda.

Noto, de todo modo, que a "abertura religiosa" na UFRN é bastante
conhecida. Temos um "templo ecumênico" no câmpus, financiado com
dinheiro público, temos professores que publicam livros sobre "os
dinossauros e a Bíblia", e cansei de ver a estrutura do câmpus ser
oficialmente emprestada aos fins de semana para encontros de grupos
religiosos. Mas tudo isto está errado, fora de lugar.

[]s, JM

Eduardo Ochs

unread,
Dec 10, 2021, 12:19:44 AM12/10/21
to Daniel Durante, LOGICA-L
Oi Daniel!

Eu consigo imaginar disciplinas chamada "medicina, saúde e
espiritualidade" que seriam interessantíssimas... a primeira imagem
que me vem à cabeça é um curso dado por um médico que fez formação
complementar em Homeopatia (ou: Homeopatia-no-sentido-Eduardo, que é
algo completamente diferente de Homeopatia-no-sentido-João-Marcos) e
que tenha um pouquinho de noção de Antropologia... e aí esse médico
mostraria vários modelos mentais de como os seres humanos funcionam,
mostraria várias noções diferentes de "saúde" e "doença", mostraria os
pontos cegos que cada grupo aponta nas visões de ser humano, saúde e
doença dos outros grupos, e poria todo mundo pra estudar e discutir...

Só que tem alguns grupos que eu _acho_ que têm um modelo mental tão
ruim de como os seres humanos funcionam que eu fico achando que
pessoas desses grupos não têm como ter a estrutura mental necessária
pra dar um curso como o acima.

Um dos links que eu mandei no meu post inicial foi esse aqui,

https://archive.md/TeS69

que leva pra uma versão despaywallizada do artigo d'O Globo, e esse
trecho aqui do artigo. Olha esse trecho:

"A Universidade tem a vocação institucional da busca do conhecimento
em qualquer vertente que ele se apresente. Um dos conhecimentos mais
significativos para a humanidade, foi aquele trazido por Jesus, que
se dizia filho de Deus e comprovava isso com a produção de fenômenos
que estasvam acima da capacidade humana do seu tempo e até os dias
atuais, conforme relatos aceitos majoritariame pela maioria das
pessoas que é informada.

Ele explicava que veio ao mundo a pedido do Pai (Deus), assumir a
personalidade do Cristo (Messias, Salvador) para ensinar a
humanidade sobre o Amor, e a partir daí construir a família
universal que seria a base para a construção do Reino de Deus, uma
sociedade civil harmônica e sintonizada com a vontade de Deus.

A importância de sua vida foi importante, a humanidade reconhece,
pois dividiu o calendário em antes e depois do seu nascimento, nos
fatos pré e pós Cristo.

Muitas teses, livros, religiões foram desenvolvidas a partir dessas
circunstâncias, que pretendem envolver o mundo e tornar realidade o
Reino de Deus, a partir da Reforma Íntima feita por cada pessoa em
seu próprio coração, tornando-se um cidadão do Reino de Deus, mesmo
que esse reino não esteja ainda vigente na sociedade."

Esse trecho ativa vários gatilhos meus. Pra mim a frase "a família
universal que seria a base para a construção do Reino de Deus, uma
sociedade civil harmônica e sintonizada com a vontade de Deus" soa
como algo só pode ser dito por alguém que acha que indígenas e LGBTs
são não só pessoas doentes como maçãs podres que contaminam as outras
maçãs do cesto...

[[]],
Eduardo Ochs

Cassiano Terra Rodrigues

unread,
Dec 10, 2021, 3:51:26 AM12/10/21
to LOGICA-L, eduardoochs, LOGICA-L, dura...@gmail.com
Camaradas, boas noites.

Vou deixar aqui dois enlaces para vossa apreciação, antes de fazer algumas considerações. Perdoem-me a loquacidade.
Consideração: 0,0000003% da classe médica nacional não deve ser bolsonarista, o que, convenhamos, é um bom sinal dadas as circunstâncias.
Perdoem o sarcasmo, mas adoro perguntas retóricas: Como chegamos a Bolsonaro? #mistérioprofundo
Agora, deixando de lado apenas momentaneamente o exercício de cinismo salutar à sanidade mental, é preciso lembrar que o termo pseudociência já foi criticado por pressupor um sentido verdadeiro e único de ciência, o q, como se sabe, leva a dificuldades de maior monta. Eu, particularmente, não gosto da expressão, mas é a q se usa. Não tenho outra melhor para oferecer. Peirce usava "sham reasoning" para contrastar com "inquiry" (não apenas ciência, qq inquiry). Na inquiry, a conclusão é adotada após se raciocinar, por se ter raciocinado; no sham reasoning, a conclusão é adotada antes de raciocinar e o raciocínio é posteriormente usado apenas para justificar a conclusão previamente aceita. Como a racionalidade científica emerge do senso-comum, a relação é complicada.
Mas, penso, o ponto mais importante não é esse, mas q os negacionismos atuais - o científico, o histórico e todos os outros q conseguirem identificar - são um sintoma da modernidade reflexiva, conforme a expressão q tomo do professor australiano Andy Blunden, isto é, são produzidos como efeitos de uma cultura de massificação do saber formal. Pela primeira vez na história, o século XX viu surgir uma massa de gente letrada, altamente especializada e intelectualizada, a par e em consequência da massificação da alfabetização (formal ou literal). Até o século XIX, a maior parte da população mundial não só morria de cólera (ou outras doenças) como as pessoas morriam analfabetas, sendo a literatura e a cultura científica reservada às classes dominantes. O Gattopardo de Lampedusa, p.ex., era astrônomo. Aquelas fotos da (ou das?) conferência que reuniu Einstein, Marie Curie, Poincaré e outros, no começo do século XX, é bem ilustrativa: quem fora dali já tinha ouvido falar em átomo, relatividade, radiação etc.? Hoje em dia, a comunidade científica não só se expandiu além de qualquer critério facilmente identificável como tornou obsoleto o ideal de esclarecimento q a filosofia um dia tomou para si. A nossa modernidade produziu um ceticismo racionalista altamente qualificado para questionar a si própria e os negacionismos são rebentos desse fenômeno social, um filho não reconhecido do Iluminismo (não diria bastardo; acho q bastardos são os outros filhos, reconhecidos, dentre os quais a ideia de democracia liberal). A reação romântica ao iluminismo tem muito desse ceticismo, aliás. O recurso a uma transcendentalização do humano é velho conhecido dos jovens místicos, desde mais ou menos Rudolf Steiner; mas a ideia remonta pelo menos a Locke e se vê em livros, filmes, séries etc., e eu a resumo assim: é da liberdade de cada um decidir viver segundo a norma da sociedade política ou não; quem não quiser, pode voltar ao estado de natureza. O abandono da civilização, no entanto, é artificial, pois não apenas as bombas cairão sobre quaisquer cabeças em caso de guerra, como no estado de natureza também tem gente, de forma que também tem normas (a não ser q mandem matar e botar fogo em tudo, o q sempre é uma opção, como é público e notório). Sobre esse ponto da idealização de uma vida fora dos padrões de racionalidade e cientificidade instituídas e fuga da civilização, a quem se interessar, sugiro a leitura de um livro muito bom, Jon Savage, A Criação/Invenção da Juventude, não lembro bem como traduziram. Mas eu poderia lembrar tb a história do Chris Supertramp, personagem real do livro e do filme homônimos Into the wild; ou ainda o garoto urso, Timothy Treadwell, cuja trágica história foi filmada por Werner Herzog. Num mundo em que as instituições cada vez mais se mostram extorsivas e a força de trabalho vale cada vez menos, não me espanta q mais gente com mais informação e sofisticado grau de educação formal tenda a recusar a civilização com base em argumentos de excepcionalidade individual (ouvi uma vez de uma mãe: "eu é q sei o que é melhor para o meu filho, e não vc ou a ciência"). Pois reencontrar uma essência natural que dará sentido à vida é mesmo uma ideia muito atraente. Resolveria nossos problemas, não precisariamos mais lutar contra as injustiças sociais ou contra o peleguismo, o fascismo, o sexismo nosso de cada dia etc. Isso dá muito trabalho, tem de existir outro jeito, né non? #sqn como se diz atualmente. Uma vez, um estudante q se dizia "libertário" me perguntou, com cara de espanto, "Então o senhor (quase caí de costas, fui promovido a senhor!) acredita que as massas são capazes de se autogovernar?" Respondi com o maior clássico dos professores e disse "Depende." ao q emendei outra pergunta: "Vc faz parte das massas?". Pois é, esse é o nosso problema, ou somos parte da matrix e não existe pílula azul, verde, vermelha... ou somos deus ex machina e aí não tem problema, basta sentar e ver o espetáculo. Eu, infelizmente, tenho q trabalhar para pagar aluguel, ainda não virei gratiluz, ninguém me ofereceu pílula nenhuma (mentira, já, mas não cabe aqui o contexto).
A par esse fenômeno de ceticismo racionalista voltado contra a própria fonte do ceticismo epistêmico, a razão, ou as instituições oficiais que a comunicam, bem entendido, há ainda o populismo contemporâneo que faz política com estilo, ou melhor, o populismo atual é um estilo retórico de fazer política. Sobretudo, é uma retórica q intenciona causar efeitos na massa populacional conforme a meta política pretendida. Essa retórica é bem simples: basta exaltar as virtudes "naturais" do "povo" e contrapô-las às da "elite", ou qq outro inimigo imaginário, para fazer os sequazes se oporem ou à própria sociedade ou ao "sistema". Essa retórica é mobilizada com radicalismo toda vez q quem a mobiliza está perdendo no jogo eleitoral (vou me eximir de dar exemplos, para não ferir sensibilidades, sobretudo a minha). Como é possível constatar facilmente, funciona bem; pode ser falso, fake, ou sei lá o q, mas é persuasivo. Machiavelli detectou bem o problema: o príncipe é sobretudo aparência, nada é mais importante do que parecer ser. Ser ou não ser, deixemos para Hamlet.
Não posso terminar sem deixar de observar mais uma coisa. Em nome de um realismo que naturaliza a ordem social e econômica, as pautas transformadoras são obliteradas por esse estilo populista em favor de pautas mais candentes, de forma a esvaziar todo teor transformador do ressentimento social, o qual é canalizado para alvos inócuos à manutenção dessa mesma ordem. Outro dia vi um vídeo antigo de Paulo Maluf, no Roda Viva, dando aula de democracia e saúde pública para uma bancada de neo-yuppies que já obtiveram fama municipal. O tema era a proibição de fumar em lugares públicos e fechados, qdo Maluf era prefeito de SP, lá em 1990 e bolinhas. Cada um que escolha qual exemplo mais atual pode ser invocado. Para lembrar Lampedusa mais uma vez, tudo muda, mas permanece o mesmo. Na verdade, o sentido da frase é mais cínico e mais certeiro: para que tudo fique na mesma, é preciso que tudo mude.
Saudações a quem luta. Ou não.
cass.

Daniel Durante

unread,
Dec 10, 2021, 2:42:22 PM12/10/21
to LOGICA-L, eduardoochs
Colegas,

Realmente, Eduardo, lendo a descrição do curso que você enviou, e o texto do link que consegui abrir, devo reconhecer que este curso não parece fazer o que o título da disciplina (medicina, saúde e espiritualidade) e sua ementa sugerem.  Não parece haver qualquer pluralismo ali. Perdi a vontade de cursar 🙂 e entendo a reação que tem causado. Mas resta a pergunta: a disciplina optativa e a ação de extensão a ela vinculada são ou não aceitáveis em uma universidade pública?

Essa pergunta me leva ao texto do Cassiano. De fato, Cassiano, a constelação familiar é bem esquisita e eu não tenho qualquer simpatia por esta prática. Sou muito mais simpático aos passes e as benzedeiras de bairro. Mas eu não sei se o machismo do alemão do século XX que a inventou é muito diferente do machismo do austríaco do século XIX que inventou a psicanálise. Aliás, existe alguma psicoterapia cognitiva que não seria classificada de pseudociência? Então vamos substituí-las todas por drogas? Vamos "medicalizar" a psiquiatria e acabar com terapias cognitivas? Afinal, as drogas podem ser testadas em arranjo experimental duplo-cego e não são pseudociência.

Não vejo essa tendência (que é vigente) como avanço, mas como retrocesso. Nem todos os nossos problemas cabem nos parâmetros da metodologia científica materialista. Aliás, muito poucos cabem. O próprio caso das vacinas da Covid é um bom exemplo. Desenvolver e produzir vacinas absurdamente eficientes foi essencial, mas não resolve o problema. É preciso aplicar as vacinas. É preciso vencer o negacionismo de parte da população de países ricos, é preciso vencer a desigualdade global e fazer a vacina chegar em países pobres. Sem um certo "ecletismo científico", e aqui eu respondo (um pouco) ao João Marcos, que eu chamaria de "abordagem interdisciplinar", a gente não resolve nada.

Um dia desses, eu perguntei para alguns colegas cientistas do Centro de Biociências aqui da UFRN se o bicho dentro de um ovo de pato, antes de nascer, é um pato ou não é um pato. Eles desconversaram, deram nomes técnicos para este "bicho", mas evitavam responder se a coisa com nomes técnicos era ou não um pato. Pressionados, alguns responderam sim e outros responderam não. Meu ponto aqui é que não há metodologia científica naturalista que leve a uma resposta incontroversa sobre se e quando o bicho dentro de um ovo de pato, antes de nascer, é um pato ou não é um pato. E isso não é um problema ou falha da ciência atual. É um limite. Se isso acontece com esta minha pergunta, que é infantilmente simples, imagina então quando a gente pensa sobre todas as questões muito mais complexas ligadas à saúde. Seria muita ingenuidade achar que todas elas têm respostas alcançáveis via metodologia científica naturalista. Não têm.

O problema é que sempre vão haver respostas divergentes e desacordos para estas questões cruciais que escapam à objetividade empiricamente mensurável da ciência. Vendo melhor a tal disciplina da UFRN, percebo que discordo da abordagem e da proposta. Mas tenho dificuldade de me posicionar contrário à aceitabilidade de tal disciplina e da ação de extensão. Na verdade, não sei.

Saudações,
Daniel.

Em quarta-feira, 8 de dezembro de 2021 às 00:14:15 UTC-3, eduardoochs escreveu:

Joao Marcos

unread,
Dec 10, 2021, 3:01:49 PM12/10/21
to Daniel Durante, LOGICA-L, eduardoochs
> Um dia desses, eu perguntei para alguns colegas cientistas do Centro de Biociências aqui da UFRN se o bicho dentro de um ovo de pato, antes de nascer, é um pato ou não é um pato. Eles desconversaram, deram nomes técnicos para este "bicho", mas evitavam responder se a coisa com nomes técnicos era ou não um pato. Pressionados, alguns responderam sim e outros responderam não. Meu ponto aqui é que não há metodologia científica naturalista que leve a uma resposta incontroversa sobre se e quando o bicho dentro de um ovo de pato, antes de nascer, é um pato ou não é um pato. E isso não é um problema ou falha da ciência atual. É um limite. Se isso acontece com esta minha pergunta, que é infantilmente simples, imagina então quando a gente pensa sobre todas as questões muito mais complexas ligadas à saúde. Seria muita ingenuidade achar que todas elas têm respostas alcançáveis via metodologia científica naturalista. Não têm.

Esse é um bom exemplo de como precisamos de mais e melhor Filosofia, e
Filosofia **cientificamente informada** (claim: a Filosofia que ignora
inteiramente os "progressos da Ciência" está fadada à irrelevância),
justamente para sermos capazes de _fazer perguntas melhores_.
Perguntas "infantilmente simples" às vezes são divertidas mas também
bastante ruins, e precisam ser bem melhor trabalhadas para se tornarem
respondíveis (e, em alguns casos, não há o que fazer senão abandonar
as ditas perguntas, por serem irrecuperavelmente mal desenhadas).

Aqui um exemplo de um texto em que um colega nosso, já mencionado
aqui, faz apenas perguntas ruins, mal-feitas, e parte de pressupostos
que não são partilhados pelo cientista (coisas como "a fé na indução")
para tentar colocar o cientista "no canto do ringue":
https://www.defesadafe.org/single-post/inducao
Boas análises filosóficas, ou terapias que sejam, são bem-vindas.
Essa escuridão precisa de luz.

[]s, JM

--
http://sequiturquodlibet.googlepages.com/

Marcelo Finger

unread,
Dec 10, 2021, 3:02:25 PM12/10/21
to Daniel Durante, LOGICA-L, eduardoochs
Oi Daniel.

Gostei do seu argumento, e emendo uma pergunta.

Quando um convívio de ideias deixa de ser pluralista e passa a ser manipulado por detentores de uma ideia até então marginalizada em busca de reconhecimento? Mais ao caso: Quando o convívio de ideias passa a ser imposição de uma única visão?

[]s


--
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.


--
Marcelo Finger
 Departament of Computer Science, IME-USP   
 http://www.ime.usp.br/~mfinger
 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1391-1175
 ResearcherID: A-4670-2009

Instituto de Matemática e Estatística,

Universidade de São Paulo

Rua do Matão, 1010 - CEP 05508-090 - São Paulo, SP

Daniel Durante

unread,
Dec 10, 2021, 4:15:34 PM12/10/21
to LOGICA-L, Marcelo Finger, LOGICA-L, eduardoochs, Daniel Durante
Oi João e Marcelo,

O texto de Tassos é muito razo, João Marcos. Ele faz um trocadilho semântico bobo e usa a palavra "fé" com conotação de "fé teísta" onde deveria usar simplesmente a palavra "crença", no sentido da epistemologia, como algo que tomamos por verdade (ou aceitamos) mesmo sem ter uma boa justificativa ou prova.

Pelo argumento dele, nossa crença na existência de um mundo exterior e na relativa confiabilidade de nossa memória também seriam provas de fé na existência de deus.

Isso é muito diferente da minha pergunta sobre os ovos de pato. O caso é mesmo verídico, fiz a pergunta a colegas, mas eu espero que tenha ficado claro que ela é apenas um exemplo engraçadinho (ou didático) para mostrar que a ciência, sozinha, não consegue responder sobre a moralidade do aborto. E aborto, entre outras coisas, é uma questão de saúde pública.

Pois é, Marcelo,

"Quando um convívio de ideias deixa de ser pluralista e passa a ser manipulado por detentores de uma ideia até então marginalizada[...]? Quando o convívio de ideias passa a ser imposição de uma única visão?"

Bem, eu acho que isso ocorre quando o grupo defensor dessa ideia passa a ter PODER para fazer esta manipulação e imposição. E agora, pensando nessa na minha resposta, acho que entendi a sua legítima preocupação. Tempos difíceis estes que vivemos.

Saudações,
Daniel.

Ricardo Pereira

unread,
Dec 22, 2021, 8:01:24 PM12/22/21
to LOGICA-L
Oi, Cassiano e demais.

Seguem meus dois centavos.

On Fri, 10 Dec 2021 at 00:51, Cassiano Terra Rodrigues
<cassian...@gmail.com> wrote:
>>> Consideração: 0,0000003% da classe médica nacional não deve ser bolsonarista, o que, convenhamos, é um bom sinal dadas as circunstâncias.

As coisas parecem melhores, felizmente. A partir de informações de um
amigo médico, chutaria que os médicos de esquerda estão entre 10 e
20%.

>>> Perdoem o sarcasmo, mas adoro perguntas retóricas: Como chegamos a Bolsonaro? #mistérioprofundo

Eu acho muito pertinente essa explicação abaixo:

"Finalmente, pode-se levantar a questão, não mais se o movimento em
direção ao estabelecimento de autoridade racional e clareza contratual
deve ser feito—o que nos parece inquestionável—mas se é de fato
provável que seja feito. Aqui nós alimentamos sérias dúvidas. Em
algumas partes do mundo, onde as condições disciplinares são
extremamente ruins, houve poucas tentativas de restabelecer a
autoridade racional: o caos contínuo parece ser preferido, e os
indivíduos insatisfeitos simplesmente saem (se puderem) do contexto
caótico. A alternativa ao restabelecimento da autoridade racional é um
fenômeno bem conhecido; as coisas acabam ficando tão ruins em todo
lugar (não apenas nas escolas) que uma autoridade poderosa, do tipo
carismático e não-racional, surge com apoio suficiente para assumir o
controle. Incapazes de compreender (quanto mais implementar na
prática) a noção de autoridade racional, as pessoas se apegam faute de
mieux [trad.: por falta de algo melhor] aos representantes de alguma
ideologia específica—geralmente de tipo puritano—que, pelo menos,
“manterá a lei e a ordem”. Esse estado de coisas, por sua vez, está
fadado ao fracasso, pois (por não ser racional) carrega consigo
valores particulares que, mais cedo ou mais tarde, serão atacados. E
assim o mundo dá mais uma volta." (John Wilson, Discipline And Moral
Education, pg. 80~81)

>>> Agora, deixando de lado apenas momentaneamente o exercício de cinismo salutar à sanidade mental, é preciso lembrar que o termo pseudociência já foi criticado por pressupor um sentido verdadeiro e único de ciência, o q, como se sabe, leva a dificuldades de maior monta.

Ainda não tenho um diagnóstico em que possa confiar, mas uma impressão
forte é a de que é muito difícil a gente eliminar a possibilidade de
injustiça a partir de uma distinção que não seja meramente estética.
Então, sempre que há um fim a partir do qual vários meios podem ser
comparados, a gente fica com medo de que o julgamento seja extrapolado
dos meios para os proponentes deles, permitindo que um lado se coloque
como superior e como estando justificado em oprimir ou civilizar o
outro.
Ainda não vi um caso em que me pareceu necessário abrir mão do
julgamento para evitar essa consequência, mas parece que é o que muita
gente está disposta a fazer, muitas vezes instintivamente (dada a
velocidade e ênfase que já vi em algumas reações). Acho essa uma
estratégia muito arriscada, por minar mesmo as compreensões mais
básicas que temos de racionalidade (geralmente a gente busca os
melhores meios pros nossos fins).
Especificamente quanto ao termo pseudociência, acho que podemos
assumir que ele é e será sempre usado indevidamente em vários casos,
mas ao mesmo tempo a distinção básica que creio ser a referência do
termo é muito valiosa pra ser descartada com a água da bacia. Ele não
precisa fazer contraposição a um sentido único e verdadeiro de
ciência, mas apenas passar a ideia de que temos bons motivos pra
acreditar que determinadas práticas (as científicas) são melhores que
outras (e não precisamos abdicar de reavaliar esse status sempre que
quisermos) a partir de critérios com que nós mesmos podemos concordar
(e discutir).

>>> Mas, penso, o ponto mais importante não é esse, mas q os negacionismos atuais - o científico, o histórico e todos os outros q conseguirem identificar - são um sintoma da modernidade reflexiva, conforme a expressão q tomo do professor australiano Andy Blunden, isto é, são produzidos como efeitos de uma cultura de massificação do saber formal. Pela primeira vez na história, o século XX viu surgir uma massa de gente letrada, altamente especializada e intelectualizada, a par e em consequência da massificação da alfabetização (formal ou literal).

Não acho que se trate de massificação do saber. Pelo contrário, acho
que é a carência de um saber como estabelecer as crenças de maneira
racional, atentando pro fato de que nosso nível de especialização
social torna necessário confiar em especialistas em um sem número de
contextos que fazem parte das nossas vidas.
Confiança é a palavra-chave. A quebra de confiança nas autoridades (e
instituições) é um fator central. Inclusive tem a ver com a ideia de
autoridade racional do trecho de livro anterior.

Tem também essa outra leitura mais específica que responsabiliza as
pessoas de perfil de esquerda (em que me incluo e, a até onde sei, o
autor também):

"O que ficou claro é que se deixarmos nossa cultura à deriva, sua
tendência será se afastar da racionalidade. Mantê-la no caminho certo
exigirá percepção consciente, intervenção e orientação. E, no entanto,
o eleitorado com maior probabilidade de conseguir isso—a esquerda
progressista, aqueles com interesse em usar os poderes da mente para
melhorar a condição humana—foi atingido por uma crise de confiança de
proporções incomparáveis. A esquerda não apenas falhou em defender a
razão contra seus críticos e contra as dinâmicas perigosas dentro da
cultura que ameaçam sua supremacia, mas em muitos casos contribuiu
ativamente para seu declínio. Muito disso se deve à associação da
razão com a ciência, da ciência com a tecnologia e da tecnologia com a
guerra, degradação ambiental, patriarcado, alienação e uma variedade
de outros males. Outra grande parte se deve às ideologias
explicitamente anti-racionalistas que surgiram na década de 1960, que
tendiam a tratar qualquer sistema de obediência a regras como
inerentemente opressor. O último elemento provém do impulso utópico e
do desejo de encontrar soluções revolucionárias para os problemas
sociais, o que gera impaciência com as lentas, constantes e incertas
tentativas de progresso que são tudo o que a razão tem a oferecer."
(Joseph Heath - Enlightenment 2.0, Pg. 238 | location 3635-3643)

Acho instigante essa problematização dos males feitos em nome da
razão, mas me parece que a solução do problema não está em
descartá-la, mas em refiná-la ainda mais a partir do que aprendemos. É
como dizem: como se argumentar contra a razão?

--

[]'s ...and justice for all.

Ricardo Gentil de Araújo Pereira

Manuel Doria

unread,
Dec 22, 2021, 11:58:23 PM12/22/21
to Ricardo Pereira, LOGICA-L
Segue-se meu input nesse interessante debate:

1) Considero que a distinção de pseudociência e ciência bona fide é valiosa demais para ser abandonada, além de estar capturando uma série de fenômenos sociais de interesse e tornando saliente o que faz do conhecimento científico vigente distintivo. Quando bem feita, ela será empiricamente adequada (em alguma medida), sendo sensível aos padrões de uso dos termos por especialistas, parafraseando Larry Laudan (um dos mais famosos críticos da distinção).

Várias outras distinções, de grande importância para a filosofia da ciência, geram cada uma um problema de demarcação correspondente, que terão alguma sobreposição ou algo para contribuir à distinção pseudociência x ciência bona fide. Exemplos:

- Protociência x ciência madura
- Ciência de fronteira (borderlands science) x ciência estabelecida (Shermer)
- Metodologia "cargo cult" x metodologia científica bona fide (Feynman)
- Programa metafísico de pesquisa x programa de pesquisa científico propriamente dito (Popper)
- Programa de pesquisa degenerado x programa de pesquisa progressivo (Lakatos)
- Ciência cidadã (ou comunitária, diletante, não-profissional ou amadora...) legítima x ilegítima (https://en.wikipedia.org/wiki/Citizen_science)
- Bullshit x meras assertivas falsas (Frankfurt)

2) Não é verdade que a distinção de pseudociência x ciência bona fide dependa de uma visão de unidade científica ("uma e única verdadeira ciência"). Mesmo que seja o caso de alguma tese de desunião ou pluralismo do conhecimento científico proceder, isso dificilmente provocará a dissolução dos problemas de demarcação citados anteriormente. Apenas eles poderão ficar mais complexos e cada distinção precisará ser indexada para cada concepção de conhecimento científico legítima existente ou aspecto relevante de cada (vamos ter uma distinção de pseudociência x ciência tipo 1, tipo 2, tipo 3...). 

3) Uma analogia: se for o caso, por exemplo, da matemática não possuir fundamentos ("uma única e verdadeira matemática") e do corpo de conhecimento matemático existente estar irredutivelmente e incomensuravelmente fragmentado, disso não se segue que não exista distinção legítima a ser feita entre matemática bona fide e pseudomatemática.

Considere um matemático ou filósofo da matemática arbitrário mais conservador que julgue que o valor cognitivo de matemáticas não-clássicas seja nulo. Ele provavelmente irá encontrar terreno em comum com seus opositores heterodoxos a respeito do conteúdo do site a seguir:


É razoável prever que matemáticos não-clássicos e clássicos sorteados ao acaso irão sistematicamente considerar uma bobagem que o "valor correto de Pi é de 3.125". Tal robustez na concordância de juízos seria um resultado interessante que demandaria boas explicações e motivaria distinções de matemática e pseudomatemática.

4) A presença de abuso político da distinção também não é boa razão para abandonar a distinção e deixar de investigar diferenças entre os campos epistêmicos. Qualquer contraste entre domínios conceituais pode ser abusado politicamente. O fenômeno continuará existindo, assim como os padrões nas atitudes e usos de termos por especialistas e não-especialistas perante diferentes campos de conhecimento. 

Por exemplo, alquimistas, magos e homeopatas utilizam princípios de "simpatia" ou "contágio" onde "efeitos são similares às suas causas" para controladamente tentar obter certos eventos através da manipulação de eventos prévios que sejam similares, em determinados âmbitos.

Zoólogos contemporâneos, biólogos do desenvolvimento e biólogos moleculares utilizam princípios de "homologia" e "analogia" para diferenciar similaridade em estruturas biológicas que são obtidas através de evolução convergente das que são obtidas por ancestralidade em comum.

Os membros de ambos os clusters empregam centralmente o tema de similaridade entre estruturas, tacitamente e deliberadamente, em suas atividades. Mas isso é pouquíssimo informativo. Os raciocínios envolvendo similaridade no raciocínio mágico e no raciocínio cladístico emergem de visões de mundo profundamente diferentes, visões de mundo estas que divergiram dramaticamente desde a Era Moderna. Um desses campos epistêmicos - o da ciência bona fide - consolidou tamanha influência e impacto social que os outros descendentes contemporâneos dos alquimistas e magos da Renascença com frequência acabam incorporando a terminologia, conhecimento teórico e até mesmo a instrumentação e equipamento de cientistas bona fide (veja aqui por exemplo um alquimista contemporâneo que usa microscópio e vidraria de laboratório contemporânea: https://www.youtube.com/watch?v=u-D9gMniHPo)

É neste contexto de transferência assimétrica (da química moderna para a alquimia tradicional sobrevivente hoje, por exemplo) que emerge naturalmente a distinção de ciência e pseudociência. Na superfície (incluindo estética e apresentação), a pseudociência prototípica pode ser muito parecida com ciência bona fide. Mas na estrutura profunda, há divergências históricas, práticas, teóricas e institucionais bem salientes. Não se trata meramente de narrativa de poder espúria.

5) Ainda há muito a ser feito na "cartografia conceitual" da ciência e pseudociência. Alguns esboços mais ad hoc e preliminares usando, por exemplo, teoria de conjuntos fuzzy - Michael Shermer em The Borderlands of Science (2002) - e modelos aditivos simples de teoria de decisão multicritério - Martin Mahner em Science and Pseudoscience: How to Demarcate after the (Alleged) Demise of the Demarcation Problem" (2013) - assumem implicitamente medidas de similaridade simétricas que podem não ser as mais apropriadas.

A escolha da medida de similaridade para comparar o quão "próximos" encontram-se dois campos epistêmicos comensuráveis provavelmente é a escolha de maior impacto para uma teoria formal de pseudociência. Dependendo de como for construída, uma teoria formal de pseudociência poderá ter como consequência uma teoria formal de ciência bona fide; obtendo-se uma, obtém-se a outra. Talvez não.

Uma teoria formal de pseudociência poderá elucidar também quão ortogonal este domínio é dos outros mencionados em #2; por exemplo, quão distintiva é a diferenciação de pseudociência, ciência fronteiriça de protociência? Quão empiricamente adequada? Pode ser o caso de, ex hypothesi, uma modelagem envolvendo clusterização nos informar que a teoria do macaco aquático (https://en.wikipedia.org/wiki/Aquatic_ape_hypothesis) estar tão distante do modelo padrão da física de partículas quanto a psicanálise freudiana, mas a teoria do macaco aquático fazer parte do mesmo agrupamento que a fusão a frio e a teoria viral da grande peste enquanto a psicanálise freudiana encontrar-se no mesmo agrupamento que a criptozoologia de monstros marinhos e a radiestesia.

Os resultados encontrados por um modelo robusto podem violar completamente as expectativas consolidadas de sociólogos, historiadores e filósofos da ciência.

[ ]'s

--
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.

Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.

rhalah

unread,
Nov 28, 2022, 2:05:14 PM11/28/22
to LOGICA-L, Marcelo Finger, LOGICA-L, eduardoochs, dura...@gmail.com
Olá, Marcelo e demais colegas listeiros!

Aproveito essa questão do Marcelo, que creio resumir uma parte importante e interessante do problema, pra dar uma de re-animator em não uma, mas duas conversas antigas da lista (uma é esta).

O tema que me interessa, especificamente, é a questão do relativismo epistemológico e como podemos ter ao menos um norte que permita algum senso de equilíbrio, respeito e justiça no tratamento das pessoas (culturas inteiras também devem ser respeitadas?).

Tivemos aqui na escola em que trabalho (um campus do IFRN) uma apresentação do professor Jafelice (professor de física aposentado da UFRN) que me deixou bastante incomodado. O problema não foi tanto ele ter falado o que falou, mas a ausência de espanto entre os professores presentes, principalmente os das ciências naturais. Isso reforça a minha impressão de que há realmente dois mundos (as tais duas culturas) que se comunicam muito pouco, mesmo quando um dos mundos questiona os fundamentos do trabalho do outro.

Alguns trechos que me surpreenderam:

"A ciência é colonizadora: impõe uma visão única de mundo e é fonte de poder do pensamento único dominante; isto a torna epistemicida e etnocida em inúmeras ocasiões."

"Quando consideramos evidente que o conhecimento científico é superior aos outros sistemas de conhecimento, autóctones, nos rendemos à  visão de mundo colonizatória."

"A vertente da antropologia que adoto é a culturalista e hermenêutica (e.g., GEERTZ, 1997) e a concepção epistemológica, relativista – a qual, por sua vez, se articula melhor com um enfoque construtivista em educação, em especial aquele interpretado desde a perspectiva da biologia do conhecimento (MATURANA, 2001). Adotar essa concepção significa acatar uma pluralidade de alternativas para o ser humano construir conhecimento, todas igualmente válidas e legítimas. O conhecimento científico, portanto, não é visto como especial ou superior, nem implica em alternativa privilegiada (em nenhum sentido, seja social, ontológico, filosófico etc.); acata-se a existência de uma diversidade epistemológica – no fundo, base das demais diversidades."

Os demais trechos que achei problemáticos estão nesse docs (aceita comentários):
https://docs.google.com/document/d/1g3H-Tn2pBX3jQG9feb8roDgUd9rp380t8ZdKg77oAu4/edit?usp=sharing

Em relação à problemática exemplificada pelo texto mencionado acima, tenho compartilhado com algumas pessoas o que acho ser o melhor resumo de como chegamos até aqui:
https://docs.google.com/document/d/1KNTjo16NoQAn-b5UiUVmZ86QWSjBCZkxEX2drSFHrww/edit?usp=sharing

O texto é de 1997. Parece ter sido uma excelente previsão.

Por fim, a outra conversa, que acabei achando ao pesquisar essa problemática do relativismo como condição para a igualdade (e a não discriminação), é esta:
https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/g/logica-l/c/w_A4sAFy6Z0

Nela, o colega Manuel Doria anunciou um paper forthcoming que atualmente está disponível aqui, caso interesse a mais alguém:

Isso tudo me lembra muito o texto do Russell que tenho adotado quase como um mantra:

"Se a um homem é oferecido um fato que vai contra seus instintos, ele o examinará minuciosamente e, a não ser que a evidência seja esmagadora, se recusará a acreditar nele. Se, por outro lado, é oferecido algo que constitui uma razão para agir de acordo com seus instintos, ele o aceitará mesmo sob a mais tênue evidência. A origem dos mitos pode ser assim explicada."
-Proposed Roads to Freedom: Socialism, Anarchism and Syndicalism (1919, New York: Henry Holt and Company, p. 147) 

Julio Stern

unread,
Nov 28, 2022, 4:13:14 PM11/28/22
to rhalah, LOGICA-L, Marcelo Finger, eduardoochs, dura...@gmail.com
Caros Redistas: 
Acho que este topico Nao eh nada off-topic. 
O antidoto para o relativismo total / scepticismo radical 
e outras mazelas epistemologicas que nos afligem 
pode ser encontrado na combinacao de 2 elementos: 
(1) Escudo:  Criterios de demarcacao para Ciencia; 
(2) Lanca:  Testes de hipotese para confirmacao de Leis Naturais.   
Com Escudo e Lanca,  matar os dragoes fica facil.  
Sem as armas antes assinaladas, fica impossivel. 
Tudo de bom,   ---Julio Stern 



From: logi...@dimap.ufrn.br <logi...@dimap.ufrn.br> on behalf of rhalah <rha...@gmail.com>
Sent: Monday, November 28, 2022 2:05 PM
To: LOGICA-L <logi...@dimap.ufrn.br>
Cc: Marcelo Finger <mfi...@ime.usp.br>; LOGICA-L <logi...@dimap.ufrn.br>; eduardoochs <eduar...@gmail.com>; dura...@gmail.com <dura...@gmail.com>
Subject: Re: [Logica-l] Re: Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
 
--
LOGICA-L
Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de Lógica <logi...@dimap.ufrn.br>
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.

Eduardo Ochs

unread,
Nov 28, 2022, 5:22:35 PM11/28/22
to rhalah, LOGICA-L, Marcelo Finger, dura...@gmail.com
Oi Rhalah,

nossa, achei essas coisas que você mostrou do Jafelice muito
primárias... vou compartilhar umas idéias, mas com um disclaimer: eu
li essas anotação do, ou sobre o, Jafelice com bem menos atenção do
que deveria. Lá vão:

1. Ele ataca "a Ciência" sem delimitar qual "Ciência" ele está
   atacando. Pelo que eu entendi a "Ciência" que ele ataca não inclui
   a Antropologia, e também não inclui nenhum matemático ou físico que
   tenha visto as limitações de um certo modo tradicional de dar aulas
   e de escrever e esteja tentando usar outros modos.

2. Se todas as posições são igualmente válidas, legítimas e
   merecedoras de respeito, então: oba! Eu posso roubar, matar e
   estuprar e a minha posição vai continuar tão válida, legítima e
   merecedora de respeito quanto antes... né?

3. Tem gente que diz que não existem músicas melhor ou piores, é só
   uma questão de gosto. Essas pessoas ignoram que quando músicos se
   encontram e tentam gravar uma música juntos eles têm uma noção
   comum do que é uma música boa, e eles usam isso pra tentar fazer a
   música deles ficar a melhor possível. Com ciência e com ética é a
   mesma coisa: tem pessoas de fora que têm certeza de que tudo é
   questão de gosto e que tanto faz, mas as pessoas de dentro têm
   noções comuns do que é fazer ciência da melhor forma possível e do
   que é ser o mais ético possível.

4. Me pareceu que essa apresentação dele foi principalmente pra dizer
   pros colegas dele: "olha, vocês são burros, a noção de ciência de
   vocês é um lixo", mas ele fez isso muito mal. Qdz, ele poderia ter
   feito algo muito mais construtivo, tipo mostrar algo sobre uma
   outra forma de aprender física, mas ele só fez umas referências a
   uns textos muito distantes.

5. Você falou da "ausência de espanto entre os professores presentes".
   Imagino que em alguns casos essa "ausência de espanto" seja uma
   apatia parecida com que a gente tem com bolsonaristas... a gente
   pensa em responder o que eles estão dizendo, e aí a gente procura
   algo que a gente possa dizer, mas aí a gente vê que eles vão
   entender tudo errado, e aí a gente procura outra coisa pra dizer,
   vê que eles vão entender aquilo errado de novo, e a gente repete o
   loop 10 vezes, e depois das 10 vezes a gente desiste...

Assim que der eu vou tentar ler direito as outras coisas que você
mandou.

  [[]],
    Eduardo Ochs
    http://angg.twu.net/math-b.html
    http://angg.twu.net/2022-apresentacao-sobre-C2.html

Cassiano Terra Rodrigues

unread,
Nov 29, 2022, 1:03:25 PM11/29/22
to LOGICA-L, eduardoochs, LOGICA-L, Marcelo Finger, dura...@gmail.com, rhalah
Camaradas, após mais ou menos 1 ano e reaberto este tópico, acho q deixei algumas perguntas q me foram dirigidas sem resposta e aproveito o ensejo para retomar algumas ideias, nada off-topic, como afirmou o Júlio. Peço desculpas pela assistematicidade, mas escrevo sem grandes pretensões de delimitação ou demarcação.
Em geral, concordo com o Eduardo e, respondendo ao Daniel e ao Doria, sustento o q disse anteriormente sobre a oposição ciência x pseudociência. Para retomar um pouco, é preciso lembrar q Popper inicialmente não usava o termo, mas propunha seu critério de demarcação relativamente à distinção entre ciência e metafísica. Ele passou a usar o termo pseudociência posteriormente; e eu não sei quem inventou e acho q ninguém sabe ao certo. Por ex., ao menos a Enciclopédia da Stanford remonta ao século 17!. Se for isso mesmo, a questão da demarcação é um sintoma, assim como a questão da definição de o q é filosofia: no momento em q o conhecimento, na Europa, se fragmenta em áreas especializadas, surge a questão de definir o que cada um faz. Se Galileo era ao mesmo tempo um filósofo natural e um "scientifico", mas ainda não era um físico, Einstein já é um físico, um cientista profissional e também um filósofo. 
O que eu quero dizer com esses exemplos? Bem, eu penso q o mais importante é opor a ciência ao que não é ciência, e não à falsa ciência, ou à ciência mentirosa (quem ousar explicar "pseudo", por favor, não sei como fazê-lo, acho q penso muito etimologicamente para isso). A estratégia de definir ciência pelo recurso às condições sine qua non etc. mostra-se muito limitante quando se trata no fundo de uma atitude: a genuína atitude científica nada tem q ver com condições suficientes ou necessárias, mas com uma genuína disposição para aprender. Por isso a construção coletiva do conhecimento é tão importante, pq desbanca inclusive as próprias proposições científicas. Não se trata de abandonar critérios de demarcação, ou ceder a relativismos, mas de reconhecer q não basta ser pesquisador, usar bem os métodos racionais ou racionalistas, para ter atitude científica (pensando aqui no velho Peirce: https://www.textlog.de/4232.html). Atualmente, há pessoas com altíssima educação científica ocupando altos cargos governamentais e defendendo posições bem duvidosas. Pode-se dizer muitas coisas do recém eleito senador e ex-ministro-astronauta, mas não q ele não sabe o q é ciência - acho q é justamente por saber q decidiu fazer parte do atual governo. Boa parte do alto escalão nazista também tinha grandes cientistas e muitos, inclusive, trabalharam por décadas na OTAN após a guerra. O nazismo tinha uma grande campanha negacionista, Hess era antroposófico, mas não nos esqueçamos q foi o uso - repito, o uso - da ciência q levou a indústria de guerra nazista a quase ganhar a guerra. Então, a questão é para que se usa o conhecimento, não é o conhecimento em si. Não existe ciência, nem conhecimento algum, pairando no ar. Se a abstração e o distanciamento de contextos locais é o q permite, em certo grau, a universalização do conhecimento, ao mesmo tempo sem aproximar de contextos locais é impossível aprender (o interesse específico do químico na tabela periódica, citado por Peirce no texto acima, é um exemplo disso). Nesse sentido, eu diria q a tentativa de impor um modo de conhecer e uma maneira de exprimir o conhecimento como a única verdade racional é um equívoco colonialista. Não a ciência, mas a maneira como ela é feita e imposta (a Helen Longino tem um argumento parecido: é possível organizar um laboratório de maneira sexista, mas seria razoável afirmar q as equações são sexistas? Em que medida a linguagem q usamos para exprimir o conhecimento é desvinculada de outras dimensões das nossa próprias vidas?). De fato, uma luta dos povos indígenas é para q os seus modos de saber sejam reconhecidos como legitimamente científicos, já q localmente funcionam. Para isso, combinam essa reivindicação à exigência de acesso às modernas metodologias e condições para fazer ciência. Pois é também um outro fato que não existe uma única comunidade, pois não há uma única humanidade, há muitas comunidades e comunidades são sempre imaginadas (sigo aqui mal e grosseiramente Benedikt Anderson). Não é possível sustentar práticas comunitárias acriticamente e correr o risco de as essencializar e nesse ponto acho q Gellner realmente tem muito a dizer. 
Mas, com a licença de Gellner e sem intenção de pesar demais a linguagem, scientia em latim vem do verbo scio - segurar, pegar firme - e traduz o grego episteme - compreensão, étimo ligado a pistis, crença. Assim, quem busca a scientia, busca a compreensão, busca uma crença q dure frente à instabilidade dos fatos; e quem busca a sofia, busca a algo mais q isso, já que sofia é mais saber do que episteme (Aristóteles assim definia). Parece q em certo momento da história, ciência e filosofia, q nasceram juntas, trocaram de lugar no berço e daí cresceram separadamente. Mas ciência e filosofia são impulsos fundamentais da natureza humana e nunca deixarão de ser, enquanto houver gente, haverá ciência e filosofia, assim como religiões e outras crenças - em todas as partes do mundo, por quaisquer pessoas. Historiadores, antropólogos, cientistas, poetas e até mesmo o senso comum estão a nos mostrar cotidianamente a insuficiência das pretensões universalistas e essencialistas da filosofia ocidental. Mais fortemente a partir do século XX, essa crítica é feita inclusive no seio da própria tradição filosófica (até que alguém diga que eu estou erradíssimo, desconstrução de Derrida, o conceito deleuziano de rizoma, até mesmo os paradigmas de Kuhn seriam exemplos disso). Concordo em gênero, número e grau (expressão esta, aliás, q a ciência da linguística desautoriza): por mais que se tente esconder, é certo que o saber grego foi intrinsecamente influenciado pelo egípcio; é certo que, desde a Antiguidade, a África, não apenas a saariana, tem saberes ancestrais de grande impacto e inestimável importância histórica; é certo que os que se julgam racionais são muito menos do que se imaginam. E há tantos outros "é certo" que são emudecidos. Tudo isso deveria estar muito mais presente na escola da criança e na pesquisa universitária. Mas também é necessário muito critério para não combater equívoco com equívoco, um essencialismo com outro. 
O que está em jogo, ao que me parece, é a reivindicação de o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental - o estatuto de quem é humano e tem direitos (e privilégios, em se tratando de projetos de poder). Por isso há os ataques que visam a desqualificar o saber científico e o filosófico, pois me parece q tais ataques identificam esse saber com um legado (seja ele ocidental-colonialista, egípcio, africano, chinês, indiano etc.) que, por sua natureza original, define um modo superior de pensar e sobretudo de ser (o uso da dicotomia ciência x pseudociência serve bem a isso e me parece igualmente equivocado - isto é, como sugeriu o Daniel, devemos então conceder q os psicanalistas não pensam racionalmente? Os cara-pálidas deviam experimentar uma terapia com jabuticaba - como a desse poema aqui: https://youtu.be/z-xxy9_8duM). E se for o caso de usar o termo "ciência" ou o termo "filosofia" num sentido que transborde suas determinantes históricas greco-ocidentais, que ele designe então, não uma essência fechada no passado, mas sim um devir aberto ao futuro. 
Saudações e perdão se fui enfadonho.
cass. 

 

Daniel Durante

unread,
Dec 2, 2022, 6:39:28 PM12/2/22
to Cassiano Terra Rodrigues, Lista Lógica, eduardoochs, Marcelo Finger, Ricardo Pereira
Salve Cassiano,

Vou usar este seu email como texto de minhas aulas 👏🏼👏🏼🙂

Saudações,
Daniel.
-----
Departamento de Filosofia - (UFRN)
http://danieldurante.weebly.com

Diego Almeida

unread,
Dec 2, 2022, 11:27:17 PM12/2/22
to Daniel Durante, Cassiano Terra Rodrigues, Lista Lógica, eduardoochs, Marcelo Finger, Ricardo Pereira
Texto muito interessante.

Abraços.
Diego

--
LOGICA-L
Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de Lógica <logi...@dimap.ufrn.br>
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+u...@dimap.ufrn.br.

Cassiano Terra Rodrigues

unread,
Dec 5, 2022, 10:44:34 AM12/5/22
to Diego Almeida, Daniel Durante, LOGICA-L, Ricardo Pereira, Marcelo Finger, eduardoochs
Daniel, Diego, obrigado, bondade a de vcs. 
Esse texto nem deveria ser chamado de meu, pois é resultado de muitas conversas, as daqui da lista e também outras q tenho com outros amigos e colegas de outros grupos. As palavras aí eu apenas registrei, há tempos vêm as ideias se aninhando na minha cabeça, vindas de outras e compartilhadas comigo, como fazemos aqui. 
Acho q o ponto importante mesmo é não perdermos de vista a continuação da conversa com todos, por mais difícil q possa parecer. Eu mesmo não sou bom nisso, mas o exemplo do Daryl Davis é inspirador: 
Abraços,  cass. 

Ricardo Pereira

unread,
Dec 6, 2022, 12:24:53 PM12/6/22
to Eduardo Ochs, LOGICA-L, Marcelo Finger, dura...@gmail.com
Oi, Eduardo!
Obrigado pelas observações. Seguem meus comentários.
  
1. Ele ataca "a Ciência" sem delimitar qual "Ciência" ele está
   atacando. Pelo que eu entendi a "Ciência" que ele ataca não inclui
   a Antropologia, e também não inclui nenhum matemático ou físico que
   tenha visto as limitações de um certo modo tradicional de dar aulas
   e de escrever e esteja tentando usar outros modos.

É mais ou menos isso. O alvo principal das críticas é a tradição científica que alguns chamam de ciência ocidental. Talvez um dos desafios seja justamente porque há inúmeras críticas válidas, mas também parece haver um impulso muito grande no sentido de passar dessas críticas a um relativismo total.
Nesse sentido, ao menos algumas vertentes da antropologia parecem ter se percebido imperialistas e colonizadoras, passando a trabalhar de forma a eliminar esses pecados de si mesmas.

 
2. Se todas as posições são igualmente válidas, legítimas e
   merecedoras de respeito, então: oba! Eu posso roubar, matar e
   estuprar e a minha posição vai continuar tão válida, legítima e
   merecedora de respeito quanto antes... né?

Pois é.
Já há um tempo que me parece haver uma confusão entre o problema da verdade e o problema da certeza, onde para se combater a certeza (realmente muito perigosa), acabou se batendo muito na própria ideia de verdade, que nos dá ao menos a responsabilidade coletiva de nos esforçarmos pra avançar* em questões de ética e política.

* O problema é que o avanço do que parece ser um movimento bem intencionado tem desgastado não só a ideia de verdade, mas a de vários outros conceitos fundamentais, como imparcialidade, neutralidade, progresso (avanço), justiça, meritocracia, eficiência (um conceito neoliberal, segundo fui informado por um colega de trabalho!!) etc.
 
3. Tem gente que diz que não existem músicas melhor ou piores, é só
   uma questão de gosto. Essas pessoas ignoram que quando músicos se
   encontram e tentam gravar uma música juntos eles têm uma noção
   comum do que é uma música boa, e eles usam isso pra tentar fazer a
   música deles ficar a melhor possível. Com ciência e com ética é a
   mesma coisa: tem pessoas de fora que têm certeza de que tudo é
   questão de gosto e que tanto faz, mas as pessoas de dentro têm
   noções comuns do que é fazer ciência da melhor forma possível e do
   que é ser o mais ético possível.

Verdade.
Eu mesmo tive (acho que ainda tenho) uma relação não muito harmônica com a arte. Provavelmente por causa de influências familiares, que viam a arte (muito mais do que realmente se aplica) como mero jogo de vaidades, status e manipulação.
Concordo com sua observação sobre os grupos de especialistas, mas penso que ainda há uma necessidade de aprovação pelos leigos em algum grau, ao menos se pensarmos realmente em divisão do trabalho.
Nesse sentido é o mesmo que ocorre em relação ao trabalho de um mecânico, que tem um entendimento inalcançável por mim, mas cujo resultado sejá julgado por critérios que estão ao meu alcance (o carro está andando suavemente, o freio funciona, o consumo está bom etc.).
A diferença seria quantitativa, comparando ao contexto ético e artístico, em vez de qualitativa, apenas porque em relação a esses últimos ainda estamos na infância do conhecimento e o problema em si é muito mais difícil de tratar.
 
4. Me pareceu que essa apresentação dele foi principalmente pra dizer
   pros colegas dele: "olha, vocês são burros, a noção de ciência de
   vocês é um lixo", mas ele fez isso muito mal. Qdz, ele poderia ter
   feito algo muito mais construtivo, tipo mostrar algo sobre uma
   outra forma de aprender física, mas ele só fez umas referências a
   uns textos muito distantes.

Acho que a posição de igualdade com que ele está comprometido (e que creio ser o grande impulso que o move) o coloca em uma posição insustentável.
Algo que ele insinuou e que me deixou bastante incomodado foi que é esperada uma reação dos cientistas que estão na zona de conforto, ainda imersos na visão colonizadora, PORQUE eles não querem perder os privilégios.
A parte até a zona de conforto acho OK, mas essa tendência impressionante de atribuir às intenções a maior parte da explicação (ou mesmo a totalidade) me parece alimentar uma animosidade que torna o diálogo quase impossível. Essa tendência, aliás, tem sido bastante forte em uma série de contextos onde se discutem injustiças sociais.
Aliás, o Gellner faz uma referência a isso no texto que postei:

"O truque central da “etnometodologia” era a utilização do seguinte dualismo: nossas declarações são reivindicações à verdade, mas também feitas por pessoas de carne e osso, em geral com objetivos em mente e em contextos sociais definidos. Os praticantes desse estilo concentravam-se nesses últimos aspectos e permitiam que eles vencessem todas as demais considerações. A prova ou a correção processual, por exemplo, não podiam ser invocadas uma vez que eram, afinal de contas, apenas manobras em um jogo, empreendidas por uma parte interessada, e era legítimo que seu rival fizesse outros movimentos. O fato de que uma pergunta crítica gera uma contradição ou um erro por si própria nenhuma importância tinha. A pergunta de um crítico era um movimento feito pelo adversário e pode ser explicada e desprezada como tal: essa caracterização era tratada como uma deslegitimação válida, mas também como licença para ignorar todas as propriedades processuais costumeiras."

 
 
5. Você falou da "ausência de espanto entre os professores presentes".
   Imagino que em alguns casos essa "ausência de espanto" seja uma
   apatia parecida com que a gente tem com bolsonaristas... a gente
   pensa em responder o que eles estão dizendo, e aí a gente procura
   algo que a gente possa dizer, mas aí a gente vê que eles vão
   entender tudo errado, e aí a gente procura outra coisa pra dizer,
   vê que eles vão entender aquilo errado de novo, e a gente repete o
   loop 10 vezes, e depois das 10 vezes a gente desiste...

Pode ser que seja mais ou menos isso em algum grau, mas eu vejo que bastante gente partilha dessa visão (geralmente o pessoal mais ligado às humanidades).
Não me parece saudável uma divisão do trabalho em que parte do meu time despreza ou vê com desconfiança a tarefa que me coube SEM conversar honesta e abertamente comigo sobre isso.

Por um lado, há um comprometimento com a ideia de especialista, já que o sábio tradicional é alguém que tem um conhecimento nitidamente superior que o deixa em situação de ser referência. Por outro, toda uma categoria de especialistas (os cientistas) é deixada de lado porque é apenas um artefato de uma cultura específica (imperialista e colonial), sem se entrar muito no mérito de se as produções e os métodos se sustentam com as próprias pernas.
 

Ricardo Pereira

unread,
Dec 6, 2022, 12:33:37 PM12/6/22
to Julio Stern, LOGICA-L, Marcelo Finger, eduardoochs, dura...@gmail.com
Oi, Júlio!
Não sei se vc está usando uma referência desconhecida pra mim (o lance da espada e escudo).
Acho que já devo ter falado isso em outras conversas, mas me parece que a problemática é um emaranhado de ideias bem difícil de desatar.
Por exemplo, é como se a qualquer momento as bases comuns que a gente supõe numa conversa, que nos dão a possibilidade de entendimento mútuo, pudessem ser revogadas dependendo do nível de estresse (por causa de temas polêmicos) das outras pessoas envolvidas. Isso torna a coisa toda bastante contraproducente. Algo como esse relato aqui (que não é meu, mas reflete bem o fenômeno):

"Uma vez tive uma estudante de filosofia que se contradisse. Falei: ‘Olha, você se contradisse: você disse que A era X e depois que não era X’. Ela disse ‘e daí? Por que eu não deveria me contradizer?’. Eu disse: ‘Bem, você pode, é claro, mas depois perceberá que não terá dito nada: assim, se você me disser coisas como “eu li o livro, mas não olhei para ele”, você não estará exprimindo significado algum  e não poderemos conversar’. Ela disse: ‘Bem, eu não vejo sentido algum em conversar, mesmo’. Eu, então, mudei de assunto. Agora, o que está sendo desafiado aqui é algo que todos normalmente temos como certo: a lei da não-contradição."
---O trecho completo está aqui: https://tinyurl.com/58mzzm8x

Julio Stern

unread,
Dec 6, 2022, 1:24:03 PM12/6/22
to Ricardo Pereira, LOGICA-L, Marcelo Finger, eduardoochs, dura...@gmail.com
Caro Ricardo: 
Segue a referencia  ``da Lanca e do Escudo''  

Caroline Ting  (2022).  
Oposiçãocontraditória e Oposição Complementar na Cultura Chinesa. 
 
OPOSIÇÃO CONTRADITÓRIA: A palavra chinesa para expressar “contradição” 矛盾 (Máodùn), é formada por uma lança矛 (máo) oposta a um escudo盾 (dùn). A etimologia vem de um extrato de um conto encontrado p…


O artigo eh muito bonito, e vale a pena ser lido! 
O veiculo onde ele foi publicado eh um jornal em lingua Portugues de Macau! 
Deleitem-se. 

Tudo de bom,   ---Julio Stern 



From: Ricardo Pereira <rha...@gmail.com>
Sent: Tuesday, December 6, 2022 12:33 PM
To: Julio Stern <jms...@hotmail.com>
Cc: LOGICA-L <logi...@dimap.ufrn.br>; Marcelo Finger <mfi...@ime.usp.br>; eduardoochs <eduar...@gmail.com>; dura...@gmail.com <dura...@gmail.com>

Ricardo Pereira

unread,
Dec 6, 2022, 10:13:00 PM12/6/22
to Cassiano Terra Rodrigues, LOGICA-L, eduardoochs, Marcelo Finger, dura...@gmail.com
Oi Cassiano!

Seguem alguns comentários.

O que eu quero dizer com esses exemplos? Bem, eu penso q o mais importante é opor a ciência ao que não é ciência, e não à falsa ciência, ou à ciência mentirosa (quem ousar explicar "pseudo", por favor, não sei como fazê-lo, acho q penso muito etimologicamente para isso).

Creio que as distinções se justificam sempre que refletem fenômenos que julgamos relevantes também de maneiras distintas.
Nesse caso, muito do que é não-ciência não será confundido com ela (nem tem essa pretensão) e, consequentemente, não haverá toda uma gama de problemas associados a essa confusão.
Já o caso de atividades que se parecem muito com a ciência, em todas as suas características superficiais, mas não têm poder de previsão, por exemplo, merecem ser tratadas em separado justamente porque muitas pessoas serão enganadas (nem precisamos entrar no mérito de se há má fé ou não).

Estou me lembrando aqui de um caso recente que aconteceu comigo, em que uma suposta cobra coral apareceu em minha casa (tivemos de chamar os bombeiros, já que queríamos matá-la). Pelo que vejo da cultura local, há corais, não-corais, falsas corais e até falsas falsas corais. Consigo dar conta de algumas não-corais e falsas falsas corais, mas as corais e falsas corais (difíceis de distinguir das verdadeiras) são muito perigosas pra mim. Nosso corpo de bombeiros recomenda não tentar fazer a distinção dessa última dupla, mas creio que as razões são contrárias às do nosso contexto (evitar dano causado por uma das cobras vs. conseguir benefício fornecido por uma das ciências).
 
A estratégia de definir ciência pelo recurso às condições sine qua non etc. mostra-se muito limitante quando se trata no fundo de uma atitude: a genuína atitude científica nada tem q ver com condições suficientes ou necessárias, mas com uma genuína disposição para aprender.

A genuína disposição para aprender não seria uma condição necessária e suficiente, então?

E se ela, juntamente com o conhecimento acumulado, acabasse implicando que devemos proceder de tais e tais maneiras, usando tais e tais métodos e ferramentas, não passaria a ser obrigação de quem tem genuína disposição de aprender, diante desse histórico, adaptar suas práticas?
Veja que segundo o que falei acima é possível pensar que os antigos faziam ciência dadas as suas limitações, mas que a ciência evoluiu a ponto de uma pessoa que tiver conhecimento dessa evolução não estar sendo fiel à sua disposição de aprender quando não leva esses desenvolvimentos em conta.

Atualmente, há pessoas com altíssima educação científica ocupando altos cargos governamentais e defendendo posições bem duvidosas.

Acho que isso é fruto da divisão extrema do trabalho. Parece que a gente acaba relaxando em relação aos fundamentos racionais e filosóficos da ciência justamente porque no dia a dia geralmente podemos passar sem eles. Talvez rapidamente essa maneira de trabalhar se desfaça em tempo de desconfiança como o nosso, em que esses fundamentos precisam ser reafirmados e defendidos, mas não parece ter sobrado gente o suficiente tomando conta deles.
 
Então, a questão é para que se usa o conhecimento, não é o conhecimento em si. Não existe ciência, nem conhecimento algum, pairando no ar. Se a abstração e o distanciamento de contextos locais é o q permite, em certo grau, a universalização do conhecimento, ao mesmo tempo sem aproximar de contextos locais é impossível aprender (o interesse específico do químico na tabela periódica, citado por Peirce no texto acima, é um exemplo disso).

Não sei se entendi. Não é contraditório afirmar que o distanciamento de contextos locais permite universalizar o conhecimento (entendo que está sendo aprendido um conhecimento universal) e ao mesmo tempo dizer que sem aproximação dos contextos locais é impossível aprender?
 
Nesse sentido, eu diria q a tentativa de impor um modo de conhecer e uma maneira de exprimir o conhecimento como a única verdade racional é um equívoco colonialista.

Acho que a palavra 'impor' aqui é fundamental. Se eu acho que alguém está com uma crença falsa a respeito de algo, argumentar e tentar convencer essa pessoa de que ela está errada é desrespeitoso em si? Se em vez de uma pessoa falarmos de uma coletividade a coisa muda? Como exatamente é isso?
 
De fato, uma luta dos povos indígenas é para q os seus modos de saber sejam reconhecidos como legitimamente científicos, já q localmente funcionam.

Gostaria de entender e pensar mais sobre esse ponto. Alguma coisa me diz que nele se concentra uma proporção maior do problema do que o tamanho do texto daria a entender.
Se julgamos que a ciência mainstream está num patamar mais elevado que determinado sistema de crenças S de nossa própria sociedade, por que esperar que essa relação também não se aplique para o caso de um sistema de crenças S' de uma outra sociedade que parece ser análogo a S? Por que meramente pensar nessa hipótese é ser imperialista/colonialista?
 
Para isso, combinam essa reivindicação à exigência de acesso às modernas metodologias e condições para fazer ciência.

Não entendi.
A reivindicação já não é que a respectiva prática É ciência? Pra que outras condições e metodologias se todas geram igualmente conhecimento? 
 
Assim, quem busca a scientia, busca a compreensão, busca uma crença q dure frente à instabilidade dos fatos; e quem busca a sofia, busca a algo mais q isso, já que sofia é mais saber do que episteme (Aristóteles assim definia). Parece q em certo momento da história, ciência e filosofia, q nasceram juntas, trocaram de lugar no berço e daí cresceram separadamente.

Vejo mais como sendo o mesmo impulso (o científico e o filosófico), então nesse sentido não teriam nascido juntas, mas seriam a mesma coisa. O resto é divisão do trabalho.
Antes achava que não deveria ou poderia afirmar algo assim tão simplista, mas com o tempo vi que como não há uma definição de filosofia esse meu pitaco não é tão grave assim.
:-)
 
Mas ciência e filosofia são impulsos fundamentais da natureza humana e nunca deixarão de ser, enquanto houver gente, haverá ciência e filosofia, assim como religiões e outras crenças - em todas as partes do mundo, por quaisquer pessoas.

Concordo que quando há humanos há ao menos em potencial o impulso filosófico/científico, mas sem condições mínimas que o deixem florescer, como provavelmente foi o caso em boa parte da história do homo sapiens, parece-me que esticar os conceitos de ciência e filosofia de modo que acompanhem toda a história do homem implicaria em perder distinção que queremos manter pelo uso do termo.
 
 Historiadores, antropólogos, cientistas, poetas e até mesmo o senso comum estão a nos mostrar cotidianamente a insuficiência das pretensões universalistas e essencialistas da filosofia ocidental. Mais fortemente a partir do século XX, essa crítica é feita inclusive no seio da própria tradição filosófica (até que alguém diga que eu estou erradíssimo, desconstrução de Derrida, o conceito deleuziano de rizoma, até mesmo os paradigmas de Kuhn seriam exemplos disso).

Concordo em 100% que devemos combater a arrogância, o cientificismo e o dogmatismo, mas minha experiência na filosofia tem me deixado com a impressão de que o diagnóstico relativo ao problema retratado no texto acima só não foi tão exagerado quando as atitudes tomadas a partir dele. Só recentemente comecei a ter coragem de falar um pouco mais sobre isso, porque a sensação é aquela retratada na história das roupas do rei.
Acho que agora, com um pouco mais de 10 anos tentando entender o que está acontecendo, já posso considerar que meu medo de o rei estar nú não é infundado (infelizmente! Preferiria que fosse).

Estou vendo aqui que o email já está ficando bem grandinho, mas farei mais umas observações a seguir que não são os principais pontos que tinha em mente, mas expressam minha curiosidade.
Se puder me indicar algum texto que me ajude a entender, agradeço.

Concordo em gênero, número e grau (expressão esta, aliás, q a ciência da linguística desautoriza): por mais que se tente esconder, é certo que o saber grego foi intrinsecamente influenciado pelo egípcio;

Há uma tentativa de esconder a influência?
O que significa pra vc assumir que houve influência?
 
é certo que, desde a Antiguidade, a África, não apenas a saariana, tem saberes ancestrais de grande impacto e inestimável importância histórica;

Alguém nega isso?
Ou vc está propondo que saber ancestral é equivalente a conhecimento científico? Se sim, já entendo o caráter problemático, mas ao mesmo tempo não parece ser isso que vc está dizendo ao classificar como importância histórica.
 
é certo que os que se julgam racionais são muito menos do que se imaginam.

Concordo, mas isso não é amplamente aceito, talvez até demais*?

* Umas observações interessantes sobre esse pessimismo em relação à razão estão aqui:
https://tinyurl.com/2hxcmcen

E há tantos outros "é certo" que são emudecidos. Tudo isso deveria estar muito mais presente na escola da criança e na pesquisa universitária. Mas também é necessário muito critério para não combater equívoco com equívoco, um essencialismo com outro. 

É justamente o receio de que estamos combatendo equívoco com equívoco o que me preocupa. Já até tentei me tranquilizar pensando que talvez seja da nossa natureza oscilar em relação ao ponto ótimo, alternando entre ação e reação, entre avanço progressista e contra-ataque reacionário, na esperança de que estamos aos poucos nos aproximando desse suposto ponto ótimo. Mesmo assim resta a questão de qual exagero é realmente inevitável e qual está em nosso poder evitar, dado que os exageros cobram seu preço.

Vou ficando por aqui.
Grato pelas suas colocações.

Ricardo Pereira

unread,
Dec 6, 2022, 10:17:22 PM12/6/22
to Julio Stern, LOGICA-L, Marcelo Finger, eduardoochs, dura...@gmail.com
Obrigado, Julio!
Muito interessante o artigo!
:-)

Julio Stern

unread,
Dec 7, 2022, 4:19:32 AM12/7/22
to Cassiano Terra Rodrigues, Diego Almeida, Daniel Durante, LOGICA-L, Ricardo Pereira, Marcelo Finger, eduardoochs
Caro Cassiano: 
>>> scientia em latim vem do verbo scio - segurar, pegar firme -
Por favor, esclareca-me   a fonte desta derivacao etymologica, 
pois sempre alardeei por ai a derivacao 
>>>   scīre, saber  <   *skei-  cortar, separar  
onde * indica uma raiz reconstituida do proto-indo-europeu. 
Acho a diferenca importante e interessante. 
Abraco,  ---Julio Stern 



 




From: logi...@dimap.ufrn.br <logi...@dimap.ufrn.br> on behalf of Cassiano Terra Rodrigues <cassian...@gmail.com>
Sent: Monday, December 5, 2022 10:44 AM
To: Diego Almeida <adieg...@gmail.com>
Cc: Daniel Durante <dura...@gmail.com>; LOGICA-L <logi...@dimap.ufrn.br>; Ricardo Pereira <rha...@gmail.com>; Marcelo Finger <marcelo...@gmail.com>; eduardoochs <eduar...@gmail.com>
Subject: Re: [Logica-l] Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
 

Cassiano Terra Rodrigues

unread,
Dec 7, 2022, 12:46:11 PM12/7/22
to Julio Stern, Diego Almeida, Daniel Durante, LOGICA-L, Ricardo Pereira, Marcelo Finger, eduardoochs
Caro Júlio, escrevo rápido agora, apenas para te responder. 
Eu não tenho nenhuma etimologia melhor q a tua para oferecer a não ser lembrar do Francisco Achcar falar isso, scientia tem a ver com o conhecer com o corpo, com as mãos, o segurar firme q está na raiz do verbo. Mas agora buscando rapidamente aqui na internet, há quem ligue scire a scindere, cindir, clivar, separar em 2 (teria a ver com o grego σκήπτωé uma pergunta mesmo e não é retórica), e ainda até mesmo a secare, pela via do hebraico carath, que também quer dizer cortar. Secare é a raiz latina de sexo, o q dá uma pouco explorada ligação da ciência com o entendimento da vida e do corpo. 
Como meu latim é parco, cedo à autoridade do Francisco e também à tua, scio é 1a p do sing do inf scire
Abraços,
cass. 

Cassiano Terra Rodrigues
Prof. Dr. de Filosofia - IEF-H-ITA
Rua Tenente Brigadeiro do ar Paulo Victor da Silva, F0-206 
Campus do DCTA
São José dos Campos
São Paulo, Brasil
CEP: 12228-463
Tel. (+55) 12 3305 8438

--
lealdade, humildade, procedimento

Julio Stern

unread,
Dec 7, 2022, 2:13:10 PM12/7/22
to Cassiano Terra Rodrigues, Diego Almeida, Daniel Durante, LOGICA-L, Ricardo Pereira, Marcelo Finger, eduardoochs
Caro Cassiano: 
No que me concerne, a autoridade ultima sobre estes assuntos eh o Doria... 
Quantoa tua ultima observacao,  creio que vivemos, percebemos e sentimos 
a vida pelo corpo, de modo que nossa invariavelmente  metaforica linguuagem 
sempre tem que, em ultima instancia, ao corpo retornar;    
Revogadas todas as Apolinieas disposicoes em contrario. 
Abraco e Tudo de bom, ---Julio 



From: Cassiano Terra Rodrigues <cassian...@gmail.com>
Sent: Wednesday, December 7, 2022 12:45 PM
To: Julio Stern <jms...@hotmail.com>
Cc: Diego Almeida <adieg...@gmail.com>; Daniel Durante <dura...@gmail.com>; LOGICA-L <logi...@dimap.ufrn.br>; Ricardo Pereira <rha...@gmail.com>; Marcelo Finger <marcelo...@gmail.com>; eduardoochs <eduar...@gmail.com>

Cassiano Terra Rodrigues

unread,
Dec 13, 2022, 5:24:50 AM12/13/22
to Ricardo Pereira, LOGICA-L, Marcelo Finger, dura...@gmail.com, eduardoochs
Oi Ricardo, primeiramente, desculpe a demora. Vou tentar elaborar alguns pontos. Agora, reli e já aviso q ficou bem longo e off-topic, talvez assim alguém julgue, ou algo arbitrário. Mas não vou tentar consertar o q não tem conserto nem nunca terá. No caso, eu mesmo. Assim, segue o papo:



Nesse caso, muito do que é não-ciência não será confundido com ela (nem tem essa pretensão) e, consequentemente, não haverá toda uma gama de problemas associados a essa confusão.

Eu argumento em outro sentido (acho). Os problemas que tenho em vista dizem respeito à sobreposição de finalidades. A ciência nos diz que podemos fazer muitas coisas, inclusive conhecer os fenômenos de maneira mais, ou menos, confiável do que a religião ou a política (quer dizer, ao menos, pretensamente mais confiável…). Mas até onde consigo entender, a ciência não nos diz pq deveríamos fazer x ou y. A religião e a política fazem isso? São elas q devem fazer isso? Não sei. Sei q um modelo como o do CNRS da França pode ser belo, ma non funziona in tutti quanti i paesi…


Já o caso de atividades que se parecem muito com a ciência, em todas as suas características superficiais, mas não têm poder de previsão, por exemplo, merecem ser tratadas em separado justamente porque muitas pessoas serão enganadas (nem precisamos entrar no mérito de se há má fé ou não).

Aqui me parece q vc está usando o poder de previsão como característica definidora da ciência. Eu diria o seguinte, concordo, mas formularia diferentemente: o q torna uma teoria científica é q ela afirma q deve haver alguma coisa, algum funcionamento dos fenômenos, por trás (digamos) da teoria q sustenta as previsões e q lá na frente condiz com as evidências q somos capazes de ter.  Acho q é fundamental, então, distinguir entre o q simplesmente é literário, político, religioso (não cientifico) e o q é pseudocientífico, ou ciência picareta, como já vi escreverem. Mas esse limite “denorex” - “parece, mas não é” - é impossível definir absolutamente, embora caso a caso talvez não. Na história da ciência há inúmeros exemplos a citar de teorias q pareciam ser científicas, mas depois viu-se que não eram - ou ao menos deixaram de ser em vista de modificações metodológicas ou novas descobertas. Saindo da físico-química fetichizada na filosofia da ciência hegemônica, não é apenas de mudança de paradigma, a meu ver, q se trata, mas de incluir critérios q podem parecer bastante irrazoáveis dentro dos padrões paramétricos de outras ciências. Pra ficar ainda em Kuhn, o conjunto de 5 valores q ele elenca me parece muito útil pra discutir q objetividade e previsibilidade são valores dentre outros q os cientistas prezam, mas não esgotam o q pode ser considerado científico ou não - ao contrário, tornam bastante difícil traçar essa linha entre o q parece muito ser ciência e o q não é. A perspectiva histórica ajuda muito, mas com ela tb não podemos contar sempre que precisamos.

Estou me lembrando aqui de um caso recente que aconteceu comigo, em que uma suposta cobra coral apareceu em minha casa (tivemos de chamar os bombeiros, já que queríamos matá-la). Pelo que vejo da cultura local, há corais, não-corais, falsas corais e até falsas falsas corais. Consigo dar conta de algumas não-corais e falsas falsas corais, mas as corais e falsas corais (difíceis de distinguir das verdadeiras) são muito perigosas pra mim. Nosso corpo de bombeiros recomenda não tentar fazer a distinção dessa última dupla, mas creio que as razões são contrárias às do nosso contexto (evitar dano causado por uma das cobras vs. conseguir benefício fornecido por uma das ciências).

Não sei onde vc mora, nem o q mais o corpo de bombeiros recomenda, mas eu, como observador de aves e convivendo com muitos biólogos há mais ou menos 1 década, recuperei uma lição q aprendi com meu avô caipira (desculpe, parece piada, mas não é; admito q é um pouco piegas falar assim, mas não sei dizer de melhor maneira). Melhor mesmo é vc aprender a capturar a cobra com segurança e devolvê-la ao mato sem matá-la; se for impossível reencaminhar a cobra, buscar entregá-la à polícia ambiental ou equivalente. E ter sempre de reserva, tanto qto possível, alguma dose de soro antiofídico. 
Reconhecer espécies não é tão difícil tb, mas exige tempo e nem sempre temos tempo - a disposição para aprender q anima a ciência, em muitos casos, não basta, é preciso agir, e o tempo da ação - assim como o do lumpen - é outro. 


A genuína disposição para aprender não seria uma condição necessária e suficiente, então?
Eu não disse isso. Pode ser, mas em se tratando de uma atitude, mais do q qq outra coisa, não acho q seja disso q se trata. O Lee McIntire elenca atitudes da comunidade acadêmica q significam adotar essa disposição na prática, desde revisão anônima por pares até métodos quantitativos. Ele argumenta q o problema de tomar a atitude como uma condição suficiente é incorrer na dificuldade de definir o q seria uma condição necessária para a ciência - e, consequentemente, incorrer no erro de tornar a atitude científica equivalente à própria ciência - bem como definir rigorosamente o que é que não consegue ser ciência - isto é, de quantas maneiras possíveis é possível falhar em ser ciência. Talvez um dia alguém consiga resolver o problema, mas como já dizia Platão, se a verdade é una, as formas do falso, diferentemente…

E se ela, juntamente com o conhecimento acumulado, acabasse implicando que devemos proceder de tais e tais maneiras, usando tais e tais métodos e ferramentas, não passaria a ser obrigação de quem tem genuína disposição de aprender, diante desse histórico, adaptar suas práticas?
Bem, é exatamente isso o q CSPeirce afirmava acerca do pragmatismo (q para ele não passava do próprio método científico - se é q tal coisa existe). VEja aqui:  “Pragmatism is the principle that every theoretical judgement expressible in a sentence in the indicative mood is a confused form of thought whose only meaning, if it has any, lies in its tendency to enforce a corresponding practical maxim expressible as a conditional sentence having its apodosis in the imperative mood” (1903, CP 5.18) 

Acho que isso é fruto da divisão extrema do trabalho. Parece que a gente acaba relaxando em relação aos fundamentos racionais e filosóficos da ciência justamente porque no dia a dia geralmente podemos passar sem eles.
 

Concordo, só acho q não se trata de fundamentos filosfóficos ou racionais (descreio disso). A ênfase na disposição para aprender q eu defendo ressalta menos os métodos e mais uma atitude. Muita gente com atitude científica é antilucrativo, diriam alguns. Mas nem todo mundo q tem atitude científica faz ciência ou é cientista - qq pessoa pode ter disposição para aprender e aprender bem sem saber nada de métodos rigorosamente racionais, seja lá o q isso possa querer dizer… 

Não sei se entendi. Não é contraditório afirmar que o distanciamento de contextos locais permite universalizar o conhecimento (entendo que está sendo aprendido um conhecimento universal) e ao mesmo tempo dizer que sem aproximação dos contextos locais é impossível aprender?
Não vejo contradição alguma. Penso aqui agora no Ubi D`Ambrósio: se para ensinar aritmética elementar usamos o exemplo de 2 maçãs x 3, pra uma criança q nunca viu uma maçã e só conhece bananas esse exemplo não tem o menor sentido. 
O problema não é a aritmética, mas como  e para quê ela é usada, por quem. A Mariana Kawall em um de seus livros discute como certos povos indígenas acham estranho falar de “dei 4 flechas, das 8 q tinha, a meu amigo e fiquei com 4”, pq se vc dá a um amigo, juntando com as 5 q ele já tinha, vc só pode ficar com 9. Quem aqui não sabe trabalhar com algoritmos? Wittgenstein diria q é a gramática dos verbos q usamos q está aqui em questão. Outro livro muito esclarecedor a respeito é o já clássico em pedagogia Na vida dez, na escola zero, da Ana Lúcia Schliemann (acho q é esse o nome). 

Acho que a palavra 'impor' aqui é fundamental. Se eu acho que alguém está com uma crença falsa a respeito de algo, argumentar e tentar convencer essa pessoa de que ela está errada é desrespeitoso em si? Se em vez de uma pessoa falarmos de uma coletividade a coisa muda? Como exatamente é isso?
 
Sandra Harding escreveu bastante sobre isso. Meu colega John Kleba tb produziu bastante a respeito. Isso me leva ao próximo ponto. 


Se julgamos que a ciência mainstream está num patamar mais elevado que determinado sistema de crenças S de nossa própria sociedade, por que esperar que essa relação também não se aplique para o caso de um sistema de crenças S' de uma outra sociedade que parece ser análogo a S? Por que meramente pensar nessa hipótese é ser imperialista/colonialista?
Vc escreveu bem: se julgamos, mas eu não julgo assim. Aliás, talvez não devesse, mas ainda me surpreendo q haja quem assim pense, em termos de “patamar mais elevado”. 
Escrevi um artigo q foi julgado “não científico”, acerca de um filme q, a meu ver, problematiza bem esse ponto. O artigo é este aqui: 
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/62243 (perdão pela autocitação). O artigo ser julgado não científico pouco me importa, pior seria, para mim, q fosse julgado tedioso ou completamente desinteressante. O filme é mais importante do q a identificação catalográfica do meu artigo para fins de Qualis A, B ou C. E o filme mostra bem esse ponto: irracional são sempre os outros, né? 
Lévi-Strauss já - penso - definiu bem o problema em ‘Raça e História’: o que chamamos de progresso depende de condições gerais tão amplas q escapam à nossa consciência e atingem a toda humanidade. O nosso próprio etnocentrismo pode ser questionado se nos perguntamos se a nossa cultura é realmente cumulativa, em termos de progresso histórico, como pensamos. De fato, penso na crítica de certos economistas marxistas à ideologia hegemômica na economia burguesa, a ideologia do progresso tecnocientífico como fetiche do capitalismo avançado q se fortaleceu justamente durante a década de 1970, com as crises do petróleo. O Kaspar Hauser do Herzog é uma crônica dessa crise, como se sabe: a mera presença desses ignaros, desses bárbaros monstruosos, esses q relegamos ao palco da comédia de horrores, a mera proximidade física deles já constitui uma ameaça à nossa racionalidade e cultura q estão, como é claro e distinto, em patamares mais elevados q os deles. #sqn né? Pode parecer incrível, mas muita gente ainda pensa assim. Na verdade, também sabemos q praticamente todos os povos se autoreconhecem como humanidade e relegam todos os demais (os q não somos nós) a um estatuto de humano inferior ou mesmo não humano. Mas há tb o seguinte. Li há alguns anos q em algum país africano, onde há uma guerra civil de cunho fortemente racista, os soldados do grupo militar opressor diziam q violentavam as vítimas justamente por elas serem humanas, e não por as sub- ou desumanizarem. Eu interpreto q isso se dá pq nós, humanos, somos capazes de julgar as nossas próprias ações como somos capazes de aprender, ao passo q um animal não. Daí q a um humano seja deliberadamente *imposto* um aprendizado. Minha interpretação é evidentemente de extração europeia, se pensarmos na situação a q é submetido Shylock, na peça de Shakespeare, p.ex.
Fico com essa última situação - é por vc estar no mesmo patamar q eu q é meu dever impor a vc a humilhação (Shylock será punido pela sua própria ideia de justiça). Se eu agisse de maneira diferente, não estaria à altura do q a minha humanidade me faz insta a fazer.  

A reivindicação já não é que a respectiva prática É ciência? Pra que outras condições e metodologias se todas geram igualmente conhecimento? 
Sim, certamente já é ciência e gera conhecimento, mas há certos problemas q não resolvem se não houver acesso a metodologias e produtos específicos. Vacinas, por exemplo. Meu colega já citado John Kleba tem vários artigos sobre isso. O q eu acrescento é lembrar q muitos povos brasileiros reivindicam acesso à pesquisa para q seus saberes floresçam e não sejam capitalizados por empresas saqueadoras, restringindo o acesso aos resultados da pesquisa unicamente à via do consumo de produtos. Se o conhecimento é uma construção coletiva, pq seu usufruto deve seguir a lógica dos lucros privados? Quanto vale a biodiversidade da qual se apropriam os grandes laboratórios, p.ex.? 

 
com o tempo vi que como não há uma definição de filosofia … 

Há *uma* definição de ciência?  Há tempos procuro um texto nos moldes de um capítulo ou artigo que defina a questão. Se vc souber de algum, por favor, me indique, será extremamente útil para as minhas aulas. 
 
sem condições mínimas que o deixem florescer, como provavelmente foi o caso em boa parte da história do homo sapiens, parece-me que esticar os conceitos de ciência e filosofia de modo que acompanhem toda a história do homem implicaria em perder distinção que queremos manter pelo uso do termo.

Não sei se queremos manter a mesma distinção, acho q eu não tenho em vista as mesmas coisas q vc. Observe q falar em impulso não é o mesmo q falar em ciência e filosofia como disciplinas, ou como institucionalizações, ou atividades profissionais. Qdo citei Galileo como scientifico, tinha a profissão em vista: Galileo ganhava a vida dando aulas de matemática - professor - e projetando armas - engenheiro militar - e outros instrumentos. A par disso, bebia vinho, ia à missa e escrevia sobre astrofísica e hermenêutica bíblica. E era chamado de scientifico não em sentido profissional. Já qdo citei Einstein, quis apontar que, se por um lado é bem mais direto definir atualmente profissões e divisões de trabalho, por outros lados, o buraco é bem mais embaixo e muitas condições de florescimento são necessárias (achei ótima essa palavra, florescer é bem mais amplo do q profissionalizar).

Acho que agora, com um pouco mais de 10 anos tentando entender o que está acontecendo, já posso considerar que meu medo de o rei estar nú não é infundado (infelizmente! Preferiria que fosse).
não se sinta solitário! Sou solidário, eu mesmo, embora nada real, me sinto nu e com essa idade não tenho muitos motivos pra me orgulhar. Mas tb não me envergonho, nas circunstâncias apropriadas.


Há uma tentativa de esconder a influência?
O que significa pra vc assumir que houve influência?
Desculpe se citei muitos nomes, mas especificamente sobre esses pontos, eu gosto bastante do Kwame Anthony Appiah; a Ella Shohat tb traz argumentos importantes ao debate, mas não especificamente no âmbito da filosofia; já no Brasil, o Renato Noguera tem trazido importantes trabalhos para o debate, quase como uma voz clamando no deserto - se essa metáfora (alô, Júlio!) ainda for permitida - não fosse pelos trabalhos anteriores do Nei Lopes, p.ex. Mas há muitos outros. Muryatan Barbosa de Oliveira escreveu um bom livro sobre pensamento africano contemporâneo. Outras pessoas saberão mais do q eu indicar outros trabalhos. 
Influência é uma palavra difícil de definir, vc fez bem em perguntar. O q é mais fácil é negar o mito do milagre grego, como dizem, e afirmar q toda cultura é sempre híbrida, necessariamente apropriativa. Platão, por exemplo, propõe um modelo tripartite de sociedade q era comum na sua época, na Índia, p.ex., q ele mesmo relata ter chegado a conhecer (na Carta VII). A sua maneira de descrever esse modelo, de forma a quebrar o princípio do vínculo sanguíneo aristocrático, é original dele; ao mesmo tempo, os elementos da cultura grega, q ele aproveita, deitam profundas raízes em outras civilizações, como a egípcia, mas assim como o Banchá-dô japonês, cujas raízes vêm da China, são extremamente originais e não se encontram da mesma maneira em outras culturas. 
 
Alguém nega isso?
Ou vc está propondo que saber ancestral é equivalente a conhecimento científico?

Acho q a bibliografia citada vai te dar ideia do tamanho da negação. 
Vc está certo, não estou propondo q saber ancestral sse conhecimento científico, mas sim afirmando q o conhecimento científico não é prerrogativa exclusiva de certa civilização ou modelo de racionalidade. 
Jean-Pierre Vernant, p.ex., ainda defendia a emergência da racionalidade sobre o mito como característica marcante da Grécia antiga filosófica. Muita gente nega ainda muita coisa. Hj mesmo vi uma foto de um pajé brasileiro sobre um piso de porcelanato dentro de uma oca - um pajé bozista, aliás. Os trabalhos q citei podem dar uma ideia mais matizada e mais exemplos de o q é q se deseja afirmar com a negação desses processos históricos. Mas o q ressalto, ainda mais agora depois de tanta coisa q passamos nos últimos anos e com a perspectiva de um retorno à direita em futuro próximo, é a necessidade não pararmos de contar as histórias q aprendemos e defendemos - a da ciência, a da filosofia, a da difícil conquista de uma democracia pouca num país q ainda não deixou de ser colônia etc. - pq se o fizermos outras narrativas o farão - e as narrativas não morrem, pois não possuem ósculo para pagar a Caronte. Pouca gente sabe, mas Machado de Assis escreveu A teoria do medalhão para responder a José de Alencar, pondo na boca do pai do garoto frases de Alencar na Assembleia Legislativa. Hoje, tanto o conto de Machado qto os discursos de Alencar estão disponíveis livremente para leitura na Internet. Mas qual narrativa domina o debate político? 

Concordo, mas isso não é amplamente aceito, talvez até demais*?

Ao contrário, acho q muito de menos, como os atuais movimentos políticos não param de nos lembrar. Lembrei de outros 2 textos: A fixação da crença, de CSPeirce (me parece sempre atual) e Männerphantasien, do Klaus Theweleit - este último discute como certo ideal de racionalidade é bem pouco racional, tanto menos racional quanto mais assumido e inquestionado, o que levou, como se sabe, ao nazifascismo da 2a Guerra.  No entanto, o humanista em mim me leva a afirmar q se é possível racionalizar coletivamente e submeter as nossas crenças irracionais à crítica para q não sucumbamos aos impulsos de morte, não é nada desejável racionalizar todas as esferas da nossa vida. Individualmente, de ninguém devemos exigir q justifique racionalmente todas as suas crenças - primeiro, pq é impossível, segundo, pq é desumano e terceiro pq se ainda q fosse possível e ainda q restasse algo de humano em alguém q o conseguisse, essa pessoa seria uma bruta chata de galochas, um Sócrates da vida - quem é q aguenta um cidadão desses, q fica perguntando o tempo inteiro “mas o q é q vc quer dizer com isso? O que significa aquilo? Como assim? Pq?” Sócrates morreu por isso - o q incomodava nele era a sua atitude, contraditória, como bem identificou Platão, mas plenamente coerente com o q ele, Sócrates, pensava de si próprio e de sua sociedade. 


* Umas observações interessantes sobre esse pessimismo em relação à razão estão aqui:
https://tinyurl.com/2hxcmcen
É justamente o receio de que estamos combatendo equívoco com equívoco o que me preocupa. Já até tentei me tranquilizar pensando que talvez seja da nossa natureza oscilar em relação ao ponto ótimo, alternando entre ação e reação, entre avanço progressista e contra-ataque reacionário, na esperança de que estamos aos poucos nos aproximando desse suposto ponto ótimo. Mesmo assim resta a questão de qual exagero é realmente inevitável e qual está em nosso poder evitar, dado que os exageros cobram seu preço.
Não gostei do tipo de abordagem do vídeo. A racionalidade vem da irracionalidade, não acho q se trata de 2 modos distintos e antagônicos de pensar e agir. Prefiro pensar na continuidade: a política é o âmbito da crítica, no qual até a racionalidade e a ciência são usadas como armas para derrotar o inimigo (em geral, a mentira e a pólvora tb são usadas, nem sempre com propósito claro). Sem entrar em epistemologia muito tediosa aqui, basta dizer q nossos critérios de racionalidade são desenvolvidos qdo aprendemos a usar a linguagem; posteriormente, na prática científica mais elaborada, talvez fosse melhor falar em razoabilidade, o q certos métodos e formalizações podem favorecer (onde há incerteza, há mais riscos; onde conseguimos calcular melhor os riscos, é pq eliminamos algo da incerteza). Assim, não há como saber se estamos nos aproximando de um ponto ótimo ou péssimo, embora eu goste de me exprimir como vc em termos de esperança (particularmente, acho um equívoco elitista desprezível esse papo comum de “lado certo da história”, uma autocomiseração atroz) - só dá pra saber o valor das nossas ações depois q elas são realizadas, não há valor prévio na história. Tem a famosa história da conversa entre Simone Weil e Trotski sobre quantas pessoas teriam de morrer em nome da revolução - qual é o limite, então? Deve haver algum, não? O nosso esforço está aí: já q só podemos contar conosco mesmo, trabalhar pela vida, e não pela morte, é o q nos resta. Espero q eu saiba fazer esse trabalho e qdo eu não for capaz de saber q outros saibam. 

Um abraço, Ricardo, eu é q agradeço. 

--

Ricardo Pereira

unread,
Dec 16, 2022, 9:20:35 PM12/16/22
to Cassiano Terra Rodrigues, LOGICA-L, Marcelo Finger, dura...@gmail.com, eduardoochs
Oi, Cassiano!
Seguem meus comentários.


Nesse caso, muito do que é não-ciência não será confundido com ela (nem tem essa pretensão) e, consequentemente, não haverá toda uma gama de problemas associados a essa confusão.

Eu argumento em outro sentido (acho). Os problemas que tenho em vista dizem respeito à sobreposição de finalidades.

Então entendo que para cada finalidade uma determinada distinção se mostra apropriada. Podemos pensar em ciência/pseudo-ciência e também em ciência/não-ciência.
 
A ciência nos diz que podemos fazer muitas coisas, inclusive conhecer os fenômenos de maneira mais, ou menos, confiável do que a religião ou a política (quer dizer, ao menos, pretensamente mais confiável…).

Não é nitidamente mais confiável?
 
Mas até onde consigo entender, a ciência não nos diz pq deveríamos fazer x ou y. A religião e a política fazem isso? São elas q devem fazer isso? Não sei. Sei q um modelo como o do CNRS da França pode ser belo, ma non funziona in tutti quanti i paesi…

Da maneira como a entendo, a ciência não faz isso, ainda que possa nos fazer mudar de ideia porque pode revelar conflitos entre objetivos ou consequências e possibilidades não previstas antes.
 

Já o caso de atividades que se parecem muito com a ciência, em todas as suas características superficiais, mas não têm poder de previsão, por exemplo, merecem ser tratadas em separado justamente porque muitas pessoas serão enganadas (nem precisamos entrar no mérito de se há má fé ou não).

Aqui me parece q vc está usando o poder de previsão como característica definidora da ciência. Eu diria o seguinte, concordo, mas formularia diferentemente: o q torna uma teoria científica é q ela afirma q deve haver alguma coisa, algum funcionamento dos fenômenos, por trás (digamos) da teoria q sustenta as previsões e q lá na frente condiz com as evidências q somos capazes de ter.  Acho q é fundamental, então, distinguir entre o q simplesmente é literário, político, religioso (não cientifico) e o q é pseudocientífico, ou ciência picareta, como já vi escreverem. Mas esse limite “denorex” - “parece, mas não é” - é impossível definir absolutamente, embora caso a caso talvez não.

Não sei se é impossível.
Que critério vc imagina que estaria sendo usado caso a caso, mas não seria generalizável?
 
Na história da ciência há inúmeros exemplos a citar de teorias q pareciam ser científicas, mas depois viu-se que não eram - ou ao menos deixaram de ser em vista de modificações metodológicas ou novas descobertas.

Acho que esse problema afetaria tanto a divisão ciência/pseudo-ciência quanto a ciência/não-ciência. Vejo como uma dificuldade, mas que não torna a tentativa desnecessária.
 

 Melhor mesmo é vc aprender a capturar a cobra com segurança e devolvê-la ao mato sem matá-la; se for impossível reencaminhar a cobra, buscar entregá-la à polícia ambiental ou equivalente. E ter sempre de reserva, tanto qto possível, alguma dose de soro antiofídico. 
Reconhecer espécies não é tão difícil tb, mas exige tempo e nem sempre temos tempo - a disposição para aprender q anima a ciência, em muitos casos, não basta, é preciso agir, e o tempo da ação - assim como o do lumpen - é outro. 

Na verdade eu capturei com sucesso (sem machucá-la). A dúvida era se soltaria perto. Minha esposa preferiu que chamássemos os bombeiros.
Gostod e cobras e lagartos em geral. Já tentei criar calangos bico doce (aqui tem bastante) e iguanas, mas tive medo dos últimos não comerem direito e soltei.
Quanto à coral, vi que não é fácil saber quando é falsa, então não tentei.

A genuína disposição para aprender não seria uma condição necessária e suficiente, então?
 
Eu não disse isso. Pode ser, mas em se tratando de uma atitude, mais do q qq outra coisa, não acho q seja disso q se trata.

Meu ponto é que a própria atitude genuína parece implicar que, uma vez tendo reconhecido certos métodos nitidamente eficientes pra entender e prever as coisas, há uma expectativa de que reconhecendo o mesmo contexto eu deveria aplicar os mesmos métodos SE o que me move primordialmente ainda é a disposição de aprender. Claro que ela é apenas uma das coisas que nos move, mas aí entra justamente a possibilidade de nos deixar mover conscientes dos reais motivos (até onde a gente consegue ou julga suportável/desejável). 
 
Acho que isso é fruto da divisão extrema do trabalho. Parece que a gente acaba relaxando em relação aos fundamentos racionais e filosóficos da ciência justamente porque no dia a dia geralmente podemos passar sem eles.
 

Concordo, só acho q não se trata de fundamentos filosfóficos ou racionais (descreio disso).

Interessante.
A descrença na razão em geral ou especificamente em relação aos fundamentos (relaxamento quanto aos) terem algum papel nesse estado de coisas?

 
A ênfase na disposição para aprender q eu defendo ressalta menos os métodos e mais uma atitude.

Sim. Ela é mais importante que os métodos, mas penso que ela gera um "dever" para consigo mesmo em relação à escolha das opções disponíveis uma vez que se tem conhecimento sobre elas.
Caso não tenha ficado claro, estou supondo a razão instrumental.
 

Não sei se entendi. Não é contraditório afirmar que o distanciamento de contextos locais permite universalizar o conhecimento (entendo que está sendo aprendido um conhecimento universal) e ao mesmo tempo dizer que sem aproximação dos contextos locais é impossível aprender?
Não vejo contradição alguma. Penso aqui agora no Ubi D`Ambrósio: se para ensinar aritmética elementar usamos o exemplo de 2 maçãs x 3, pra uma criança q nunca viu uma maçã e só conhece bananas esse exemplo não tem o menor sentido. 

Pensei que o conhecimento universal mencionado acima tinha sido adquirido enquanto estando distanciado. Não sei se vc vê o processo de distanciamento e aproximação como ambos necessários, mas se eu fosse chutar diria que o contexto local é o ponto de partida fundamental, mas enquanto não houver distanciamento não há conhecimento universal.
 
O problema não é a aritmética, mas como  e para quê ela é usada, por quem. A Mariana Kawall em um de seus livros discute como certos povos indígenas acham estranho falar de “dei 4 flechas, das 8 q tinha, a meu amigo e fiquei com 4”, pq se vc dá a um amigo, juntando com as 5 q ele já tinha, vc só pode ficar com 9. Quem aqui não sabe trabalhar com algoritmos? Wittgenstein diria q é a gramática dos verbos q usamos q está aqui em questão. Outro livro muito esclarecedor a respeito é o já clássico em pedagogia Na vida dez, na escola zero, da Ana Lúcia Schliemann (acho q é esse o nome). 

Interessante!
A autora alega que existe uma matemática básica distinta?
Vou ver sobre.

Se julgamos que a ciência mainstream está num patamar mais elevado que determinado sistema de crenças S de nossa própria sociedade, por que esperar que essa relação também não se aplique para o caso de um sistema de crenças S' de uma outra sociedade que parece ser análogo a S? Por que meramente pensar nessa hipótese é ser imperialista/colonialista?
Vc escreveu bem: se julgamos, mas eu não julgo assim. Aliás, talvez não devesse, mas ainda me surpreendo q haja quem assim pense, em termos de “patamar mais elevado”. 

Quer dizer então que a escolha de saberes entre as culturas pra vc é aleatória? Vc acha que nenhuma explica, prevê ou consegue transformar o mundo distintamente melhor* que as outras?

* Quando uso essas palavras (melhor, superior, num patamar mais elevado etc.) estou apenas tentando indicar uma preferência em termos de escolha.
 
Escrevi um artigo q foi julgado “não científico”, acerca de um filme q, a meu ver, problematiza bem esse ponto. O artigo é este aqui: 
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/62243 (perdão pela autocitação). O artigo ser julgado não científico pouco me importa, pior seria, para mim, q fosse julgado tedioso ou completamente desinteressante. O filme é mais importante do q a identificação catalográfica do meu artigo para fins de Qualis A, B ou C. E o filme mostra bem esse ponto: irracional são sempre os outros, né?

Não acho que irracionais são sempre os outros. Apenas acho que todos juntos podemos tentar melhorar nossa condição em termos de razão, inclusive para isso é até melhor que possamos contar com pontos de vista diversos. O problema é que se por um lado nada garante que em todos os contextos haverá o surgimento de um ponto de vista hegemônico, por outro, também não temos como garantir que toda a diversidade será mantida. Assim como não me parece adequado forças as pessoas a crerem, também não me parece adequado ter uma atitude paternalista e impedir que a outra pessoa acesse as mesmas informações que eu tenho e, a partir delas, forme a mesma visão de mundo que eu.

Botei seu artigo na lista de leituras.
Obrigado pelo link e pela dica de filme. Parece bacana!
:-) 

A reivindicação já não é que a respectiva prática É ciência? Pra que outras condições e metodologias se todas geram igualmente conhecimento? 
Sim, certamente já é ciência e gera conhecimento, mas há certos problemas q não resolvem se não houver acesso a metodologias e produtos específicos. Vacinas, por exemplo.

Pronto. Se vc disser que só resolve com essas metodologias e produtos, não só uma ciência é melhor que a outra em termos de escolha, mas uma funciona e a outra não. É um caso, mas se isso começa a se refletir em muitos casos, a expectativa em relação a uma ser a melhor escolha que a outra faz sentido.
 
Meu colega já citado John Kleba tem vários artigos sobre isso. O q eu acrescento é lembrar q muitos povos brasileiros reivindicam acesso à pesquisa para q seus saberes floresçam e não sejam capitalizados por empresas saqueadoras, restringindo o acesso aos resultados da pesquisa unicamente à via do consumo de produtos. Se o conhecimento é uma construção coletiva, pq seu usufruto deve seguir a lógica dos lucros privados? Quanto vale a biodiversidade da qual se apropriam os grandes laboratórios, p.ex.? 

Concordo. Dois livros muito interessantes que tocam nessa problemática são esses:
https://www.thepublicdomain.org/enclosing-the-commons-of-the-mind/ 
 
com o tempo vi que como não há uma definição de filosofia … 

Há *uma* definição de ciência?  Há tempos procuro um texto nos moldes de um capítulo ou artigo que defina a questão. Se vc souber de algum, por favor, me indique, será extremamente útil para as minhas aulas. 
 
Não há, mas penso que o problema em relação às ciências é bem menor que o em relação à filosofia.

 
sem condições mínimas que o deixem florescer, como provavelmente foi o caso em boa parte da história do homo sapiens, parece-me que esticar os conceitos de ciência e filosofia de modo que acompanhem toda a história do homem implicaria em perder distinção que queremos manter pelo uso do termo.

Não sei se queremos manter a mesma distinção, acho q eu não tenho em vista as mesmas coisas q vc.

Não sei se fui claro: a distinção a que me referi não é entre ciência e filosofia (apesar de eu achar importante também essa distinção), mas entre elas e o resto.


Há uma tentativa de esconder a influência?
O que significa pra vc assumir que houve influência?
Desculpe se citei muitos nomes, mas especificamente sobre esses pontos, eu gosto bastante do Kwame Anthony Appiah; a Ella Shohat tb traz argumentos importantes ao debate, mas não especificamente no âmbito da filosofia; já no Brasil, o Renato Noguera tem trazido importantes trabalhos para o debate, quase como uma voz clamando no deserto - se essa metáfora (alô, Júlio!) ainda for permitida - não fosse pelos trabalhos anteriores do Nei Lopes, p.ex. Mas há muitos outros. Muryatan Barbosa de Oliveira escreveu um bom livro sobre pensamento africano contemporâneo. Outras pessoas saberão mais do q eu indicar outros trabalhos. 
Influência é uma palavra difícil de definir, vc fez bem em perguntar. O q é mais fácil é negar o mito do milagre grego, como dizem, e afirmar q toda cultura é sempre híbrida, necessariamente apropriativa.

Não me parece que assumir que há influência e apropriação nos leva a negar os milagres em termos de mudança de mentalidade e descobertas.
Acho que deve até ter alguém por aí demonstrando que a natureza extremamente copiável dos produtos intelectuais e culturais implica em um número maior que poucas descobertas extremamente difundidas que o de muitas descobertas mais ou menos simultâneas.
Achava que a própria história da linguagem e da escrita (o próprio DNA) eram boas evidências disso, não?
  
Alguém nega isso?
Ou vc está propondo que saber ancestral é equivalente a conhecimento científico?

Acho q a bibliografia citada vai te dar ideia do tamanho da negação. 
Vc está certo, não estou propondo q saber ancestral sse conhecimento científico, mas sim afirmando q o conhecimento científico não é prerrogativa exclusiva de certa civilização ou modelo de racionalidade. 

Ainda continuo com o mesmo dilema em mente: se aceito que houve uma mudança nítida em termos de metodologia e potencial de entender/prever a natureza em relação aos métodos de minha própria cultura adotados em gerações anteriores e esses métodos são mais ou menos equivalentes aos de várias outras culturas, ao usar o termo ciência pra me referir a esse novo método e não ao método antigo, me parece inadequado insistir em usar o termo para o equivalente, em outras culturas, ao método ancestral da minha.
Fica realmente parecendo que queremos negar essa diferença como forma de honrar as demais culturas ancestrais, como se assumi-la necessariamente me levasse a desprezar as pessoas dessas culturas.
 
No entanto, o humanista em mim me leva a afirmar q se é possível racionalizar coletivamente e submeter as nossas crenças irracionais à crítica para q não sucumbamos aos impulsos de morte, não é nada desejável racionalizar todas as esferas da nossa vida. Individualmente, de ninguém devemos exigir q justifique racionalmente todas as suas crenças - primeiro, pq é impossível, segundo, pq é desumano e terceiro pq se ainda q fosse possível e ainda q restasse algo de humano em alguém q o conseguisse, essa pessoa seria uma bruta chata de galochas, um Sócrates da vida - quem é q aguenta um cidadão desses, q fica perguntando o tempo inteiro “mas o q é q vc quer dizer com isso? O que significa aquilo? Como assim? Pq?” Sócrates morreu por isso - o q incomodava nele era a sua atitude, contraditória, como bem identificou Platão, mas plenamente coerente com o q ele, Sócrates, pensava de si próprio e de sua sociedade. 

Concordo.
Entretanto, ainda é pertinente a discussão sobre que crenças devem, não devem ou não precisam ser justificadas. Acho que qualquer empreendimento coletivo implica automaticamente ao menos essa discussão.
 

* Umas observações interessantes sobre esse pessimismo em relação à razão estão aqui:
https://tinyurl.com/2hxcmcen
É justamente o receio de que estamos combatendo equívoco com equívoco o que me preocupa. Já até tentei me tranquilizar pensando que talvez seja da nossa natureza oscilar em relação ao ponto ótimo, alternando entre ação e reação, entre avanço progressista e contra-ataque reacionário, na esperança de que estamos aos poucos nos aproximando desse suposto ponto ótimo. Mesmo assim resta a questão de qual exagero é realmente inevitável e qual está em nosso poder evitar, dado que os exageros cobram seu preço.
Não gostei do tipo de abordagem do vídeo. A racionalidade vem da irracionalidade, não acho q se trata de 2 modos distintos e antagônicos de pensar e agir.
Interessante sua colocação sobre racionalidade vir da irracionalidade. Alguma referência?
Os modos não são distintos, mas complementares. O problema é que eles podem conflitar dependendo do contexto.
Parece-me que esses dois modos distintos têm encontrado bastante respaldo científico, não?
O problema que o vídeo aborda, e que acho ser bem real, é que com a desvalorização exagerada da razão não a estamos usando nem nos contextos em que ela poderia ser muito bem aplicada.

Um abraço, Ricardo, eu é q agradeço. 


Abraço!
E...
Sextou! 
;-)
Reply all
Reply to author
Forward
0 new messages